Por Sibélia Zanon
- Tecnologia social inspirada em modelo da Índia beneficia principalmente mulheres agricultoras.
- Cerca de 2 mil biodigestores foram construídos e novos projetos estão em andamento para difusão da tecnologia no semiárido nordestino.
- Além do impacto positivo na economia familiar, na saúde humana e do meio ambiente, o uso do biodigestor gera o biofertilizante, usado na agricultura.
- Os biodigestores são melhor utilizados quando combinados a outras estratégias de fortalecimento das famílias, como as cisternas.
“Meu marido ia no curral do vizinho, pegava o esterco de porco e botava no biodigestor duas ou três vezes por semana e a gente cozinhava a semana todinha”, conta Fátima Souto, agricultora no interior de Pernambuco. “O povo se queixando que o gás estava caro e eu nem sabia o valor”. Membro da Associação Agroecológica de Agricultores do Sertão do Pajeú (AASP), Fátima possui um dos primeiros biodigestores construídos em São José do Egito, um dos municípios que compõem a Bacia Hidrográfica do Rio Pajeú no semiárido nordestino.
A construção de biodigestores artesanais começou em 2008 em Pernambuco. A tecnologia social, inspirada em modelo da Índia, é composta por uma caixa de carga, abastecida com água e esterco, um tanque de fermentação isolado do ar atmosférico e uma caixa de descarga. Os materiais entram em decomposição e geram o biogás que tem em sua composição o metano e pode ser usado para cozinhar, substituindo o botijão de gás.
“Não tem cheiro nenhum. Você dilui o esterco com água, coloca no local e pronto”, conta Iraneide Maria de Oliveira, agricultora de Afogados da Ingazeira, em Pernambuco. “É ótimo, só veio pra melhorar a nossa vida. Com o dinheiro que a gente deixa de comprar o botijão, que está quase 100 reais, a gente compra outra coisa, né?”
Biodigestor beneficia mulheres do sertão
A tecnologia que gera energia renovável tem impacto positivo na qualidade de vida das famílias agricultoras e beneficia principalmente as mulheres, muitas delas chefes de família e, historicamente, as principais responsáveis pelo trabalho doméstico, como o preparo de alimentos, abastecimento de lenha e provimento de água para beber e cozinhar. Por causa do alto preço do gás liquefeito de petróleo, é comum o uso da madeira em fogões a lenha, o que prejudica a saúde por causa da aspiração da fumaça e das cinzas geradas durante a queima.
“É nossa intenção diminuir cada vez mais a pressão sobre o bioma da Caatinga, que sofre com a extração de madeira para produção de energia, parte pelas famílias e parte muito mais significativa pela indústria, padarias, pizzarias e o gesso em algumas regiões do Nordeste”, diz Ita Porto, coordenadora do Território Sertão do Pajeú da Diaconia, organização social que divulga e implementa a tecnologia do biodigestor.
A Caatinga tem quase metade da sua área total desmatada e enfrenta processo de desertificação, que já atingiu cerca de 13% de seu território. A extração constante de madeira do bioma aumenta os índices de desmatamento inclusive na parcela de terra que pertence aos pequenos agricultores, impactando negativamente a flora e a fauna e gerando prejuízos econômicos a longo prazo.
Além de colaborar com a economia familiar, ter impacto positivo na saúde humana e no meio ambiente, o uso constante do esterco, proveniente da criação de animais do entorno, diminui emissão de gases de efeito estufa e faz com que os currais sejam constantemente limpos, o que evita a reprodução de moscas e pragas. O processo de produção do biogás tem ainda como subproduto o biofertilizante, esterco com menor quantidade de gases e rico em nutrientes, que serve como adubo orgânico para o pomar e os cultivos da agricultura familiar.
Multiplicar a tecnologia
Especialistas estimam que cerca de 2 mil biodigestores estão funcionando no semiárido nordestino. “No primeiro projeto foram construídas três unidades no município de Afogados da Ingazeira, em Pernambuco, e daí começou a crescer”, conta Mário Farias Júnior, coordenador da Organização da Sociedade Civil Cetra em Sobral, no Ceará.
Desde as primeiras instalações, em 2008, implementadas pelo Projeto Dom Helder Câmara com recursos do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), juntamente com a Diaconia, outros projetos incentivam e implementam a tecnologia. “Eu fiz várias capacitações na Bahia, no Maranhão, no Rio Grande do Norte, e no Ceará, em diferentes territórios”, afirma Mário.
Apoiada por agências financiadoras, a Diaconia construiu cerca de 500 biodigestores no semiárido nordestino, além de implementar a tecnologia em outras localidades do Brasil. O Cetra conta com recurso internacional para o projeto Biogás Sertão + 100, que pretende construir 100 biodigestores. Também deverá implementar mais de 800 biodigestores no âmbito do Projeto Paulo Freire, que é executado pelo governo do Ceará e financiado pelo Fida.
“A nossa intenção é de que isso possa, cada vez mais, se tornar uma política pública acessível para as pessoas produzirem a sua energia”, diz Ita. A Empresa Paraibana de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária (Empaer) conheceu a tecnologia dos biodigestores em Pernambuco e passou a instruir famílias a acessarem microcréditos. “Na Paraíba já existem experiências de mais de 10 famílias que acessaram microcrédito para construir o seu biodigestor”.
Estratégias de fortalecimento
Na Bacia do Rio Pajeú, que ganhou fama na música “Riacho do Navio”, do compositor Luiz Gonzaga, o clima semiárido é determinado por secas dramáticas e por período reduzido de chuvas, que ocorre geralmente de março a maio. A seca acomete também a nascente do Rio Pajeú e faz com que o rio cresça em importância simbólica na cultura do povo pajeuzeiro e na voz de Antônio Marinho, poeta de São José do Egito, que define o rio como “correnteza de encantamento que combinou com os céus e com o vento e abriu mão de ser água para ser verbo”. No contexto da seca, a produção de energia renovável por meio dos biodigestores está conectada a outras estratégias de fortalecimento para as famílias se manterem na região, como é o caso das cisternas.
“Eu tenho alface, cebolinha, coentro. Aqui no nosso sertão tem problema de água. Para aguar as coisas precisa ter muita água. Agora a gente está começando a plantar. Antes não podia porque só tinha a água da cisterna para o consumo humano”, diz Iraneide, que em 2017 participou do projeto Moradia com Ecodignidade, iniciativa da Diaconia no âmbito do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), e recebeu uma casa com tecnologias integradas, como cisterna de primeira e segunda água, tecnologia do reuso de água e biodigestor. Sem água, não há plantio e sem o plantio, a segurança alimentar fica comprometida. E o biofertilizante, produzido pelo biodigestor, não rende frutos.
“Um saco de milho aqui está 110 reais”, conta Fátima. Com a crise, por causa do coronavírus, muitos venderam seus animais. “Tinha época que eu tinha mais de 400 galinhas. Eu vacinava elas. Agora com essa crise, cadê a vacina?” Por causa do preço alto do milho e, ironicamente, por não ter encontrado as vacinas necessárias para as galinhas, Fátima e também seus vizinhos venderam grande parte de seus animais. Com a falta do esterco, Fátima precisou diminuir também o uso do biodigestor, mas a agricultora tem planos para o futuro. “Eu tive que vender as galinhas, mas fiquei com as sementes”, conta. Com as sementes do milho, Fátima quer produzir alimento para os animais com quem sonha compartilhar novamente seu meio hectare de terra.
Fonte: Brasil Mongabay
Publicação Ambiente Legal, 01/07/2021
Edição: Ana A. Alencar
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