Uma campanha de mini vilas olímpicas para uma Metrópole sujeita a desenvolvimento desigual
Breve nota do editor:
Recebi este primor de artigo, do meu querido amigo e professor Aziz Ab’Saber, no início deste século, no ano de 2000. Na época eu me encontrava na Secretaria do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo, ocupando o cargo em condições precárias, pois o Prefeito Régis de Oliveira, que me nomeara, havia assumido após a remoção de Celso Pitta por ordem judicial e a questão estava ainda pendente de decisão em grau de recurso no STJ. Nada então, pôde ser encaminhado. Posteriormente ele tornou a me enviar para que eu analisasse a possibilidade de articular uma insersão do tema na campanha dos candidatos. Estávamos então às vésperas das eleições para a prefeitura, em 2004. O artigo ficou parado na memória do meu computador… e de lá foi para o arquivo do meu escritório. Eis que, fazendo uma busca nos arquivos, me deparei com essa preciosidade, a qual continua tão atual quanto dezoito anos atrás e.. ainda mais valorizada ante o fracasso retumbante do projeto oficial da Vila Olímpica do Rio. Espero que tenham todos uma boa leitura e redescubram esse gênio que tanta falta faz à ciência, daqui e do mundo. (A F Pinheiro Pedro)
Por Aziz Ab’Saber
As oportunidades de lazer que as populações das periferias possuem são tão exíguas e deploráveis, que nos obrigaram a uma incursão demorada sobre o seu mundo real. Na realidade, a idéia de realizar uma campanha pública a favor de mini vilas olímpicas consolidou-se em função de uma (re)visita meditada sobre o cotidiano do homem e das famílias, nas margens esquecidas de uma região metropolitana submetida a um perverso subdesenvolvimento. Os resultados dessas observações nos deixaram alguns “flach’s” a serem considerados por todo um conjunto de cidadãos.
Sem emprego e sem dinheiro, a maior parte da população periférica não tem condições de participar dos espaços abertos da Metrópole Central. Sendo que a Metrópole Intermediária — em diversos sentidos tão dinâmica — não possui infra-estruturas minimamente adaptáveis às expectativas dos jovens e adultos, moradores de periferias carentes. Nessa conjuntura, plena de limitações, as comunidades pobres se sentem enclausuradas e impotentes.
Aos sábados e domingos — os dias mais importantes para os jovens desterrados da periferia urbana —, utilizam-se pequenas glebas, ocasionalmente vazias, para treinar e jogar, limitados ao mais popular dos esportes praticados no Brasil. Os espaços dessas práticas, na maior parte dos casos, são os terrenos de fundo de vales, ainda não ocupados, pertencente ao município, ou a particulares ansiosos por mercadejar seus terrenos periféricos indiferentes às restrições de uso no eixo desarranjado dos pequeninos cursos d’água. Agora, o antigo riacho meandroso ficou na categoria popular de águas espraiadas, perdendo fluxos por meses devido à urbanização caótica.
Nesses fundos de vales ou em terraços artificiais talhados nas colinas e vendidos a preços aviltados por prefeitos bisonhos, existem os únicos espaços factíveis para o esporte preferido dos jovens. Espaços de disponibilidade temporária, a qualquer hora sujeito à construção de fábricas ou galpões, ou loteados para a obtenção de lucros fáceis e garantidos. Em raros casos, dentre eles, ocorrem grupos de espectadores curiosos em observar o desempenho de alguns jogadores que cedo se destacam.
Quando começam aparecer barraquinhas de petiscos baratos e venda de refrigerantes, as autoridades deveriam se alertar sobre o fato de que ali existe um embrião de mini vila olímpica. Conviria logo, comprar readquirir ou desapropriar o aludido terreno, com vistas a implantação progressiva, sob projetos em módulos de um espaço público polivalente, de elevado interesse comunitário.
É possível pensar que mini vilas olímpicas que venham a ser implantadas — em repiquete, — nos mais diferentes e fatíveis terrenos pré-identificados pelos jovens, possam constituir um componente de transformação social e cultural de importantes setores das imensas periferias de São Paulo. Em um exemplo a ser seguido por outras grandes cidades do país.
Não se pode pensar, entretanto, apenas no projeto construtivo caro e limitador. O principal — a essência mesmo do projeto — deve estar voltado para o cultural e a conquista da cidadania.
Pensamos em uma mini vila olímpica que se desdobre em uma festa semanal das comunidades do entorno. Um ponto de encontro em que as mães estejam mais próximas dos seus filhos, protegendo-os do manhoso aliciamento por narcotraficantes. Um espaço preferencial dos sábados e domingos, que seja capaz de retirar os pais adultos das margens dos balcões dos bares e restaurantes, onde apenas existe a possibilidade de tomar a sua cervejinha tradicional.
