Por Ricardo Cintra Torres de Carvalho*
A invasão da Ucrânia pela Rússia, o bombardeio de extensas áreas e a recente ameaça do uso de armas nucleares justifica indagarmos como isso se enquadra no Direito Internacional e quais regras protegem o meio ambiente nessas condições; e as crescentes tensões envolvendo o uso e a distribuição de recursos naturais refletem na segurança interna e externa dos países e são uma fonte permanente de conflitos [1].
Tragédias ambientais naturais e criadas pelo homem refletem diretamente na vida das populações. Segundo estimativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados, apresentada em 2008, aproximadamente 250 milhões de pessoas serão levadas a se deslocar no curso deste século, em razão da evolução do clima, das condições meteorológicas extremas, da diminuição das reservas de água e da degradação das terras agrícolas, eventos esses resultantes do aquecimento global. Tais deslocamentos ocorrerão no interior dos Estados e entre os mais diversos países a um ritmo de seis milhões de pessoas por ano [2]. Nos últimos 50 anos, perto de dez milhões de bengalis imigraram ilegalmente para a Índia, fugindo de terras tradicionais degradadas que não mais lhes dão sustento, exacerbando tensões. A supressão das últimas florestas na Ilha de Páscoa no século XVII levou à falta de água e à fome, que levaram à desintegração da sociedade em uma guerra civil. A construção de usinas nucleares, o represamento de águas, a pulverização da agricultura com agrotóxicos pode trazer consequências para os próprios habitantes e para os países vizinhos. O aquecimento global levará ao aumento do nível do mar e à inundação das terras baixas, com o deslocamento de milhões de pessoas. Tais situações trazem um risco direto à integridade territorial de nações e justificam um esforço internacional para evitar que tais tensões cheguem a conflitos armados; e trazem o risco indireto de que a degradação ambiental em um país aumente exponencialmente os hoje chamados refugiados ambientais, desestabilizando os países para onde se dirigem. As ameaças globais, a direcionar as prioridades das políticas públicas, são a mudança climática, os produtos químicos tóxicos, a extinção das espécies, a supressão das florestas e a degradação do mar.
A guerra sobrevive apesar da proibição da ameaça ou do uso da força nas relações internacionais [3]; mas acordos e tratados têm um papel relevante na condução da guerra. Em 1625 Hugo Grotius publicou Sobre a Lei da Guerra e da Paz, identificando princípios básicos: a desnecessidade de destruir qualquer coisa em áreas não ocupadas pelo inimigo; e a destruição deve ser evitada se a vitória é iminente, se o objeto pode ser obtido em outro lugar ou se o objeto não pode ser utilizado na guerra. Em 1863, durante a Guerra Civil nos Estados Unidos, o exército da União adotou um código de conduta denominado Código Lieber de 1863 que impôs regras para o tratamento de civis e prisioneiros de guerra e restringiu meios e métodos militares para proteção de propriedades cuja destruição não era necessária para o esforço da guerra [4], sob o princípio de que há limites para o direito dos beligerantes causar danos ao inimigo: necessidade militar, proporcionalidade à vantagem perseguida, prevenção de sofrimento desnecessário e a discriminação de objetivos civis e militares.
As Convenções de Haia de 1899 e 1907, conhecidas como Hague I-IV, tiveram início por iniciativa do Tzar Nicolau II da Rússia e prosseguiram por iniciativa do presidente Theodore Roosevelt. Estas conferências deram origem a convenções que regularam a proibição de gases asfixiantes (Hague I), o uso de projéteis ou balas explosivas (Hague II), direitos de países neutros e de pessoas (Hague III) e as leis e usos da guerra terrestre (Hague IV). As Leis de Haia, como são conhecidas, baseiam as restrições no princípio de que “o direito dos beligerantes de usar meios para ferir o inimigo não é ilimitado” (Hague IV). Tais leis não tratam diretamente do meio ambiente, embora o Anexo a Hague IV ofereça uma proteção indireta em seu artigo 23, que, em acréscimo às demais proibições, veda o uso de veneno ou armamento envenenado; de armas, projéteis ou material projetado para causar sofrimento desnecessário; e a destruição ou apropriação de propriedade do inimigo, salvo imperiosa necessidade da guerra. Hague IV é considerada um costume internacional e foi utilizado pelo Tribunal de Nuremberg após a Segunda Guerra Mundial.
