Por Vladimir Passos de Freitas*
As mudanças sociais mais recentes, a diferente forma de ver o mundo e os seus semelhantes, têm criado situações inusitadas nos órgãos do sistema de administração da Justiça. Chloris Casagrande Justen bem sintetiza esta nova realidade, ao afirmar que “as mudanças nos comportamentos e nas instituições de todos os países, e na sociedade como um todo, configuram-se em transformações permanentes nos costumes e nos comportamentos surpreendendo pela extraordinária rapidez com que se inscrevem na conduta e nos valores humanos, instalando-se como processo contínuo e abrangente”.[1]
Evidentemente, todas as carreiras públicas estão normatizadas por leis que preveem o acesso, promoções, direitos, deveres e tudo o mais. Assim, no âmbito da magistratura, juízes de qualquer ramo do Poder Judiciário têm suas atribuições reguladas, basicamente, pelos artigos 93 e 95 da Constituição Federal e pela Lei Complementar 35/1979, conhecida como Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).
No âmbito do Ministério Público, a Lei Orgânica Nacional é a de nº 8.625/93. A Advocacia Geral da União rege-se pela Lei Complementar 73/1993 e as Defensorias Públicas, pela Lei Complementar 132/2009. A Polícia Federal ainda é regulada pela antiga Lei 4.483/1964, com o acréscimo de leis esparsas, como a Lei 9.266/1996. A Polícia Civil dos Estados não tem lei orgânica nacional, cabendo a cada unidade da Federação disciplinar a matéria. Os servidores federais estão submetidos ao Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, Lei 8.112/1990.
Contudo, a forma de agir de magistrados, agentes do Ministério Público e de outras carreiras públicas, incluindo os seus servidores, nem sempre tem os seus limites previstos nas leis e normas que as regulamentam. As situações que a vida apresenta são sempre mais ricas do que os textos normativos. Vejamos alguns exemplos, pois o conceito de ética se vislumbra mais facilmente com exemplos do que através de citações doutrinárias.
Um promotor participando como examinador na prova oral de banca de concurso de ingresso no Ministério Público, descrevendo as circunstâncias de um crime de estupro, afirmou, durante uma das perguntas, que o estuprador ficou “com a melhor parte (no crime), dependendo da vítima”.[2] Que fazer diante de uma situação como esta, que acima de tudo revela imaturidade e desconhecimento do relevante papel exercido?
Pode um Oficial da Polícia Militar criticar seus superiores nas redes sociais, invocando seu direito constitucional à liberdade de expressão, previsto no artigo 5º, inciso X, da Carta Magna? Há quebra do princípio da hierarquia?
É aceitável a posição de parcela de Defensores Públicos que pretendem prestar atendimento online para as pessoas que os procurem? Tal ideia significaria simplesmente vedar o acesso de pessoas de nível econômico, social e cultural mais baixo, muitas vezes desconhecendo como manejar as inovações eletrônicas, àqueles que ocupam tal posição exatamente para atendê-los.
Pode um servidor ser punido por atos da vida privada? Quais os limites entre a conduta afetar apenas a sua imagem e a que afeta, também, a da repartição pública?
É ética a oferta de serviços de mentoria e orientação (coachs) para os aspirantes a aprovação em concurso ou sucesso nas ações judiciais? Auxiliar os pretendentes não é novidade nenhuma, uma vez que os cursinhos existem desde os anos 1960. A novidade está no fato de que estes novos mentores surgem com um apelo diferente, algo como: “venham, eu tive sucesso e ocupo posição na administração pública, por isso será mais fácil levá-los ao sucesso”. Não se trata de um coaching a mais, mas sim da mistura de funções privadas com as públicas, uma relação que os coloca em vantagem no mercado e insinua tratamento privilegiado.
Nada retrata tão bem esta situação como um caso recente de servidora do Poder Judiciário. A funcionária fez um cartaz, com o logo do Tribunal ao qual está vinculada, distribuindo-o nas redes sociais, nele proclamando: “Me Chamo YYYYZZZ e sou assessora na Justiça Federal há mais de 10 anos como Oficial de gabinite, ou seja, eu quem redijo as sentenças previdenciárias trazidas por vocês advogados”. E daí prossegue, anunciando como os seus serviços podem possibilitar o crescimento profissional. Os erros de português, que começam com o uso do pronome oblíquo ao início da frase, estão no texto original. Colocado o nome da servidora no Google, constata-se possuir uma página em que se declara professora, com “AGENDA ABERTA PARA EVENTOS, CURSOS E PALESTRAS SOBRE DIREITO PREVIDENCIÁRIO!”
