Por Marco Arrais
Nos meus tempos de criança, acreditava-se que a inocência era tirada por Deus ao se completar os sete anos de idade.
Lá pelos doze, quando começava o empenujamento no pé da estrovenga, perdia-se a infância. E a partir daí a coisa mudava, e para pior.
Qualquer deslize, o cacête comia no lombo do infeliz, pois cabra com voz destemperada parecendo sanfona rasgada, já era dado a contar mentiras, a ser enrolão e a praticar senvergonhice. Merecia observação acurada e vigilância constante.
Pouco antes de perder minha santa inocência, com seis anos e alguns meses, fui intimado por minha mãe, de que deveria ir até a Igreja do Sagrado Coração de Maria, perto de casa, e me apresentar ao padre Benedito. Ela me matriculara nas aulas de catecismo, onde aprenderia as bases da doutrina da Santa Igreja, na preparação para a Primeira Comunhão. Minha irmã Sônia, um ano mais nova que eu, também iria.
No sábado seguinte, às quatro horas da tarde, nos apresentamos ao padre encarregado da orientação de um bando de meninos e meninas, todos muito curiosos e interessados sobre os ensinamentos que receberíamos.
Embora tivesse nascido aos oito meses, adiantado um mês da data correta, uma criatura de peso insignificante, acabamento incompleto, feio de danar e sem garantia de sobrevivência, escapei. Aos seis anos já era taludinho, e foi por isso que o tal padre instrutor me escolheu para um serviço de muita responsabilidade, no dia em que foi nos demonstrar como havia sido o sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, no caminho para sua crucifixação.
Para minha satisfação e a inveja dos outros meninos, fui incumbido de carregar uma cruz de madeira, de mais ou menos um quilo e meio. Segurando a cruz pela base, sustentada à altura do peito, lá fui eu todo orgulhoso, à frente da turma, passar por todos os quadros da via crucis, emoldurados nas paredes.
Só que aí foi o início da minha via crucis.
Por orientação do padre não deveria baixar a cruz nem um pouco, mantendo-a no alto, à vista de todos. A partir do terceiro quadro, a coisa começou a desandar. O cruz foi ficando cada vez mais pesada, e o padre cada vez mais minucioso ao explicar cada passagem.
No quadro em que Jesus entra no cacête, e é coroado com espinhos, a demora foi bem avultada. Foi descrito com minúcias as lambadas com chicotes que tinham nas pontas espinhos de ferro amolados, para cortar o couro. As cacetadas nas pernas e nos braços, socos no rosto e chutes no corpo inteiro. O sangue de Jesus escorria pelo chão, e os malvados pisavam nele, na maior falta de respeito.
Os meninos arregalavam os olhos e as meninas soluçavam, assustadas.
Nos quadros das três quedas de Jesus, descrevia com total exatidão as feridas por elas provocadas, o couro dos joelhos e cotovelos arrancados pelas pedras que calçavam as ruas, e tudo debaixo de chicotadas e sob o peso de uma cruz enorme. O povo aplaudia e vaiava o Salvador, pedindo que batessem mais forte. O padre afirmava que aquele povão malvado estava no inferno, na fogueira do capeta.
Nessa altura do roteiro, eu já estava quase frouxo de cansado, com os braços doloridos, as pernas bambas e com uma dor desgraçada na coluna. Mas não podia baixar a cruz de jeito nenhum, pois seria uma ofensa àquele que tanto sofreu para me salvar.
Com o olho comprido, via lá no final o último quadro quando Jesus, levantando vôo, subia aos céus. Só que até ali ele nem havia sido pregado na cruz, e a canseira era muita. A narração do padre era cada vez mais pormenorizada, e hoje, depois de adulto, suspeito que ele devia ter estado lá, para saber tanto.
Embora ciente do pecado que estava cometendo, desejava muito que chegasse logo no quadro da morte de Jesus, pois estava quase desabando de fadiga e dor nas juntas.
Quando finalmente terminou, estava eu todo esbodegado, quase chorando. Foi então que o padre, colocando-me à frente de todos, perguntou-me se estava cansado, com o corpo doendo. Um pouco amedrontado, respondi que sim. Então ele afirmou que o sofrimento de Cristo havia sido muito maior, e que era para pensarmos nisso. Nessa hora, prometi a mim mesmo que nunca mais carregaria outra cruz.
No mês seguinte, numa missa muito bonita, eu de terno branco e minha irmã vestida como uma pequena noiva, fizemos nossa primeira comunhão. A única lembrança que nos restou foi uma fotografia mal retocada, onde nossas bocas ficaram que nem essas bocas de hoje, com o tal de botox. Quando minha irmã ficou adolescente, rasgou todas as fotos dela menos uma que eu havia surrupiado e usei para atormentá-la, mostrando-a às suas amigas e namorados.
Na minha adolescência ir à missa era obrigatório, além de confessar os pecados ao padre Vitale. O padre Vitale era um confessor atento, esperto, chegava a adivinhar quando a gente escondia um pecado mais graúdo, principalmente se era um pecado descambado para a safadeza.
Depois de ajoelhar-me no confessionário travávamos, quase sempre, o seguinte diálogo:
Menino Marquinho, como vai vovó?
A vovó está boa, padre, e mandou lembranças pro senhor.
Como vai papai?
O papai está bem.
Como vai mamãe?
Ela está boa, padre.
Como vai titia?
A tia também está boa, padre.
Agora menino vai contar pro padre Vitale os pecados que cometeu. Não esconda nada, pois Jesus viu tudo.
