Dúvidas… dúvidas… dúvidas
Por Marcos Buckeridge*
Numa viagem recente, acidentalmente tive uma oportunidade de comparar carros elétricos de diferentes tipos nos Estados Unidos.
Em visita a amigos no Colorado, fomos ver as belezas das montanhas. Para viajar até lá, a família tinha à disposição um carro totalmente elétrico e outro híbrido.
Tive a oportunidade de pegar carona nos dois e comparar. O totalmente elétrico fica na tomada por toda a noite (o carregamento normal, indicado pela fábrica, leva 6,5 horas, mas há possibilidade de carregamento rápido de 30 minutos) e carrega bateria que confere aos motoristas uma autonomia de 170 milhas a -4oC (cerca de 270 km, mas o manual fala em 440 km – tudo depende de como e onde se dirige). No caso do híbrido, ele fica na tomada entre uma e quatro horas. Com o tanque cheio, se via queda discreta no nível do tanque do combustível líquido e uma queda muito rápida da carga da bateria.
A escolha para um passeio mais longo feita por esses amigos sempre foi o híbrido, justamente porque, para subir até as montanhas, o totalmente elétrico perde autonomia e há poucos pontos de reabastecimento.
A sensação de andar num totalmente elétrico é interessante. Silêncio no motor e somente o atrito dos pneus e a turbulência do vento emitem som.
Nas discussões sobre carros elétricos ou não, a questão gira em torno do benefício ambiental que a tecnologia oferece. Minhas perguntas preferidas são de onde vem a eletricidade, e se provém de fonte emissora de CO2 ou não.
Em geral, a resposta demora a vir, pois as pessoas ficam confusas, mas nesse caso, com amigos que conhecem bem o assunto, a resposta veio rápido: há um corte de 50% das emissões, mesmo com os EUA usando gás natural (que é fóssil) e, se quisermos comparar com a Europa, a origem seria o carvão das termoelétricas, exceto pela França, que usa energia nuclear.
Minha pergunta seguinte é sobre o lítio nas baterias. O que fazer com ele depois? Como ele é produzido?
Há informações de que o consumo de água para a mineração do lítio no Chile está começando a secar aquíferos, de tanto que se usa do precioso fluido para a extração.
Agora imagine um combustível que evita 90% ao invés de 50%. Este é o etanol brasileiro, com distribuição por todo o País e oferecendo a opção flex na maioria dos automóveis.
Acho perfeitamente compreensível que os europeus, que não têm a opção do etanol – a não ser que importassem – tenham decidido se tornar climaticamente neutros até 2050 eliminando completamente a automação a diesel e gasolina mesmo antes desta data. A decisão é acompanhada por uma série de benefícios para a produção e o consumo de carros e vans elétricos.
Já no caso dos americanos, os primeiros produtores de álcool (de milho) do mundo, as coisas poderiam ser diferentes. Eles têm terra e uma excelente agricultura. E têm também um sistema de acréscimo de álcool à gasolina, o que já diminui as emissões de forma bem razoável. Vá lá, eles têm uma demanda enorme e precisam de muita energia para alimentar o país.
Mas e o Brasil? E a América Latina? Devem seguir os europeus e os americanos e eletrificar completamente as suas frotas?
Uma pergunta difícil de responder com todos os detalhes, principalmente nesse espaço pequeno aqui. Mas é possível discutir o tema e colocá-lo em perspectiva para que a sociedade brasileira possa formar uma opinião.
No meu primeiro artigo desta coluna de agosto de 2022 eu abordei a história do etanol no Brasil e separei o processo histórico em três fases. Na fase 3, a partir em 2023, iniciaremos na USP os primeiros testes em escala para produzir eletricidade a partir do etanol.
A expectativa da fase 3 é que poderíamos chegar a ter todo o transporte (carros, vans, ônibus, caminhões e até trens) feito a partir do etanol de cana e outras biomassas.
Temos sido sempre questionados se o Brasil tem em suas mãos o potencial para suprir etanol para tudo e ainda exportar para países europeus, asiáticos e norte-americanos.
