Equipes no Brasil e no exterior registram evidências de que o vírus causa microcefalia
Por Ricardo Zorzetto e Rodrigo de Oliveira Andrade (Fapesp)
No final de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou seu discurso sobre a conexão do vírus zika com os casos recentes de microcefalia e outros problemas neurológicos. Em um relatório divulgado no dia 31, afirmou que há um “forte consenso científico” de que o zika causa a microcefalia, condição em que as crianças nascem com a cabeça pequena demais para o tempo de gestação, e a síndrome de Guillain-Barré, degeneração da bainha de mielina dos nervos que pode causar paralisia. É uma mudança de posição importante, adotada dois meses depois de considerar que havia uma “possível associação” do vírus com esses problemas e declarar situação de emergência de saúde pública de interesse internacional.
O reconhecimento da chamada relação de causalidade resulta do acúmulo de dois tipos de evidências. O primeiro tipo é epidemiológico. Desde que foi identificado no país em 2015, o vírus já se disseminou por outros 32 países das Américas, não necessariamente a partir do Brasil, além de alguns da Ásia, da Europa e da África – em seis países a transmissão parece ser exclusivamente sexual. Soma-se a isso o aumento de casos de microcefalia associados à infecção por zika, já registrados em oito países. Até 26 de março, o Brasil reunia o maior número de bebês (944) com microcefalia – o vírus foi detectado em 130 deles. Em segundo lugar, vêm Colômbia e Polinésia Francesa, com oito casos cada uma.
O segundo tipo de evidência é biológica. Desde que o assunto ganhou relevância internacional, em novembro passado, o número de trabalhos científicos sobre zika aumentou exponencialmente. O Pubmed, base de artigos na área biomédica, registrava 218 trabalhos de 1952 a 2015. Apenas em 2016 surgiram outros 307. A causa do aumento é a união de pesquisadores de diferentes especialidades e países em torno de um problema em comum. “Raramente cientistas se engajaram em uma nova agenda de pesquisa com tal senso de urgência”, escreveu a epidemiologista brasileira Laura Rodrigues, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, em um comentário sobre o tema na Lancet.
Um dos estudos que começou a alterar a visão da comunidade científica sobre a causalidade da microcefalia foi conduzido por pesquisadores da Eslovênia. O grupo da virologista Tatjana Avsic-Zupanc, da Universidade de Liubliana, encontrou o vírus e quantificou sua presença no cérebro de um bebê de 8 meses com microcefalia. A mãe da criança havia morado em Natal, no Rio Grande do Norte, onde engravidou em fevereiro de 2015. Três meses depois ela apresentou sinais de infecção por zika – febre, manchas vermelhas pelo corpo, coceira, dores musculares e nos olhos. O terceiro exame de ultrassom, feito na 29a semana de gestação, identificou restrição de crescimento do bebê e tamanho reduzido do crânio. Além da microcefalia, os pesquisadores observaram lesões (calcificações) no cérebro. Publicado em fevereiro no New England Journal of Medicine, o trabalho foi considerado uma das primeiras evidências sólidas da conexão entre o vírus e a microcefalia, embora o virologista brasileiro Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas, no Pará, já tivesse isolado o vírus do cérebro e de outros tecidos de um bebê com microcefalia do Ceará (ver Pesquisa FAPESP nº 239).
De lá para cá, outros estudos acumularam indicações de que o zika transpõe a placenta e infecta o líquido aminiótico, algo que poucos vírus conseguem fazer. A presença do vírus em diferentes tecidos, entretanto, não é suficiente para confirmar a causalidade. Ele poderia estar ali sem causar danos. Dois estudos apresentados no início de março demonstraram que o zika é capaz de infectar células neurais humanas e matá-las. Em um deles, depositado no dia 2 no repositório Peer J Preprints, pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo verificaram que o zika invade e mata as células-tronco precursoras de células neurais.
O grupo coordenado por Stevens Rehen e Patrícia Garcez, neurocientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), induziu quimicamente células da pele a se tornar células-tronco pluripotentes, capazes de originar diferentes tecidos, e depois as estimularam a se transformar em células cerebrais. Sob as condições adequadas, essas células se organizam em camadas e geram as neuroesferas e os organoides cerebrais (minicérebros), modelos do cérebro em diferentes estágios de desenvolvimento. As primeiras mimetizam o cérebro de um embrião em um estágio rudimentar; os minicérebros equivalem ao cérebro de um feto de 3 meses.
