Por Marcelo Bedoni e Talden Farias*
A ação dos Tribunais de Contas em matéria de clima encontra fundamento no caput do artigo 225, segundo o qual incumbe ao poder público defender e preservar o meio ambiente em prol das gerações presentes e futuras [1]. Trata-se de uma obrigação que diz respeito a todo e qualquer ente federativo, poder constituído ou órgão público, mormente em tempos de crise climática.
Esses tribunais já possuem um dever climático dentro das suas funções tradicionais, que são a de verificar a questão contábil, financeira, orçamentária e patrimonial propriamente ditas, bem como observar também critérios de legalidade, legitimidade, economicidade e operacionalidade na fiscalização das pessoas físicas ou jurídicas que respondam ou que assumam obrigações em nome do poder público.
Foi por isso que o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu analisar a atuação brasileira na crise climática mundial [2], pois se entende que a omissão ou a atuação errada nessa matéria pode causar sérios e irreversíveis prejuízos econômicos ao Estado e aos serviços e políticas públicas de forma geral. De acordo com o inciso II do artigo 1º do Regimento Interno, a competência do TCU abrange “realizar, por iniciativa própria ou por solicitação do Congresso Nacional, de suas casas ou das suas respectivas comissões, auditorias, inspeções ou acompanhamentos de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e demais órgãos e entidades sujeitos à sua jurisdição”. Não se pode ignorar que o Brasil se comprometeu a enfrentar essa problemática quando instituiu, em 29 de dezembro de 2009, a PNMC, bem como ao ratificar o Acordo de Paris, em 12 de setembro de 2016.
Essa obrigação do TCU ficou ainda mais evidente depois que o STF julgou no ano passado a ADPF 708, que fazia parte da chamada Pauta Verde, determinando que o Executivo não poderia restringir as verbas do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) haja vista a obrigação constitucional de se proteger o clima. Conforme o voto do ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, “trata-se do principal instrumento federal voltado ao custeio do combate às mudanças climáticas e ao cumprimento das metas de redução de emissão de gases de efeito estufa”. A ementa do acórdão deixou claro que a omissão climática deve ser combatida:
“(…)
2.Os documentos juntados aos autos comprovam a efetiva omissão da União, durante os anos de 2019 e 2020. Demonstram que a não alocação dos recursos constituiu uma decisão deliberada do Executivo, até que fosse possível alterar a constituição do Comitê Gestor do Fundo, de modo a controlar as informações e decisões pertinentes à alocação de seus recursos. A medida se insere em quadro mais amplo de sistêmica supressão ou enfraquecimento de colegiados da Administração Pública e/ou de redução da participação da sociedade civil em seu âmbito, com vistas à sua captura. (…)
(…)
4. Dever constitucional, supralegal e legal da União e dos representantes eleitos, de proteger o meio ambiente e de combater as mudanças climáticas. A questão, portanto, tem natureza jurídica vinculante, não se tratando de livre escolha política. Determinação de que se abstenham de omissões na operacionalização do Fundo Clima e na destinação dos seus recursos. Inteligência dos artigos 225 e 5º, §2º, da Constituição Federal (CF).
5. Vedação ao contingenciamento dos valores do Fundo Clima, em razão: 1) do grave contexto em que se encontra a situação ambiental brasileira, que guarda estrita relação de dependência com o núcleo essencial de múltiplos direitos fundamentais; 2) de tais valores se vincularem a despesa objeto de deliberação do Legislativo, voltada ao cumprimento de obrigação constitucional e legal, com destinação específica. Inteligência do artigo2º, da CF e do artigo 9º, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal — LC 101/2000 (LRF). Precedente: ADPF 347 MC, relator ministro Marco Aurélio.
(…)”.
Foi em razão disso que na sessão de 16 de agosto de 2023 o TCU autorizou fiscalização com o objetivo de “[…] identificar e avaliar os arranjos institucionais, a estrutura de governança, os atores, as estratégias, as políticas e os instrumentos delineados pelo Governo Federal para enfrentamento da crise climática” [3]. Para o Relator do processo, o Ministro Vital do Rêgo Filho, a proposta “[…] inaugura novo momento entre as ações do Tribunal, ao direcionar foco para a forma como o estado brasileiro tem se preparado para desenvolver ações no âmbito da questão climática” [4]. Tal iniciativa partiu da Unidade de Auditoria Especializada em Agricultura, Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico (AudAgroAmbiental), e deverá envolver, na modalidade de auditoria operacional, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, a Casa Civil da Presidência da República e o Ministério das Relações Exteriores.