Um lugar de desdobramento de práticas esportivas, interessado às diversas preferencias da comunidade sobretudo dos jovens. Uma área de maior abrangência esportiva, voltada para o futebol, o voleibol, o basquete; incluindo espaços para corridas, passeios em trilhas. Talvez um dia, a piscina; mais, de imediato, a “escola” de capoeira, o coral e o teatrinho comunitário. E, a oportunidade de alguns iniciarem a discussão dos problemas de seu bairro, exigir a atenção dos poderes públicos, e implantar centros de alfabetização de adultos.
Acrescentando inovações educativas informais, paralelas ao ensino público formal, tão degenerado e insuficiente culturalmente falando, ainda que com muitas e raras exceções, poderá ocorrer um processo crescente e desdobrativo em que se dê respaldo e melhor categoria às rádios comunitárias; e que se façam um efetivo combate à violência e aos valores negativos da condição humana. Enfim, um feixe de objetivos que realizem a passagem de uma mini vila olímpica em um rústico porém funcionante clube da comunidade periférica, sobretudo um centro de defesa da Democracia.
Para tornar possível a implantação de uma mini vila olímpica é necessário começar pela identificação dos diferentes tipos de terrenos vazios onde as crianças, e sobretudo os adolescentes, praticam futebol nos feriados ou fins de semana.
Cada terreno observado possui uma conformação diferente ou similar, obrigando a ligeiras adaptações dos projetos. Sendo que para que eles sejam viáveis, é necessário que sejam modulares e de implantação progressiva. Pelo menos em sua fase inicial, independentemente de melhorias futuras, pressupõe-se pequenos projetos, simbólicos e de baixo custo. Para não dizer, de baixíssimo custo.
Tratando-se de terrenos vazios, de meio a dois ou três hectares, pensa-se em uma seqüência de implantações. Primeiramente, em um tratamento linear do entorno, marcado por três a seis palmeiras imperiais, nos quadrantes externos do terreno, sob espaçamento de 8 metros. No canto mais próximo das moradias dos pais, há que estabelecer um pequeno rancho das crianças, bem ideado, incluindo bancos laterais e mesas para exercício de desenhos, concurso de redação, por mais singela que elas sejam. Incluindo, se possível, um “baú” de livros infantis, pré- selecionados e atraentes. Alguém da comunidade se encarregará de distribuir pranchetinhas e papel para os exercícios de desenho e modesto concurso de redação, ou listagem dos problemas de seu bairro, segundo a ótica de cada um. Os recursos necessários para construir o “ranchinho da cultura” orçariam apenas em algumas centenas de reais, ao par com os esforços costumeiros da auto—gestão comunitária (mutirão).
Os outros componentes do embrião de uma mini vila olímpica seriam dois ranchos mais amplos, a serem implantados em sítios ligeiramente mais elevados, para que se possa ter uma visão mais abrangente do espaço total. Um desses ranchos deveria ser dedicado à presença das mães, a fim de que elas pudessem ficar mais próximas de seus filhos em uma área de lazer organizado. O outro, seria um espaço para os adolescentes dele se utilizarem em dias de chuva, ou para descanso entre as práticas esportivas mais cansativas ou para capoeira ou para coral, ou para o teatro popular. Próximo dos edifícios rústicos, sanitários femininos e masculinos de uma aprimorada qualidade e asseio sob uma certa vigilância comunitária. Dois anexos que funcionem como vestiários decentes para os esportistas.
Nessa idealização para a fase inicial das mini vilas olímpicas, pode-se pressupor doações de pessoas esclarecidas e sensíveis: fogões para a cozinha comunitária semanal ou quinzenal no pequeno pavilhão das mães; refrigeradores usados funcionantes; livros e cartilhas para o chamado “baú de livros” para crianças e adolescentes; materiais para as diferentes atividades esportivas (bolas, raquetes, redes, faixas demarcadoras coloridas, entre outras); pratos e talheres para cozinha comunitária quinzenal ou semanal; banquetas para os principais edifícios das mini vilas olímpicas, entre outros equipamentos funcionais, indispensáveis e prioritários. Daí porque um compartimento fechado, relativamente pequeno, no rancho das mães e outro no rancho dos adolescentes.
O tempo se encarregará de implantar o palanque do teatrinho popular, enquanto a escola de capoeira permanece no rancho dos adolescentes, segundo dias e horários pré-estabelecidos. E, assim, um dia, chegará a vez de uma piscina, num momento em que as mini vilas olímpicas, dirigidas por comunidades de moradores, venham a se transformar em ativos clubes das comunidades da Periferia. N
ada obsta em modificações e acréscimos de funções e atividades na trajetória de cada mini vilas olímpica. O que está acima de tudo é a constituição de um novo e atraente patrimônio de comunidade capaz de dignificar crianças, adolescentes e adultos em utilizando os valores culturais mais nobres de uma rica cultura popular.
