Por Antenor Pinheiro*
Vivemos realmente num país de sinais trocados. Enquanto o mundo civilizado articula suas políticas públicas de mobilidade com estímulo ao uso da bicicleta, no Brasil os órgãos de fiscalização do Sistema Nacional de Trânsito continuam a desmerecer essa tendência universal… e com requintes de crueldade!
No caso das polícias rodoviárias, o que se tem visto são atitudes mais que contraditórias com o uso das “magrelas”, seja como modal de transporte, seja como equipamento de esporte e lazer. Especialmente contra grupos de ciclistas que geralmente pedalam nos fins de semana em rodovias, essas polícias têm reprimido rigorosamente seu uso com a aplicação de multas, remoções a apreensões, porém, invocando preceitos legais não aplicáveis ao veículo bicicleta.
Alegam os policiais que instruem os autos de apreensão que os ciclistas promovem eventos sem autorização do órgão, entendendo equivocadamente que o Art. 174 do Código de Trânsito Brasileiro/CTB lhes dá o esteio legal para tal medida.
Na verdade, o CTB, não obstante seus avanços em relação ao anterior, pouco trata do uso da bicicleta, permitindo por isso entendimentos discricionários. O próprio Art. 174 é exemplo desse desprezo oficial, pois exige exercício invejável dos policiais que nele se baseiam para reprimir os ciclistas rodoviaristas.
Um grave equívoco, porque o Art. 174 que está no capítulo das infrações do CTB não foca os ciclistas, mas os motoristas. Basta observar o que está previsto nele como penalidade e medida administrativa. A penalidade fala da suspensão do direito de dirigir e a medida administrativa do recolhimento do documento de habilitação.
Logo, a exegese da lei clareia a aplicação do artigo citado como infração atribuída exclusivamente ao condutor de veículo motorizado, para o qual se exige o porte da Carteira Nacional de Habilitação. Ao que se sabe juridicamente, pelo menos até aqui, não se exige habilitação para conduzir bicicletas no Brasil. Logo, trata-se de abuso mesmo!
Bem verdade que pedalar em rodovias é perigoso, assim como nos espaços urbanos, principalmente num país de poucas vias cicláveis, onde predomina a cultura do automóvel. Quase ato heroico pegar a “magrela” e colocá-la nos sistemas viários sempre preferencialmente preparados para acomodar carros e motos. É por esta razão que há poucas disposições sobre o assunto no CTB, o que reflete nas políticas de infraestrutura das cidades e rodovias.
Todavia, nem por isso a bicicleta está impedida de circular livremente, individual ou coletivamente em grupos organizados ou como eventos. Ao contrário, a lei federal da mobilidade urbana (Lei 12.587/12) lhe garante preferência na modelagem das políticas públicas, embora isto ainda seja uma grave dificuldade para as decisões governamentais.
O próprio CTB, meio que envergonhado, admite a circulação das “magrelas” nas rodovias, embora pouco explícito e com devaneios que exigem parcimônia constante. Por este motivo requer bom senso na gestão do problema, e ao contrário do que estamos assistindo, o que as autoridades fiscalizadoras deveriam fazer é garantir a adequada proteção para que os ciclistas circulem com segurança. Este jeito inibido de conceber o veículo bicicleta no Brasil é que oportuniza atitudes oficiais arbitrárias contra os ciclistas, de norte a sul.
É como diziam as nossas avós, repita-se a lição: bom senso e canja de galinha não fazem mal a ninguém, muito menos bicicleta!
*Antenor Pinheiro, jornalista, comentarista da CBN Goiânia, e membro da Associação Nacional de Transportes Públicos/ANTP