Uma análise mais detalhada sobre essa modalidade da fiscalização se faz necessária. Em primeiro lugar, o Manual de Auditoria Operacional do próprio TCU define a auditoria operacional como o “[…] exame independente, objetivo e confiável que analisa se empreendimentos, sistemas, operações, programas, atividades ou organizações do governo estão funcionando de acordo com os princípios da economicidade, eficiência, eficácia e efetividade e se há espaço para aperfeiçoamento” [5]. Tais auditorias analisam as chamadas “dimensões de desempenho”, formada pelos “quatro Es”, que são economicidade, eficiência, eficácia e efetividade. Não se pode negligenciar a conceituação de cada uma dessas dimensões, que às vezes são complexas e de difícil compreensão.
A economicidade, a primeira dessas dimensões, pode ser compreendida como a “[…] minimização dos custos dos recursos utilizados na consecução de uma atividade, sem comprometimento dos padrões de qualidade” [6]. Essa dimensão é alcançada quando os recursos estão “[…] disponíveis tempestivamente, em quantidade suficiente, na qualidade apropriada e com o melhor preço” [7].
A eficiência, a segunda dimensão de desempenho, trata da “[…] relação entre os produtos (bens e serviços) gerados por uma atividade e os custos dos insumos empregados para produzi-los, em um determinado período, mantidos os padrões de qualidade” [8]. O próprio Manual do TCU entende o conceito de eficiência como relativo, isso significa que a auditoria precisa adotar algum tipo de comparação [9].
A eficácia, por sua vez, consiste na “[…] capacidade da gestão de cumprir objetivos imediatos, traduzidos em metas de produção ou de atendimento, ou seja, a capacidade de prover bens ou serviços de acordo com o estabelecido no planejamento das ações” [10]. Na análise dessa dimensão, o Manual do TCU instrui que as metas adotadas e os fatores externos, como restrições orçamentárias, precisam ser levadas em consideração na auditoria [11].
A quarta dimensão de desempenho é a efetividade, que significa o “[…] alcance dos resultados pretendidos, a médio e longo prazo” [12]. A análise da efetividade exige uma verificação se “[…] os resultados observados foram realmente causados pelas ações desenvolvidas e não por outros fatores” [13]. Do ponto de vista metodológico, essa dimensão exige uma relação de causalidade entre as variáveis da política e os efeitos observados, a partir de comparações com uma estimativa do que aconteceria caso a política não tivesse sido criada [14].
Uma derivação da efetividade, apontada pelo Manual, é o exame da equidade, que exige o reconhecimento da “[…] diferença entre os indivíduos e a necessidade de tratamento diferenciado” [15]. Assim, “[…] equidade é garantir as condições para que todos tenham acesso ao exercício de seus direitos civis (liberdade de expressão, de acesso à informação, de associação, de voto, igualdade entre gêneros), políticos e sociais (saúde, educação, moradia, segurança)” [16].
Assim, torna-se clara a importância da auditoria operacional que será conduzida pelo TCU na política climática federal. A eficácia e a efetividade, por exemplo, são critérios relevantes para analisar se os instrumentos regulatórios criados pela União são suficientes para atender os objetivos da agenda climática e, ainda, se as metas climáticas de curto prazo foram atendidas. Sem dúvidas, o TCU pode e deve, agora, apresentar respostas consistentes para esses questionamentos.
Entretanto, é preciso também esclarecer e até apontar alguns pontos críticos que poderão aparecer na auditoria. No voto que aprovou a fiscalização na política climática federal consta a seguinte passagem sobre a natureza jurídica das metas climáticas: “Na vigésima sexta sessão da Conferência das Partes (COP-26) da UNFCCC, realizada em novembro de 2021, o Brasil se comprometeu com uma nova contribuição nacionalmente determinada, com metas mandatórias e quantitativas para redução da emissão de gases de efeito estufa até 2030. Na mesma COP, o Brasil se comprometeu a eliminar o desmatamento ilegal até 2028 e apoiar a redução da emissão do gás metano mundial, além de atingir a neutralidade climática até 2050, metas estas não-mandatórias” [17].