As Convenções de Genebra tiveram início em 1864 com a 1ª Convenção sobre os feridos de guerra, seguida por outras convenções e protocolos em 1868, 1906 e 1929; prisioneiros de guerra deixaram de ser submetidos à morte e hospitais e navios-hospitais deixaram de objeto de ataques. Quatro convenções adicionais foram editadas em 1949 expandindo o objeto das Convenções de 1907: a proteção dos feridos e doentes em batalha (Geneva I), de feridos e doentes no mar (Geneva II), de prisioneiros de guerra (Geneva III) e de civis (Geneva IV). Enquanto as Convenções de Haia cuidaram dos métodos e da atividade da guerra, as Convenções de Geneva cuidaram da proteção das vítimas de guerra. As Convenções de Haia e de Geneva formam as bases da lei da guerra moderna.
Embora os acordos internacionais tenham focado na proteção de objetos e indivíduos em guerra sem uma referência direta ao meio ambiente, vários acordos previram uma proteção ambiental indireta. O Protocolo do Gás de Geneva de 1925 vedou o uso em guerra de gases venenosos e similares, embora permita a posse de armas químicas e biológicas [5]. A Convenção Sobre Armas Químicas e Biológicas de 10/4/1972 passou a proibir o desenvolvimento, produção e armazenamento de armas químicas e biológicas, assim protegendo a flora e a fauna dos efeitos dessas toxinas [6], mas nenhuma delas vedou ataques intencionais ao ambiente em tempo de guerra.
A manipulação ambiental tem sido usada no passado, como o desflorestamento e a inundação de áreas pela destruição de barragens. Durante a segunda Guerra Sino-Japonesa de 1937-1945, por exemplo, a destruição de barragens resultou no afogamento de tropas e a destruição de áreas agrícolas e de quase 4.000 vilas chinesas; barragens foram destruídas durante a Segunda Guerra Mundial e na Guerra da Coreia. No Vietnã, o uso em larga escala do “agente laranja” e outros herbicidas causaram enorme desfolhamento das matas. Por ocasião da invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990, em retaliação à vinda das tropas da ONU em defesa do país invadido, o Iraque bombardeou um dos maiores campos de petróleo kuwaitiano, duas grandes refinarias, um terminal de carregamento e navios tanques ancorados, depois bombeou vários milhões de barris de linhas de suprimento criando uma mancha de óleo de aproximadamente quinze quilômetros de comprimento, com dano severo a pássaros migratórios, tartarugas e fauna marinha e a instalações de dessalinização do Kuwait e da Arábia Saudita. Outras ameaças potenciais incluem a geração intenção de tsunamis para destruição de cidades e instalações costeiras, o uso de elementos radioativos e, mais recentemente, o incêndio de poços de petróleo.
Em 1977, para reduzir a ameaça de guerra química, dois acordos internacionais cuidaram pela primeira vez do meio ambiente. Os artigos 35 e 55 do Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 1949 [7] proíbem o uso de métodos ou meios de guerra direcionados, ou que podem sê-lo, a causar dano generalizado, prolongado e severo ao meio ambiente (artigo 35, item 3) e determina que sejam adotados cuidados na guerra para proteção do meio ambiente contra tais danos; a proteção inclui a proibição do uso de métodos e meios direcionados a causar tais danos ao meio ambiente e prejudicar a saúde ou a sobrevivência da população (artigo 55). O artigo 56 dispõe que instalações contendo forças perigosas, como barragens, diques e estações nucleares de energia elétrica não serão objeto de ataque, mesmo sendo um objetivo militar, se do ataque resultar danos graves à população civil; a proteção cessa se tais instalações forem usadas como suporte significativo e relevante de operações militares e se a destruição for a única maneira de cessar tal apoio.
Outra lei da guerra especificamente direcionada à proteção ambiental é a Convenção sobre a Proibição de Uso Militar ou Outro Uso Hostil de Técnicas de Alteração Ambiental, conhecida como 1977 Enmood Convention [8]. A Convenção proíbe o uso de técnicas que modifiquem o ambiente e causem destruição, dano ou lesão “generalizada, de longa duração ou severa” para qualquer Estado subscritor, em guerra ou fora dela. Qualquer Estado que acredite que outro Estado descumpre tais obrigações pode peticionar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas; se a investigação concluir que um Estado foi ou poderá ser prejudicado, tal Estado poderá requisitar o auxílio e apoio dos outros Estados signatários.