Devemos esclarecer, nesse sentido, que nos inspiramos muito nas atividades desenvolvidas em alguns pátios escolares, incluindo-se nisso a força de que é dotada a merenda em termos de uma alimentação mínima para as crianças carentes. Nossa proposta, porém, procura atender o imenso volume da população pobre periférica, assim como melhorar e incentivar as iniciativas que partiram dos próprios adolescentes que elegeram as práticas esportivas como uma de suas preferências essenciais.
No que se refere à Educação — como já expressamos em muitas ocasiões — o problema é mais amplo e complexo. Os pátios das escolas, por menor que fossem (e, alguns são relativamente grandes) deveriam receber oficina de diversas naturezas, na condição de treinamento para conhecimentos técnicos modernizantes, capazes de facilitar e qualificar os menores na sua futura inserção profissional e sócio — econômica. Mesmo porque, entendemos que o melhor tratamento que se possa dar à Educação em um país de escala continental e de sociedade extremamente desigual, será aquela que se apoie em três blocos potencializadores e indutores: a recuperação seletiva do conhecimento acumulado, um esforço permanente para abranger a regionalidade física, ecológica, social e cultural da área de vivência do alunado, e, um conjunto de “oficinas” para treinamento e identificação de vocações.
Uma escolha variável caso a caso, e sobretudo de região para região. Computação, quase sempre. Na beira mar, oficina para feitura de um barco, rede de pesca, um aquário significativo, culminando com ensinamentos sobre a engrenagem e o funcionamento de um motor de popa. Uma oficina para culinárias nutritivas, através de gastos mínimos. Outra, para o bom uso das águas e precauções para evitar a poluição hídrica. Uma oficina para que enfermeiras residentes na região expliquem e realizem medidas de pressão, índices de glicemia, importância diferencial dos alimentos. Em muitos casos, uma oficina tipo Caixa Econômica, para que os meninos premiados por suas notas e educação tenham um dinheirinho quando terminarem seus cursos. No mesmo local, um rol de pequenos equipamentos escolares, a preço de custo: canetas Bic, lápis de cores, cadernos e papéis brancos, réguas, cola, borrachas ou corretores, pranchetinhas para desenhos e exercícios. Oficina para o desenvolvimento da arte de fazer maquetes: a Maquete da Escola, a maquete de uma mini vila olímpica, a planta de uma “casa de meus sonhos”. A oficina do recorte e classificação e artigos e noticias de jornais, com (re) leitura crítica semanal para os interessados.
Enfim, oficinas selecionadas, entre muitas e muitas idéias, para um aprendizado que paralelize e minimize a formalidade da escola tradicional. Tudo com a ajuda voluntária e graciosa de alguns missionários da nacionalidade.
Estratégias simples para a verdadeira construção da cidadania.
A viabilidade da proposição de um novo tipo de parque distrital, adaptada às áreas metropolitanas periféricas, é um fato absolutamente incontestável, desde que se adotem estratégias factíveis como algumas detalhadas no presente estudo.
As vésperas de eleições municipais é possível comprometer partidos e candidatos com a idéia mestra para uma campanha por mini vilas olímpicas. Devido ao fato de que a Grande São Paulo comporta mais do que três dezenas de municípios, alguns dos quais dotados de amplas, densas e violentas periferias, seria ideal que o plano mestre da mini vila olímpica fosse realizado por uma instituição pública de abrangência metropolitana, que fosse ativa, anti — burocrática e disposta a discutir idéias.
Na lamentável ausência de um órgão metropolitano dotado de inteligência e poder, a campanha por uma rede de mini vilas olímpicas tem que seguir outras trajetórias, bem mais lentas e frágeis.
O detalhamento aqui realizado, na categoria de pré — projeto e tendo por base uma área — piloto em testagem, constitui um apelo aos cidadãos sensíveis e de bom senso voltados para o social, no contexto do desenvolvimento desigual.
Talvez outros tenham idéias e projetos diferentes e de implantação mais rápida e menos sofrida. Alegarão outros com evidente superficialidade que seria melhor abrir os pátios das escolas municipais e estaduais para uma clientela mais diversificada.
Tanto melhor! Que algo possa ser feito e surtir efeito.
Junho/2.000
Aziz Nacib Ab’Saber (São Luís do Paraitinga, 24 de outubro de 1924 — Cotia, 16 de março de 2012) foi geógrafo e professor universitário brasileiro. Referência em assuntos relacionados ao meio ambiente e a impactos ambientais decorrentes das atividades humanas. Foi um professor polivalente, laureado com as mais altas honrarias científicas em geografia, arqueologia, geologia e ecologia. Era Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP e ex-presidente e atual Presidente de Honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Embora aposentado compulsoriamente no final do século XX, manteve-se em atividade até o fim da vida.
.