Relatório prevê mais chuvas no Centro-Sul e secas no Nordeste
Por Vitor Lillo
O clima de todas as regiões do Brasil pode ficar entre 3° e 6°C mais alto até o final deste século, segundo estimativas do primeiro relatório de avaliação do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) que será divulgado durante a 1ª Conferência Nacional de Mudanças Climáticas Globais, em setembro.
Esse documento, dividido em três partes é considerado o mais completo diagnóstico das tendências futuras do clima no país. Envolveu mais de 300 especialistas de várias áreas e contou ainda com o sistema de computadores do Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre (Besm, na sigla em inglês), o único modelo próprio do Hemisfério Sul.
Coordenador do Besm, o meteorologista Paulo Nobre do Instituto Nacional de Pesquisas Meteorológicas (INPE), prevê temporadas de clima extremo mais comuns no futuro. “Algumas pessoas dizem ‘tem mais neve, não tem aquecimento’. Essas alternâncias de extremos são a assinatura mais evidente das mudanças climáticas”.
“E só pra ilustrar”, continua Paulo Nobre, “aprendi na faculdade que o Atlântico Sul não oferecia condições dinâmicas para o surgimento de furacões e tivemos em 2006 o Catarina. Então há algo de muito estranho, não no Reino da Dinamarca, mas na República Federativa do Brasil.
E como será que o nosso país, tão distante de ser o maior poluidor do planeta e ao mesmo tempo tão distante da tecnologia de ponta para enfrentar os efeitos dessa elevação das temperaturas vai passar por esse período tão delicado? Quais serão os efeitos sobre o campo e a cidade? Algumas pistas já estão por aí.
Pouca água, pouco feijão
O Nordeste é um importante produtor de milho, arroz, feijão, algodão e mandioca, elementos básicos da nossa dieta. A região poderá ser duramente afetada pela elevação da temperatura com a queda da intensidade de chuvas, estimada pelo PBMC em 40%. Mas mesmo que essa intensidade não mude existe ainda outro problema.
Tal como o ser humano, terra e plantas perdem água por causa do calor. Esse processo recebe o complicado nome de evapotranspiração. A elevação da temperatura, o intensifica o fenômeno e retira a umidade do solo além de afetar os lençóis freáticos, fundamentais para o plantio em regiões mais secas, como o Nordeste, por exemplo.
Além da falta de água do Semiárido existe o problema das pragas agrícolas, este nacional. Pesquisadores apontam que culturas como as de soja, milho, café, arroz, feijão, banana, manga e uva – em decorrência da elevação dos níveis de CO2 do ar, da temperatura e da radiação ultravioleta B, podem agravar doenças e fungos que danificam as plantações.
“Se a gente mantiver a chuva de hoje e esse clima, vamos ter uma perda de produção agrícola especialmente porque no Brasil a produção é de sequeiro, ou seja, não usa irrigação. Essas lavouras podem ser afetadas e isso varia de cultura para cultura”, explica Fabio Marin, professor da ESALQ-USP.
Enquanto isso no Centro-Sul do país o problema será o aumento da intensidade de chuvas (cerca de 40%) e a maior alternância de temperaturas extremas como geadas, nevascas, chuvas e secas. “Algumas culturas podem ser beneficiadas, como a cana-de-açúcar. Quando pegamos outras de colheita mais curta, como a soja, podemos esperar algo de ruim”, explica Marin, citando duas importantes commodities da região.
E isso não é tudo. Essa alternância entre períodos de cheias e secas, de acordo com o relatório do PBMC, devem também alterar a vazão dos rios e prejudicar o abastecimento dos reservatórios das hidrelétricas, e levar à perda de biodiversidade nos ambientes aquáticos e terrestres, como o cerrado (47%) e caatinga (44%).
Os efeitos sobre a agricultura já podem ser dimensionados. A última década assistiu a queda na produção de café, soja e milho por conta das alterações do clima. A estimativa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é de que os prejuízos com essa queda cheguem a R$ 7,4 bi por ano até 2020. Soluções sustentáveis existem, mas agricultores estão preparados para elas?
“Eles já sabem discutir, conversar, a questão é como me adaptar a essa situação. Até pra nós de que desenvolvemos tecnologia também é um desafio. Estamos começando só agora a nos movimentar. Porque agora temos a certeza que o clima vai mudar. Sabemos que o impacto é certo e vamos trabalhar atrasado”, afirma Fabio Marin.