Em 1980, com o uso de napalm durante a Guerra do Vietnã em mente, o Protocolo III à Convenção sobre Armas das Nações Unidas [9] regulamentou o uso de armas incendiárias ou capazes de causar fogo. Seu artigo 2, item 4 proíbe o uso de armas incendiárias em florestas ou outra forma de cobertura vegetal, salvo se tais elementos naturais forem usados para cobrir, esconder ou camuflar combatentes ou outros objetivos militares, ou forem eles mesmos objetivos militares.
Em 1991, uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas dispôs que o uso de armas nucleares seria uma violação da Carta das Nações Unidas (que proíbe o uso de ameaça ou de força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado) e um crime contra a humanidade [10]. Dois anos depois, a Assembleia Geral da ONU e a Organização Mundial de Saúde requereram à Corte Internacional de Justiça uma opinião consultiva sobre a legalidade do uso de armas nucleares, atraindo a atenção da comunidade internacional e manifestações escritas de 42 países. Uma das questões relevantes era se a expressão “dano disseminado, duradouro e/ou severo ao meio ambiente”, no Protocolo I e no Enmood, abrangia as armas nucleares. Em 8 de julho de 1996 a Corte Internacional de Justiça, composta de quinze membros, decidiu por maioria de um voto [11] que a ameaça ou o uso de armas nucleares, de um modo geral, ofende as regras sobre conflitos armados das leis da guerra; mas em vista do estado atual do direito internacional, a corte afirmou não poder concluir definitivamente se a ameaça ou o uso dessas armas seria lícito ou ilícito no caso extremo de defesa própria, em que a própria sobrevivência do Estado estivesse em risco. O tratamento das questões ambientais pela Corte Internacional de Justiça traz uma aplicação excelente das diferentes fontes das leis da guerra e faz uma contribuição importante ao direito ambiental internacional.
O direito internacional não consegue evitar os reflexos deletérios da guerra no meio ambiente. A formação e manutenção das forças militares consome grande quantidade de recursos naturais; a movimentação das tropas e seus equipamentos polui o ar e danifica o solo; a destruição de cidades, áreas agrícolas, áreas de preservação ambiental, instalações de diversos tipos e a desorganização da administração impede a proteção e preservação das áreas protegidas, rios e aquíferos, da fauna e da flora. As munições não detonadas, o armamento abandonado nas cidades e nos campos matam e ferem a população, degradam o solo, poluem as águas, destroem as espécies vivas, com consequências desastrosas. A guerra, sabe-se hoje, não é apenas uma ação entre humanos; é uma atividade de elevada interferência e destruição do ecossistema onde ocorre e nos ecossistemas próximos. Não é possível que continue ocorrendo.
[1] O artigo traz informações obtidas em DAVID HUNTER, JAMES SALZMAN e DURWOOD ZELK, International Environmental Law and Policy, Foundation Press, New York, 1998, Capítulo XVIII, pág. 1363/1384.
[2] ConJur – A questão dos “refugiados” climáticos e ambientais, 22/4/2017, por Álvaro Mirra.
[3] Carta das Nações Unidas (unicef.org) Art. 2.4: Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.
[5] Protocolo sobre a Proibição do Uso em Guerra de Gases Asfixiantes, Venenosos e Similares, 17/6/1925. O Protocolo foi aprovado no Brasil pelo DL nº 39/70 de 1/7/1970. Ver em protocolo_genebra_proibicao_armas_bacteriologicas_guerra.pdf (usp.br)
[6] Convenção sobre as Armas Biológicas – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
[7] D0849 (planalto.gov.br). Os Protocolo I e II de 1977 foram promulgados no Brasil pelo DF nº 849/93 de 25/6/1993, que traz os seus textos integrais.
[8] Environmental Modification Convention – Wikipedia.
[9] Convenção da ONU sobre Armas Convencionais – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
[10] Resolução Assembleia Geral nº 46/37-D. N9142754.pdf (un.org)
[11] Advisory opinion on the Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons – Wikipedia
*Ricardo Cintra Torres de Carvalho é desembargador do TJ-SP.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 12/10/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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