Por Marcos Paulo de Souza Miranda*
Não raras vezes o senso comum compreende o patrimônio cultural brasileiro como um estrito conjunto de casarões coloniais, igrejas barrocas, estátuas, ruínas e outras obras produto da realização humana que, ao longo dos tempos, alcançaram o reconhecimento como símbolos identitários da nação, seja por sua antiguidade, beleza, qualidade artística ou raridade.
Entretanto, para além das produções humanas, o patrimônio cultural pode abranger bens naturais que, pela sua inter-relação com os homens, reúnem caracteres distintivos que os destacam como elementos de relevo para uma determinada comunidade. Nesse sentido, cachoeiras, serras e rios podem constituir elementos paisagísticos, geográficos, turísticos ou afetivos de destaque, o que justifica a sua proteção nos termos do artigo 216 da CF/1988.
Nessa toada, de igual sorte, as árvores podem ser protegidas como patrimônio cultural quando detentoras de atributos como a beleza, antiguidade, raridade ou vinculação com fatos históricos, por exemplo.
Sabe-se que desde os primórdios da humanidade é cotidiana e íntima a relação entre árvores e homens, seja em razão da produção de frutos utilizados como alimento; do fornecimento de matéria-prima para confecção de instrumentos como canoas, arcos e flechas; das propriedades medicinais da seiva, casca e folhas; e da produção de matéria essencial ao fogo. Talvez em razão disso seja comum em pinturas rupestres pré-históricas a presença de representações da “cena da árvore”, em que antropomorfos aparecem interagindo, com aparente viés ritualístico, com tal espécie vegetal (fitomorfo).
Tamanha a importância das árvores para a nossa sociedade que são muitos os lugares que foram batizados com expressões relativas à sua existência. Para além do nome do nosso próprio país (que faz alusão ao “pau cor de brasa”, ou pau-brasil), temos o do estado do Amapá (apocinácea de porte grande, cientificamente denominada Parahancornia amapa) e ainda de inúmeras cidades, a exemplo de Jequitibá, Curitiba, Indaiá, Macaúbas, Pinheiral, Congonhas e Cedro.
São os fitotopônimos, a respeito dos quais leciona Suely Aparecida Cazarotto[1]:
Percebe-se pelo exame dos topônimos que, ao escolher um nome para “batizar” um acidente físico e/ou humano, o homem procura retratar o que de mais valioso possui em sua localidade. É nesse momento que entra em cena a vegetação, pois é dela que o homem extrai parte de seu alimento, consegue madeira resistente para a construção de casas e folhas que servem para a cobertura dessas casas ou espécies vegetais que servem de ornamentação. Desse modo, nomeando um acidente geográfico, físico ou humano, com o nome de um elemento vegetal, o homem estaria “rendendo sua homenagem” a algo que lhe é tão útil e necessário à vida.
Quanto aos critérios para mensuração do valor cultural de uma árvore, conquanto não haja regras matemáticas para tanto, uma vez que a seleção depende de elementos subjetivos, alguns estudos técnicos já propõem balizas para tal valoração[2].
Mas como proteger juridicamente uma árvore detentora de valor cultural e evitar o seu corte ou mutilação?
Um dos instrumentos clássicos passíveis de utilização é o tombamento, disciplinado pelo DL 25/37, que consiste em um procedimento administrativo capaz de conferir ao bem protegido a condição de imodificabilidade de sua essência (artigo 17) e a vedação de alterações negativas em seu entorno (artigo 18).
Nesse sentido, em Minas Gerais, por exemplo, foi tombada pelo município de Conselheiro Lafaiete a árvore situada no sítio histórico da Varginha do Lourenço, às margens da Estrada Real, onde ficou exposta uma das pernas do corpo esquartejado do mártir Tiradentes, em 1792. Também em Minas, na cidade de São Bento Abade, foi tombada a figueira onde foi despelado vivo, no ano de 1802, João Garcia Leal, o que deu ensejo a uma das mais atrozes perseguições de vingança já ocorridas no país, envolvendo o bando do temido Januário Garcia Leal, que passou a ser conhecido como Sete Orelhas.
Mas mesmo antes da instituição do regime jurídico do tombamento o Decreto Federal 23.793/34, que instituiu o Código Florestal do Brasil, já estabelecia que:
Art. 14. Qualquer arvore poderá ser, por motivo de sua posição, especie ou belleza, declarada, por acto do poder publico municipal, estadual ou federal, imune de corte, cabendo ao proprietario a indemnização de perdas e damnos, arbitrada em juizo, ou accordada administrativamente, quando as circumstancias a tornarem devida.
§ 1º Far-se-á no local, por meio de cercas, taboleta ou posto, a designação das arvores assim protegidas.