Efeito devastador: neuroesfera saudável (à esq.) e neuroesfera gerada a partir de células infectadas pelo vírus zika
Em laboratório, os pesquisadores infectaram as células-tronco com amostras da linhagem africana do zika, isolada em 1947 e aparentemente distinta da que circula hoje no Brasil, e analisaram como elas se desenvolviam em comparação com células não expostas ao vírus. Após três dias, Rehen e sua equipe observaram que o zika havia comprometido a capacidade das células-tronco de gerar neuroesferas. “As poucas neuroesferas formadas se degradaram em até seis dias, enquanto as originadas de células não infectadas se desenvolveram normalmente”, conta Rehen.
Imagens de microscopia eletrônica mostraram que o vírus havia se multiplicado rapidamente no interior das células e disparado a morte celular programada (apoptose). E os minicérebros infectados eram 40% menores do que os saudáveis 11 dias após o início dos testes. Além de crescerem menos, eles também eram deformados.
Em uma versão estendida do estudo, publicada em abril na Science, o grupo do Rio infectou as células-tronco com o vírus da dengue, geneticamente muito semelhante ao zika e também amplamente disseminado no Brasil. O vírus invadiu as células progenitoras neurais de modo ainda mais eficaz que o zika, mas não causou problemas. “Diferentemente do zika, o vírus da dengue não comprometeu o desenvolvimento das neuroesferas e dos organoides”, afirma Rehen.
Dois dias após o grupo do Rio depositar o trabalho no Peer J Preprints, pesquisadores dos Estados Unidos apresentaram na revista Cell Stem Cell uma confirmação da afinidade do zika pelas células do tecido cerebral. Eles colocaram células-tronco precursoras das células neurais em contato com o vírus e verificaram que, três dias depois, 85% delas estavam infectadas e haviam ativado as vias bioquímicas da apoptose. O experimento foi repetido com células imaturas de rim e o vírus invadiu pouco mais de 10% delas, indicando sua preferência por células do sistema nervoso. “Mostramos que o zika infecta in vitro as células neurais que correspondem às que formam o córtex”, disse o neurocientista Hongjun Song, da Universidade Johns Hopkins, em um comunicado à imprensa.
Evidências semelhantes foram obtidas por pesquisadores da Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zika), apoiada pela FAPESP. Além do zika africano, eles usaram a cepa brasileira do vírus para infectar células-tronco precursoras das células neurais, neuroesferas, minicérebros e fêmeas de camundongo prenhes. Submetidos para publicação, os resultados, segundo os autores, confirmam que o vírus causa microcefalia.
“Canonicamente, usam-se os critérios de Hill para demonstrar que um vírus causa uma doença”, explica o virologista Paolo Zanotto, da Universidade de São Paulo (USP). Propostos em 1965 pelo epidemiologista britânico Austin Bradford Hill, esses critérios são uma lista de nove características que em geral devem ser satisfeitas. São eles: força ou efeito de tamanho (quanto mais ampla a associação maior a probabilidade causal); consistência (observações semelhantes feitas por grupos diferentes em locais distintos aumentam a probabilidade de o efeito existir); especificidade (quanto maior a associação entre um fator e seu efeito, maior é a probabilidade de haver relação causal); temporalidade (o efeito deve ocorrer após exposição ao fator que o provoca); gradiente biológico (quanto maior a exposição ao fator causador maior o efeito); plausibilidade (existência de mecanismo biológico que explica a relação entre causa e feito); coerência (a conexão entre os achados laboratoriais e epidemiológicos aumenta a probabilidade de o fator provocar o efeito); experimentação (ocasionalmente é possível buscar evidências experimentais); analogia (o efeito de fatores semelhantes devem ser levados em consideração).
Rota de infecção
Apesar desses avanços, não se sabe ao certo como o vírus, uma vez no organismo do feto, chega ao tecido cerebral. Mas um grupo da Universidade da Califórnia em São Francisco tem um palpite. Em 2015 o virologista Rodolphel Hamel, da França, verificou que o zika pode penetrar nas células humanas ao se ligar ao receptor AXL. Esse receptor é uma proteína da membrana das células, também usada pelo vírus da dengue para invadi-las – em um artigo na Science de 31 de março, equipes da Universidade Purdue, nos Estados Unidos, reconstituíram a estrutura do zika em nível atômico e confirmaram que ele é quase idêntico ao vírus da dengue.