Isso numa voz arrastada, encompridando as vogais, no seu sotaque de holandês.
Aí eu desfiava os pecados de um moleque de doze anos de idade, que ia de matar passarinho, responder aos mais velhos, brigar na rua, fumar cigarro de palha sem fumo, além de uma ou outra malineza mais graúda, como colocar bombinha acesa em boca de sapo.
Ele não se dava por satisfeito, e arrematava:
Menino não contou tudo. Padre Vitale vai perguntar e não pode mentir: Menino bateu punheta? Menino fez bobagem com as porcas a as galinhas da chácara? Conta tudo, que Jesus viu e vai castigar!
Já que havia o testemunho de Jesus, não adiantava negar, e meus crimes eram entregues de bandeja. Só que ficava matutando sobre a necessidade de confessar para ele, se Jesus já sabia de tudo. A penitência, conforme o volume das faltas era uma tantas Aves Maria, Pai Nossos, e o infalível Credo. Saía da missa com a consciência leve, livre do perigo de ir para o inferno, pelo menos naquela semana.
Minha mãe teve, durante boa parte de sua vida, um sonho irrealizado. Era que eu entrasse para um seminário e fosse ser padre. Enquanto era pequeno, concordava com ela e dizia que iria, para sua satisfação.
Naquele tempo a Igreja tinha um movimento denominado Santas Missões. Uns padres de fora corriam as paróquias, atrás de meninos que, “chamados por Deus”, iriam para os inúmeros seminários para estudarem e tornarem-se futuros sacerdotes.
Estava eu na minha escola, em sala de aula, quando apresentou-se um padre, dizendo que estava recolhendo aqueles que Deus escolhera para seu serviço. E os que fossem, tinham sido escolhidos antes mesmo de nascer, pois eram os preferidos, os mais amados.
Sem pensar, levantei a mão me apresentando. Meu nome foi anotado num livro grande, de onde saiam uma fitas vermelhas, e era cheio de selos e gravuras, que ao meu ver deveriam ser de ouro, pois brilhavam muito. Uma coisa linda de se ver! Endereço anotado, ficou de passar em casa no dia seguinte.
A alegria de minha mãe foi enorme, e toda a vizinhança ficou sabendo do futuro padre. No dia seguinte, o sacerdote foi à minha casa. Era um homem de voz mansa, calma, e parecia um tiozão, sem a brabeza dos meus tios de verdade.
Ficou marcado que no final do ano, ao terminarem as aulas, viria me buscar. Minha mãe, pobrezinha, era costureira. Passou os meses seguintes preparando o enxoval do seu padrezinho. Quase todo dinheiro que ganhava, era convertido em camisas, calças, meias novas e dois pares de sapato novos, estes comprados dias antes da data marcada para a viagem.
Só que a coisa, para o meu lado, começou a desandar. Justamente nessa época, descobri uma revistas de mulher pelada denominadas “Saúde e Nudismo”.
Eram do meu tio e padrinho de crisma Wilson, e estavam bem embrulhas e escondidas numa caixa, em um depósito de tranqueiras. Aquele tesouro, com tanta fotografia de mulher pelada foi minha perdição. A vocação para o sacerdócio esvaiu-se diante de tanta beleza e encantamento! A natureza despertara no menino o desejo pelas mulheres, e os pecados punhetórios que seriam futuramente confessadas ao padre Vitale, foram aprendidos e praticados a partir dessa época.
Fiquei numa enrascada. Se fosse ser padre, nunca iria ter namorada, e andava doido para beijar uma menina que morava perto de casa. Ouvia, dos moleques mais velhos, histórias de agarramento com namorada, pegação nas coxas e nas partes lá das mulheres. A vontade de fazer isso era tanta, que até sonhava.
Ficava apavorado com a aproximação da data fatídica, quando seria levado para longe de casa, afastado dos meus irmãos e amiguinhos. Iria para um lugar que só ia ter homem, e como padre, nunca iria ter namorada. Aquilo me deixava num desespero danado.
Finalmente, chegou o dia. Só que quem apareceu para me apanhar, foi um outro padre. Era um homem muito magro, altíssimo, feio pra danar, e ainda falava enrolado. Hoje, penso que seria espanhol. Tinha olhos esbugalhados e a sua arcada superior era para fora da boca, que nem uma gengiva de trem de ferro.
Aterrorizado, chorando, disse que não queria mais ir. Minha mãe ficou brava, com vergonha da minha falta de palavra. E para piorar, o padre feioso dizia que “Ressus” tinha mandado me buscar, e estava me esperando. Aque jeito esquisito dele falar fazia com que parecesse uma visagem, pois eu nunca tinha visto alguém assim.
Minha mãe fechou questão. Eu tinha que ir.
Até então meu pai estivera à parte, sem dizer nada. Foi então que deu seu parecer: “Meu filho não vai”.
Pediu desculpas ao padre feioso, mas não iria me forçar.
Mamãe ficou muitos dias brava comigo, mas depois a coisa caiu no esquecimento. Alguns anos depois ela me disse que felizmente isso não deu certo, pois eu me revelara totalmente imprestável para tão santa missão.
Foi nessa época que ganhei o apelido de “Seu Pinheiro”, dado pela minha segunda mãe, a Mãe Nega, por ser namorador e dar muito trabalho por causa dos rolos que arrumava com mulheres bem mais velhas que eu. Era esse o nome de meu bisavô, famoso que foi por ser, no final do século XIX, um femeeiro famoso lá para os lados de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo.
Mas isso é outra história.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
Goiânia, 25/09/2016