A passagem do voto acima merece correção, pois na verdade, não existem metas que são “não-mandatórias” na NDC brasileira. O uso da expressão de meta não-mandatória pode ocasionar a falsa compreensão de que algumas metas previstas na NDC brasileira não possuem qualquer obrigação jurídica. O Acordo de Paris, no Artigo 4, item 2, estabelece que “Cada Parte deve preparar, comunicar e manter sucessivas contribuições nacionalmente determinadas que pretende alcançar. As partes devem adotar medidas de mitigação domésticas, com o fim de alcançar os objetivos daquelas contribuições” [18]. Esse dispositivo é um dos fundamentos normativos da Contribuição Nacional Determinada — Nationally Determined Contributions (NDC), na sigla em inglês.
A forma mais técnica de interpretar a natureza jurídica das NDCs é por meio de uma obrigação de conduta, nesse sentido, o comprometimento de metas climáticas internacionais devem pressupor uma transformação de estruturas e instituições econômicas, políticas e jurídicas, de modo a permitir e sustentar um desenvolvimento de baixas emissões de gases de efeito estufa [19]. Desse modo, não há fundamento no Acordo de Paris para metas “não-mandatórias”, pois todo e qualquer compromisso assumido pelos países nas NDCs criam obrigações de conduta, não obstante haja flexibilidade e revisibilidade nessas metas.
Além disso, a política climática internacional também possui instrumentos próprios e inovadores para avaliar os avanços das medidas adotadas pelos países-partes [20], a exemplo da Avaliação Global (Global Stocktake), prevista no Artigo 14, item 1, do Acordo de Paris, que estabelece que as COPs serão responsáveis por “[…] avaliação da implementação […] para determinar o progresso coletivo na consecução do propósito deste Acordo e de seus objetivos de longo prazo […]” [21]. A primeira avaliação global será efetivada neste ano, no final da COP-28, e o resultado deve subsidiar as partes para que atualizem e fortaleçam as ações propostas nas NDCs e intensifiquem a cooperação internacional para a ação climática [22].
Assim, pela dinâmica do Acordo de Paris, o Estado brasileiro deve apresentar metas ambiciosas em suas NDC’s, a chamada “ambição estatal”, mas, ao mesmo tempo, deve contribuir de forma coletiva para aumentar a ambição da comunidade internacional em prol das ações climáticas, que pode ser denominada de “ambição do tratado” [23]. A principal meta coletiva do Acordo de Paris é a obrigação de contenção da temperatura global do sistema terrestre [24], em um aumento inferior a 2ºC e preferencialmente de 1,5ºC até o final do século. Desse modo, a política climática brasileira deve ser construída a partir de ambição interna, mas também de instrumentos coletivos com a comunidade internacional. Não se pode perder de vista que o enfrentamento da crise climática exige a participação e a colaboração entre todos os países, de modo que essa realidade não pode ser dissociada na política climática doméstica.
No que diz respeito às auditorias climáticas, o TCU pode auferir o orçamento, averiguar os impactos causados pela administração pública direta e indireta, checar os objetivos, as conformidades, metas, práticas e resultados das políticas climáticas públicas estabelecidas em lei às entidades ou órgão públicos nacionais, além da possibilidade de verificação e monitoramento quanto à implantação ao e cumprimento de tratados internacionais ambientais dos quais o Brasil é signatário [25]. Não se pode esquecer que, segundo o citado caput do artigo 225, o meio ambiente é um patrimônio público, sendo os biomas classificados como patrimônio nacional no § 4º desse dispositivo. Há decisões dessa corte reconhecendo o dever de atuação no que diz respeito não apenas ao controle da legalidade, mas até da impropriedade em si, raciocínio o que pode e deve ser aplicado ao clima [26].
