Por Paulo de Bessa Antunes e Jorge Rubem Folena de Oliveira*
A Constituição de 1988 tem sido reconhecida como uma “Constituição Verde” devido à relevância que atribui ao meio ambiente e sua proteção. Em razão disso, é consensual, na doutrina jurídica e na jurisprudência, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental do ser humano e foi elevado ao “status de valor central da nação” pela Constituição de 1988, conforme interpretou o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC 42/DF (relator: ministro Luiz Fux). Isto porque o caput do artigo 225 estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”. Todavia, com o acréscimo do § 7º ao artigo 225, por intermédio da Emenda Constitucional nº 96/2017 [1], criou-se uma “interpretação autêntica” do inciso VII do § 1º do mesmo artigo 225, ao excluir do conceito de crueldade as práticas “desportivas” com a utilização de animais em “manifestações culturais”; na verdade, de modo casuístico e passando por cima do entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado no julgamento da ADI 4.983, que julgou inconstitucional a prática da vaquejada, por configurar crueldade contra os animais.
O referido acréscimo constitucional é flagrante desvio de finalidade legislativa e, pela forma oportunista em que foi apresentado, configura violação direta ao princípio da separação de Poderes, que tem por objetivo manter o equilíbrio das forças políticas e sociais [2], uma vez que introduziu uma nova norma na Constituição para ressuscitar questão que já declarada inconstitucional pelo STF.
Vale lembrar que a proposta de emenda constitucional que deu origem à EC 96/2017 teve tramitação célere, sendo aprovada sem maiores dificuldades [3], apesar da gravidade e importância da matéria. Porém, a inclusão do § 7º no artigo 225 constitui verdadeira afronta a uma decisão judicial proferida por outro Poder da República e é objeto da ADI 5.728, que tramita há cerca de cinco anos perante o STF, sem uma previsão de julgamento; até porque, ressalte-se, o Parlamento, com sua medida legislativa casuísta, desafiou a Corte Suprema, que tem o papel preponderante de interpretar a Constituição e mantê-la hígida, diante dos demais Poderes e de toda a sociedade.
Com o resultado das eleições de 2022, o Congresso, a partir da próxima legislatura, que se iniciará em 1º de fevereiro de 2023, contará com expressiva parcela de parlamentares defensores de pautas extremamente desfavoráveis ao meio ambiente, como um ex-ministro do atual governo, que propôs “passar a boiada” para revogar toda a legislação ambiental, aproveitando-se do período da crise sanitária da Covid-19, conforme vídeo levado ao conhecimento público, por força da decisão do ministro Celso de Mello, no Inquérito 4.831 do STF.
A propósito, se por acaso o atual ocupante da Presidência da República for reeleito, e, tendo em conta a formação do novo parlamento com parlamentares que, em expressivo número, se colocam abertamente contra a proteção do meio ambiente, poderão ser aprovadas reformas constitucionais, por dentro da ordem, que alterarão o conteúdo do artigo 225, sem suprimi-lo, para contrariar decisões proferidas pelo STF, até mesmo para negar o conteúdo da hermenêutica de que o meio ambiente foi elevado ao “status de valor central da nação”, como já mencionado, ou outros mais recentes, como o firmado no julgamento da ADPF 747, que julgou inconstitucional o ato normativo administrativo defendido pelo referido ex-ministro do Meio Ambiente, que revogou as Resoluções 284/2001 e 302/2002 e 303/2002 do Conama.
Ressalte-se, mais uma vez, que o caput do artigo 225 da Constituição estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”.
Nesse passo, é preciso dizer que é dever do poder público (isto é, todos os Poderes constituídos) assegurar a efetividade do direito ambiental, elevado à categoria de “direito humano ao meio ambiente de qualidade”, como afirmou o Plenário do STF, no julgamento da ADC 42-DF, relator ministro Luiz Fux.
Por outro lado, a aposentadoria de dois ministros do STF no ano vindouro poderá ter consequências muito importantes para a modificação da interpretação dos dispositivos do artigo 225.
A experiência dos Estados Unidos nos mostra que a modificação da composição dos tribunais constitucionais é decisiva na questão ambiental. Em artigo publicado em sítio da internet [4], foi examinada a influência que um perfil mais conservador da composição da Suprema Corte dos Estados Unidos teve sobre a problemática da regulação da emissão dos gases de efeito estufa. Entretanto, nos Estados Unidos ainda não ocorreu a situação em que os três poderes, simultaneamente, assumissem uma postura claramente contrária à proteção do meio ambiente e, em especial, no que se refere às mudanças climáticas globais.
As emendas ao artigo 225 são uma possibilidade concreta. Entretanto, dada a maioria parlamentar que se formou para a próxima legislatura, parece evidente que uma pauta altamente regressiva e com grave retrocesso ambiental, cumprida por meio de leis ordinárias, poderá ser imposta diante de grandes interesses econômicos, que não têm manifestado qualquer preocupação com o meio ambiente sadio e para as gerações futuras. Somente o equilíbrio de poderes, através da implementação do sistema de freios e contrapesos, será capaz de impedir que um conjunto legislativo e institucional, que vem sendo construído há cerca de 40 anos, sofra mais recuos irrecuperáveis no futuro, como tem sido observado principalmente nos últimos quatro anos.
Proteção do meio ambiente, das populações tradicionais, dos povos indígenas, do patrimônio histórico são marcos civilizacionais que a nossa Constituição consagra e que devem orgulhar a todos os brasileiros, inclusive por fazerem parte daquilo que foi denominado “constitucionalismo fraternal”, como manifestado no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3.388-RR) pelo ministro Carlos Ayres de Britto, que vem sendo construído pela hermenêutica jurisprudencial ao longo dos mais de 34 anos da promulgação da Constituição de 1988. Conservá-los é uma tarefa urgente, que não podemos negligenciar.
Portanto, o Supremo, que tem sido tão atacado e ameaçado nestes últimos quatro anos, continuará a ter o papel fundamental de poder intermediário, que vem assegurando, ao final, o equilíbrio das forças políticas e sociais no Brasil [5], a fim de manter a democracia e a preservação do ser humano num meio ambiente sadio, como assegurado na Constituição da República.
[1] § 7º. Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.
[2] FOLENA DE OLIVEIRA, J. R. (2017) Divisão de poderes: o Poder Judiciário como mediador para o equilíbrio das forças políticas e sociais. Revista Vanguarda Jurídica, v. 7, p. 55-68, 2017.
[3] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2123843. Acesso em 6/10/2022
[4] BESSA. P. (2022) A Suprema Corte dos Estados Unidos e as mudanças climáticas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jul-09/paulo-bessa-suprema-corte-eua-mudancas-climaticas. Acesso em 6/10/2022
[5] FOLENA DE OLIVEIRA, J. R. (2018). O STF deve assegurar o Estado de Direito. Disponível em https://jornalggn.com.br/artigos/stf-deve-garantir-o-estado-de-direito-por-jorge-rubem-folena-de-oliveira-0/. Acesso em 11 de out. 2022.
*Paulo de Bessa Antunes é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Jorge Rubem Folena de Oliveira é advogado, cientista político, secretário-geral e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), pós-doutor pelo CPDA/UFRRJ, doutor em ciência política pelo Iuperj, mestre em Direito pela UFRJ e detentor da medalha do Mérito Geográfico de 2008.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 26/10/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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