§ 2º Applicam-se ás arvores, designadas de conformidade com este artigo, os dispositivos referentes ás florestas de dominio publico.
Com redação similar, a hipótese de proteção foi mantida pela Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965 (artigo 7º) e hoje está presente no Novo Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012), que assim dispõe:
Art. 70. Além do disposto nesta Lei e sem prejuízo da criação de unidades de conservação da natureza, na forma da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, e de outras ações cabíveis voltadas à proteção das florestas e outras formas de vegetação, o poder público federal, estadual ou municipal poderá:
II – declarar qualquer árvore imune de corte, por motivo de sua localização, raridade, beleza ou condição de porta-sementes.
A previsão legal permite, por meio de ato administrativo emanado de qualquer dos entes federativos, efetivar a preservação de espécimes arbóreos, em conjunto ou separadamente, em razão de seus atributos de localização (existência em região estratégica sob a ótica paisagística ou ambiental, locais pouco comuns, v.g.) raridade (antiguidade, dimensões, risco de desaparecimento, v.g.), beleza (porte, feições especiais, características ornamentais, v.g.) ou condição de porta-sementes (árvore rara ou necessária à proliferação da espécie mediante a produção de sementes), constituindo uma forma de acautelamento e preservação de nossos bens culturais (neste caso um bem originariamente natural que recebe uma especial valoração humana em decorrência de atributos especiais) que se harmoniza, perfeitamente, com os mandamentos constitucionais sobre o tema.
E não são raros os exemplos de utilização do instrumento em nosso país.
Em Pelotas (RS), por exemplo, o Decreto Municipal 2.028/1984 estabelece:
Art. 1°- É declarada imune ao corte a paineira (Bombacaceae – Chorisia Minuscula – Speciosa), de aproximadamente 120 anos de idade, localizada no imóvel da rua Andrade Neves n° 743, esquina da rua Almirante Tamandaré.
Art. 2°- Qualquer obra realizada no imóvel deverá respeitar a referida paineira, adotando-se às exigências ambientais e urbanísticas, sob as penas da Lei.
Na cidade do Rio de Janeiro, o Decreto 33.205, de 8 de dezembro de 2010, além de declarar imune de corte uma árvore de pau-brasil, instituiu uma área non aedificandi no entorno do bem com o objetivo de preservá-lo.
Art. 1.° Fica declarado imune ao corte, nos termos do artigo 7o da Lei Federal n.° 4.771/1965 e do Decreto Municipal n.° 19.146/2000, o espécime vegetal de porte arbóreo constituído por um Pau-brasil – Caesalpinia echinata, existente no interior do imóvel da União Feminina Missionária Batista do Brasil, à Rua Uruguai, n.° 514, Tijuca
Parágrafo único – O espécime vegetal a que se refere o caput é nativo do Brasil, encontrado do Estado do Amazonas até o Estado de São Paulo, e possui, aproximadamente, quinze metros de altura, diâmetro de copa com dez metros e DAP (diâmetro do tronco a altura do peito) com cinqüenta centímetros.
Art. 2.° Não será permitida qualquer ação que prejudique direta ou indiretamente o espécime vegetal de que trata este Decreto, incluindo suas raízes, ficando estabelecida uma faixa non aedificandi em torno da árvore, equivalente à cinco metros, exceto para a edificação já existente no entorno.
Art. 3.° Deverá ser fixada placa informativa no local, para visualização pública da declaração de imunidade ao corte.
Mais recentemente, a Portaria Ibama 13, de 22 de setembro de 2011, declarou imune ao corte a árvore da espécie Liquidambar styraciflua, da família Altingiaceae, identificada como “árvore da lua” pelo fato de a espécie arbórea, plantada na área da sede do Ibama, em Brasília, ser resultante de semente procedente de testes científicos feitos durante a missão espacial Apollo 14.
Eis o ato:
O PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS – IBAMA, no uso das atribuições que lhe conferem o art.22º, do Decreto nº 6.099, de 26 de abril de 2007, que aprovou a Estrutura Regimental do IBAMA, publicado no Diário Oficial da União de 27 de abril de 2007, e pela Portaria nº 604/2011-Casa Civil, de 24 de fevereiro de 2011, publicada no Diário Oficial da União do dia subsequente, resolve:
Considerando a necessidade de se dar proteção a espécie arbórea resultante de semente procedente de testes científicos realizados durante a missão espacial Apollo 14;
Considerando, também, tratar-se de um símbolo vivo que marcou a era espacial; e
Considerando, ainda, o disposto no art. 7º da lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, resolve,
Art. 1º Declarar imune ao corte a árvore da espécie Liquidambar styraciflua da família Altingiaceae, identificada como “Árvore da Lua,” plantada em 14 de dezembro de 1980, na área verde do IBAMA, situada ao lado do Bloco A do Edifício Sede.