Sufoco na cidade
Todo mundo sabe que quanto mais grave é a situação no campo pior é o reflexo para as cidades, por conta do êxodo rural. Atualmente, 80% da população da América Latina reside em cidades, segundo dados da ONU. Duas metrópoles do planeta estão nessa região, uma delas é São Paulo.
A cidade sofre há décadas com a poluição e os efeitos dela, principalmente durante a temporada de chuvas. Tudo isso é agravado pelo descaso do Poder Público que permitiu a urbanização descontrolada que asfixiou seus dois principais rios ao longo do último século.
A conclusão do relatório do PBMC é muito clara: ampliar o número de áreas verdes nas grandes cidades deve ser prioridade. “A gente precisa efetivar os parques lineares, grandes extensões de vegetação. Quanto mais equilibrarmos a temperatura, melhor ficará o clima”, opina a professora Pérola Felipette, da Universidade Mackenzie.
Ainda de acordo com a urbanista, será ainda mais urgente a questão de refrigeração e umidificação das cidades cortadas por rios, como São Paulo. “Uma árvore grande pode ‘transpirar’ até 400 litros por dia. Uma área vegetada ao longo de um rio ou de uma avenida tem uma grande influência no microclima da cidade”, completa.
Essa mudança, contudo, não se aplica somente fora, mas dentro das edificações. “É importante ter espaço adaptado e não climatizado, como é muito comum em prédios e espaços privados. Essas diferenças de temperatura causam desequilíbrio na nossa fisiologia corpórea”, sustenta Maria Solange Gurgel, da UNESP-Bauru.
Parques lineares são uma solução no combate à erosão do solo causada pela impermeabilização do solo, reflexo do crescimento desordenado que afetou principalmente as cidades costeiras, nas quais residem 85% da população brasileira. O resultado é visto sempre nas temporadas de chuva: deslizamentos e mortes.
“Um planejamento sério, envolvendo profissionais de várias áreas, conhecimento mais apurado do território, levando em conta a área, o terreno […] um projeto sério, com continuidade, tendo isso é um passo pra gente resolver os problemas”, defende Maria Solange.
Resta saber se cidadãos e administradores públicos estão preparados para as mudanças inevitáveis e as necessárias. “Eu acho que teremos tempo pra nos adaptar [às mudanças climáticas], o que não significa que nós ficaremos confortáveis. A nossa preocupação deveria ser mais focada na qualidade de vida”, alerta Pérola Felipette.
Olhar para frente
Prever o imprevisível é uma constante na função do meteorologista, que diariamente precisa analisar uma série de dados atmosféricos das superfícies terrestre e marítima. Ocorre que esses dados são analisados separadamente, o que dificulta a realização de previsões mais precisas. Atender essa necessidade é o grande trunfo do Besm.
“É um modelo acoplado: o que acontece na atmosfera altera o oceano que altera a atmosfera. Por exemplo, se chove por muito tempo, morre a vegetação, e se falta evaporação, afeta a atmosfera. O segredo [do modelo brasileiro] é esse: as interações entre eles nos afetam mutuamente”, explica Paulo Nobre, do INPE.
Graças ao Besm será possível saber com maior precisão o que ocorrerá nas próximas décadas. Foi em cima dos dados fornecidos dessa ferramenta que se fez a previsão de elevação das temperaturas no Brasil para o próximo século. Mas apesar deste grande avanço, é preciso fazer mais.
“O Brasil é uma nação de escala continental, então houve um aumento na melhoria das observações, mas temos carências de dados e de um aumento na densidade das redes observacionais. Para a previsão climática não adianta apenas as observações do continente, mas também as oceânicas para saber como os oceanos estão mudando, porque os oceanos são os grandes moduladores [do clima]”, explica Nobre.
Assim como o meteorologista precisa entender a relação entre terra, mar e ar para a formação de uma nuvem, cada cidadão deve enxergar relação entre seus hábitos e a encruzilhada climática em que nos encontramos agora. Afinal, podemos não ser capazes de cravar se o Brasil vai ficar três ou seis graus mais quente no futuro, mas nós seremos os responsáveis.