É ético tal procedimento? Legal? Valer-se do cargo, envolver a administração pública para conquistar clientes? Insinuar poder, uma vez que se afirma “eu quem redijo as sentenças” (no original, quem e não que…). Em não sendo, configura infração ética? Falta administrativa, conforme artigo 116, incisos II e VIII do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União?
Mas o coaching pode ser praticado também por magistrados e aí o poder de convencimento será maior. Tal situação foi discutida com maestria pelo juiz de Direito Fernando Brandini Barbagalo, no distante ano de 2015.[3] São muitos os casos, a maioria não denunciados. Um deles se tornou mais conhecido. Em outubro de 2020, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou a pena de demissão a um juiz substituto que se achava em estágio probatório, já havia sido advertido pelo Conselho Superior da Magistratura a respeito e, ainda assim, oferecia a prestação de serviços de coaching, vendendo livros e apostilas preparatórios para concursos e anunciando em seu site serviços de elaboração de recursos administrativos.[4]
Todavia o CNJ, com base em voto do conselheiro Mauro Pereira Martins, deu provimento ao recurso para aplicar apenas a pena de censura e, em seguida, declarou-a prescrita.[5] Criou o CNJ um precedente que é um verdadeiro estímulo aos empreendedores que vestiram a toga sem vocação, pois, se tudo der errado, tudo dará certo. Afinal, a pena de censura é acima de tudo simbólica. Além disto, passou a mensagem que todos conhecem: no Brasil, estágio probatório de juízes não existe.
Mas, mesmo na questão do coaching por juízes, algumas situações podem suscitar dúvidas. Por exemplo, se o juiz dá as suas aulas para candidatos comprovadamente sem recursos para pagar um curso preparatório. Nesta hipótese, comete falta funcional? Como resolver o conflito entre a proibição do artigo 5º da Resolução nº 226/2016 com o louvável ato de inclusão social?
São incalculáveis as situações que ocorrem nas instituições públicas, as quais, na maioria das vezes, passam despercebidas da população. Que fazer? Sim, que fazer, porque o não fazer é a maior fonte de estímulo para que tudo fique pior a cada dia, prejudicando aqueles que buscam os serviços públicos, principalmente os mais carentes. Afinal, não fazer é cômodo, ninguém tem ódio de um omisso. E muitas vezes vem fantasiado de um ato de amor e bondade, só faltando incluir coraçõezinhos vermelhos.
Nestas condições, propõe-se:
- Aos administradores em cargos de chefia, que enfrentem estes novos problemas com serenidade e firmeza, orientando, quando for o caso, e punindo, quando necessário.
- Aos Tribunais em especial, mas ao MP e outros órgãos quando adequado, criar norma exigindo expresso requerimento de permissão para os casos especiais, como o de coaching para candidatos carentes.
- Aos tribunais, a criação de uma Comissão Ética Pública Judiciária, destinada a opinar sobre situações existentes que lhes cheguem ao conhecimento e, também, atender magistrados e servidores em consultas em casos de dúvida.
O Brasil merece.
[1] JUSTEN, Chloris Casagrande. Ética e outros ensaios. Curitiba: Medeiros Ed., 2021, p. 13.
[2] Globo.com G1. Em prova para Ministério Público, promotor diz que estuprador ‘ficou com a melhor parte’. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/06/em-prova-para-ministerio-publico-promotor-diz-que-estuprador-ficou-com-a-melhor-parte.html. Acesso em 24 jun. 2022.
[3] TJDF. Coaching Jurídico. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2015/coaching-juridico-juiz-fernando-brandini-barbagalo. Acesso em 24 jun. 2022.
[4] Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 29 out. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-29/tj-sp-aplica-pena-demissao-juiz-atuava-coaching-internet. Acesso em 24 jun. 2022.
[5][v] CNJ, Resolução CNJ 226/2016, que deu nova redação ao art. 5º da Resolução CNJ 34/2007, adotando a seguinte redação: Art. 5º-A As atividades de coaching, similares e congêneres, destinadas à assessoria individual ou coletiva de pessoas, inclusive na preparação de candidatos a concursos públicos, não são consideradas atividade docente, sendo vedada a sua prática por magistrados. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=2294. Acesso em 24 jun. 2022.
*Vladimir Passos de Freitas é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 29/06/22
Edição: Ana Alves Alencar
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