Art. 2º Os cuidados e proteção da “Árvore da Lua,” ora declarada imune ao corte, ficará sob a responsabilidade do IBAMA, ou qualquer outro o ente público que venha a sucedê-lo.
A declaração, como base no artigo 70, II, da Lei 12.651/2012, de uma árvore como sendo imune de corte em razão de seus atributos de antiguidade, raridade, excepcional beleza etc. se assemelha ao tombamento do bem (artigo 17 do DL 25/37), uma vez que a partir de então ele não poderá mais ser suprimido.
Mas, além das formas administrativas, a atividade legislativa também mostra-se viável de ser utilizada para a proteção de nossas árvores.
Em nível federal, podemos citar a Lei 6.607/1978, que, objetivando proteger o pau-brasil como árvore nacional, assim dispôs:
Art. 1º – É declarada Árvore Nacional a leguminosa denominada Pau-Brasil (Caesalpinia Echinata, Lam), cuja festa será comemorada, anualmente, quando o Ministério da Educação e Cultura promoverá campanha elucidativa sobre a relevância daquela espécie vegetal na História do Brasil.
Art. 2º – O Ministério da Agricultura promoverá, através de seu órgão especializado, a implantação, em todo o território nacional, de viveiros de mudas de Pau-Brasil, visando à sua conservação e distribuição para finalidades cívicas.
Por derradeiro, a via judicial também pode ser utilizada para se reconhecer o valor cultural e impedir a supressão de árvores detentoras de valor cultural, seja por meio de ação popular, seja por meio de ação civil pública, pois tais instrumentos não criam, mas apenas declaram um valor cultural necessariamente preexistente.
Se a relevância cultural já tiver sido reconhecida por outro instrumento, com maior facilidade poderá ser acionado o Poder Judiciário.
Sobre o tema, vejamos a jurisprudência:
A supressão de espécies de Tabebuia serratifolia (Ipê-amarelo) e de Roystoneaoleracea (Palmeira-imperial) em praça pública do Município, de presumido interesse natural e cultural à população local, somente se justifica por relevante necessidade da administração pública.
– É desnecessária a supressão de espécies, sem autorização legal e desarrazoada de fundamento biológico, conforme atestou o laudo pericial. (TJMG – Remessa Necessária-Cv 1.0074.14.004656-1/002, Relator(a): Des.(a) Alice Birchal , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/07/0017, publicação da súmula em 12/07/2017).
AÇÃO COMINATÓRIA. Vedação a derrubada de árvore centenária, considerada um dos 10 tesouros verdes de São José do Rio Preto. Tombamento superveniente. Fato e circunstância que não impede o julgamento pelo mérito da ação. Multa cominatória e honorários sucumbenciais bem quantificados. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP; APL 1018683-04.2014.8.26.0576; Ac. 9857269; São José do Rio Preto; Primeira Câmara Reservada Ao Meio Ambiente; Rel. Des. Moreira Viegas; Julg. 29/09/2016; DJESP 14/10/2016).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO POPULAR Meio ambiente -autorização para corte de árvore centenária – Suspensão – Liminar – Verossimilhança da alegação e periculum in mora – Presença – Deferimento – Restando comprovada a plausibilidade do direito alegado, quanto à necessidade de suspensão da determinação de corte de árvore centenária existente no município de Raul Soares, bem como o perigo de demora, correto se apresenta o deferimento da tutela liminar pleiteada – Recurso não provido. (TJMG; AGIN 0526516-80.2011.8.13.0000; Raul Soares; Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Elias Camilo; Julg. 01/12/2011; DJEMG 16/12/2011)
A supressão de árvore declarada imune de corte em razão de seu valor cultural ou paisagístico, por instrumentos de natureza administrativa, legislativa ou judicial, ou a realização de atividades danosas em seu entorno, em desconformidade com as diretrizes normativas, são condutas que encontram reprovação criminal nos artigos 62 e 63 da Lei 9.605/98, respectivamente.
Enfim, são múltiplas as possibilidades em nosso país da proteção de árvores detentoras de atributos culturais, a fim de que elas possam contribuir para a higidez do meio ambiente e ser fruídas pelas presentes e futuras gerações.
[1] GLOSSÁRIO DE FITOTOPÔNIMOS SUL-MATOGROSSENSES: UMA PROPOSTA CAMPO GRANDE – MS 2010. http://atems.ufms.br/wp-content/uploads/2016/09/Dissertac%CC%A7a%CC%83o_Suely-Cazarotto.pdf
[2] Índice de Valor Paisagístico para árvores em ambiente urbano. ESTELLITA, Mauricio e DEMATTÊ, Maria Esmeralda Soares Payão. Revista Brasileira de Horticultura Ornamental v. 12, n.2, p. 103-111, 2007.
*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).