Para se ter uma ideia, o Brasil produz hoje cerca de 64 bilhões de litros de etanol, usando somente metade da cana que produzimos (a outra metade vai para produzir açúcar). Isso tem bastado para suprir o mercado interno de etanol e ainda exportar. A esmagadora maioria desse etanol é de primeira geração (1G), feito a partir da garapa (açúcares livres, principalmente a sacarose).
O etanol 1G não é aceito como produto de exportação, pois os europeus alegam que nós tivemos de destruir florestas para colocar cana no lugar.
Tecnicamente, isto é chamado de “uso da terra”. Estabeleceu-se uma ideia cientificamente falsa de que, se formos expandir a produção de etanol, teríamos de avançar sobre florestas e sobre plantações de alimentos.
Apesar de já termos demonstrado numa das mais renomadas revistas do Hemisfério Norte que este argumento é falso, a teimosia (ou estratégia) continua sendo usada pelos europeus.
O Estado de São Paulo já vem recuperando suas florestas ao longo de décadas e já calculamos que as florestas sequestram 18 vezes mais carbono que os canaviais.
Em outras palavras, o argumento europeu e americano sobre o uso da terra (sem considerar que já destruíram suas próprias florestas) não é cientificamente válido. Além disso, parecem não se preocupar com a água gasta para minerar o lítio para as baterias.
Mas há vantagens econômicas na estratégia do carro elétrico e provavelmente vão querer empurrar sua indústria e impor a tecnologia sobre nós.
Do ponto de vista estratégico para o Brasil, por que não usar também o etanol como solução, mesmo que seja através da eletrificação a partir do hidrogênio verde produzido diretamente do etanol?
A indústria brasileira precisa pensar nisso. Há opiniões de que o Brasil deveria seguir a onda mundial e eletrificar. Este argumento tem algum sentido, afinal o Brasil tem sido um “seguidor” do Hemisfério Norte em vários aspectos. Se formos no sentido de adotar a indústria de carros elétricos aqui e, como consequência, “desligarmos” o sistema já implantado do etanol combustível, não estaríamos transferindo empregos e renda para outros países?
Seria o ideal para o Brasil adotar completamente a eletrificação, só porque é a moda no momento, para satisfazer a necessidade de status de alguns brasileiros ao comprar um carro elétrico?
No caso do etanol de cana, nós somos os líderes no mundo, tanto na tecnologia como na pesquisa científica. Será que não seria o momento de se impor e propor uma solução mais adequada e demonstrar ao mundo que é possível ir além na tecnologia de renováveis?
Com o etanol 2G e o sistema etanol-H-elétrico, mais o potencial gigantesco que temos se usarmos integralmente os resíduos das três principais culturas agrícolas brasileiras – cana (bagaço e palha), soja e milho –, poderíamos suprir o mercado interno com sobra, assim como mercados de vários outros países.
A questão que se impõe está nas mãos da indústria e do governo brasileiros. Vamos querer desenvolver as tecnologias necessárias para usarmos plenamente este potencial? Ou seguiremos o que ditam os países desenvolvidos?
É preciso se organizar, reconhecer e valorizar o nosso potencial científico e industrial. E pensar se não seria o caso de considerar o setor energético também da perspectiva do etanol, fornecendo a base para a reindustrialização que precisamos no País.
O carro elétrico é sem dúvida uma boa opção, mas não a única. Temos de prestar atenção de onde a eletricidade virá. E o Brasil, na área de energias renováveis, está bem à frente do resto do mundo.
Nota:
Artigo publicado originalmente no Jornal da USP (Universidade de São Paulo) – https://jornal.usp.br/?p=625029 Publicado: 05/04/2023
*Marcos Buckeridge é Professor Titular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Foi Presidente da Associação dos Estudantes e Pesquisadores na Grã-Bretanha (1993 e 1994) e Presidente da Sociedade Botânica de São Paulo por dois mandatos (2001 à 2005). Entre 2015 e 2019 Buckeridge foi presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. Em outubro de 2018 foi eleito Diretor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. É membro do Instituto de Estudos Avançados da USP, membro do grupo de cientistas responsável pelo Relatório AR 5 do IPCC – ONU e Conselheiro integrante do Comitê Consultivo de Política e Ações Climáticas da Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas do Município de São Paulo.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 16/04/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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