Arnold Kriegstein e seu grupo em São Francisco demonstraram que o receptor AXL é expresso nas células precursoras do cérebro (mas não nas maduras) e também nas precursoras das células da retina, o que pode explicar os danos observados em alguns bebês. Eles verificaram ainda que as células com AXL se localizam em regiões cerebrais que têm contato com o líquido que banha o sistema nervoso central (líquor). Com base nesses achados e na observação de Hamel, a equipe da Califórnia propõe que o vírus pode chegar ao cérebro via líquor. “Acreditamos que a expressão do AXL por essas células seja uma pista importante de como o zika é capaz de produzir casos de microcefalia tão devastadores e isso se encaixa bem com as evidências disponíveis”, disse Kriegstein à imprensa. Como o AXL não é o único receptor associado à infecção por zika, ele reconhece, ainda é preciso demonstrar que bloqueá-lo reduziria a infecção.
A confirmação mais importante de que o zika causa microcefalia vem de estudos como o feito pela infectologista Patrícia Brasil, da Fiocruz no Rio de Janeiro. Desde setembro, ela acompanha grávidas que apresentaram sinais de infecção por zika em diferentes momentos da gestação. Em março, Patrícia revelou seus primeiros resultados no New England Journal of Medicine. Os pesquisadores identificaram o vírus em 72 das 88 participantes – só 42 continuaram no estudo e aceitaram realizar exames de imagem nos bebês. Das 42 crianças, 12 (29% do total) apresentavam graus diferentes de comprometimento: de restrição de crescimento intrauterino (cinco casos) a lesões cerebrais (sete) e morte do feto (dois) – alguns tinham mais de um problema.
Risco no primeiro trimestre
Mais evidências de causalidade vieram de um estudo que analisou retrospectivamente o surto de zika na Polinésia Francesa. Simon Cauchemez, do Instituto Pasteur em Paris, estimou o total de casos da infecção a partir dos dados de testes sorológicos. Em uma busca nos registros médicos, ele e colegas identificaram oito casos de microcefalia entre setembro de 2013 e julho de 2015. Usando um modelo matemático, eles concluíram que a infecção no primeiro trimestre de gestação é a que mais aumenta a probabilidade de ter um bebê com microcefalia. Segundo os resultados, apresentados na Lancet, esse risco é de 1%.
Os estudos medem fenômenos diferentes e não podem ser comparados. Mas parecem suficientes para comprovar a causalidade.
“É prematuro calcular o risco de a infecção levar ao nascimento de um bebê com microcefalia com base nos dados do estudo do Rio e da Polinésia, já que o número de pessoas é pequeno”, diz o epidemiologista Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas. “Sobre a relação causal, não há dúvida”, afirma.
“Ambos os trabalhos são importantes, mas não exaurem a questão”, diz Zanotto, da USP. “Ainda é preciso saber se o risco depende da pré-exposição a outros patógenos, da existência anterior de outras doenças, das características genéticas e do estado nutricional da mãe”, conta. Zanotto coordena a Rede Zika, que desenvolveu um teste capaz de identificar no sangue anticorpos contra o vírus.
Embora não permitam estimar o risco de uma gestante brasileira com zika ter um bebê com microcefalia, os dados da Fiocruz vão além de confirmar a causalidade. O trabalho reforça a ideia de que o zika não provoca só microcefalia, mas uma síndrome congênita, como alguns já haviam sugerido. Nessa síndrome, o tipo de problema apresentado pelo bebê depende do período da gravidez em que ocorreu a infecção. “Uma vez que a gestante é diagnosticada com zika”, diz Patrícia Brasil, “o obstetra deve monitorar o bebê realizando exames a intervalos mais curtos”. Foi assim que seu grupo identificou a tempo um caso em que o líquido amniótico secou. O bebê foi salvo por meio de um parto cirúrgico.
Artigos científicos
MLAKAR, J. et al. Zika virus associated with microcephaly. New England Journal of Medicine. 10 fev. 2016.
GARCEZ, P. P. et al. Zika virus impairs growth in human neurospheres and brain organoids. Peer J Preprints.
TANG, H. et al. Zika virus infects human cortical neural progenitors and attenuates their growth. Cell Stem Cell. mai. 2016.
SIROHI, D. et al. The 3.8 Å resolution cryo-EM structure of zika virus. Science. 31 mar. 2016.
BRASIL, P. et al. Zika virus infection in pregnant women in Rio de Janeiro – preliminary report. New England Journal of Medicine. 4 mar. 2016.
CAUCHEMEZ, S. et al. Association between zika virus and microcephaly in French Polynesia, 2013-15: a retrospective study. Lancet. 15 mar. 2016.
Rodrigo de Oliveira Andrade é jornalista científico da FAPESP, pósgraduado em ciência da comunicação e mestre em história da ciência(PUC-SP),
Ricardo Zorzetto é editor de ciência na revista Pesquisa FAPESP
Matéria originalmente publicada na Revista Fapesp
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