Assim, observa-se que a fiscalização do TCU na política climática federal pode trazer resultados positivos em termos de análise acerca dos critérios de economicidade, eficiência, eficácia e efetividade. O enfrentamento da crise que se avizinha exige, sem dúvidas, mais participação dos órgãos estatais, pois, como bem destaca Anthony Giddens, as mudanças climáticas demanda um Estado assegurador, capaz de “[…] monitorar os objetivos políticos e procurar certificar-se de que eles se concretizem de forma visível e aceitável” [27]. Existe, portanto, um vasto campo de atuação a ser trilhado pela corte nessa tão importante temática.
O fato é que essa problemática exige uma postura mais proativa em matéria não apenas de licitações e contratos administrativos, mas da própria eficiência climática da máquina pública como um todo, o que envolve a análise dos órgãos e das políticas públicas de forma geral. Essa atuação do TCU também deverá ter o condão de influenciar as Cortes de Contas estaduais e municipais, inserindo de vez a questão climática nesse tipo de agenda [28]. Nesse diapasão, estão de parabéns o ministro Vital do Rêgo Filho e o próprio TCU pela oportuna iniciativa, que deve ser replicada e aperfeiçoada pelos demais órgãos de controle.
[1] Além, obviamente, dos artigos 70 e 71 da Constituição da República de 1988.
[2] https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-vai-analisar-a-atuacao-brasileira-na-crise-climatica-mundial.htm#:~:text=O%20TCU%20vai%20analisar%20a,da%20atual%20crise%20clim%C3%A1tica%20mundial
[3] TCU. Processo TC 021.701/2023-7. Relator: Vital do Rêgo Filho. Brasília, 16 ago. 2023.
[4] TCU, 2023.
[5] TCU. Manual de Auditoria Operacional. 4. ed. Brasília: Secretaria-Geral de Controle Externo, 2020. p. 14.
[6] TCU, 2020, p. 16.
[7] TCU, 2020, p. 16.
[8] TCU, 2020, p. 17.
[9] TCU, 2020.
[10] TCU, 2020, p. 17.
[11] TCU, 2020.
[12] TCU, 2020, p. 17.
[13] TCU, 2020, p. 18.
[14] TCU, 2020.
[15] TCU, 2020, p. 18.
[16] TCU, 2020, p. 18.
[17] TCU, 2023a.
[18] BRASIL. Decreto n. 9.073, de 5 de junho de 2017. Promulga o Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, celebrado em Paris, em 12 de dezembro de 2015, e firmado em Nova Iorque, em 22 de abril de 2016. Brasília: Presidência da República, 2017.
[19] VOIGT, C. The Paris Agreement: What is the standard of conduct for parties? Questions of International Law, v. 26, p. 17-28, 2016.
[20] PEETERS, M. The global stocktake. In: CALSTER, G. V.; REINS, L. (Ed.). The Paris Agreement on Climate Change: a commentary. Cheltenham: Edward Elgar Publishin, 2021. p. 326-346.
[21] BRASIL, 2017.
[22] BRASIL, 2017, Artigo 14, item 2 e item 3.
[23] ZAHAR, A. Collective obligation and individual ambition in the Paris Agreement. Transnational Environmental Law, v. 9, n. 1, p. 165-188, 2020.
[24] ZAHAR, 2020.
[25] Auditorias Ambientais de Conformidade e Auditorias Ambientais Operacionais.
[26] Acórdão 1077/2015-Plenário | Relator: AROLDO CEDRAZ, Acórdão 3697/2013-Plenário | Relator: WALTON ALENCAR RODRIGUES e Acórdão 906/2015-Plenário | Relator: BRUNO DANTAS.
[27] GIDDENS, A. A política da mudança climática. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 96.
[28] Além do Tribunal de Contas da União, há no Brasil vinte e seis Tribunais de Contas Estaduais, um Tribunal de Contas do Distrito Federal, três Tribunais de Contas Estaduais dos Municípios (Bahia, Goiás e Pará) e dois Tribunais de Contas Municipais (Rio de Janeiro e São Paulo).
*Marcelo Bedoni é advogado e assessor jurídico especializado da PGE-RR, mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB, bacharel em Direito pela UFRR e membro da Laclima.
Talden Farias é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 04/09/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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