Por ocasião da Flink Sampa – Festa da Literatura, Conhecimento e Cultura Negra realizada em novembro de 2014, o professor de Direito Penal da Faculdade Zumbi de Palmares, o advogado Hédio da Silva Júnior, falou dos desafios do Direito diante das novas dimensões da cidadania brasileira.
Política de cotas raciais
Do ponto de vista de política pública é um sucesso absoluto. Todos os dados sobre o desempenho dos estudantes que ingressaram pelo sistema de cotas, ao contrário do que muita gente pensava – que não dariam conta de acompanhar os cursos ou que os cursos iriam sofrer algum reflexo negativo – demonstram que estes alunos têm o mesmo desempenho daqueles que ingressam pelo sistema universal.
No curto prazo nós vamos ter uma demonstração inequívoca de que a política de cotas melhora a pesquisa e a qualidade da produção acadêmica justamente porque trás a pluralidade para o ambiente acadêmico.
A maioria dos brasileiros reconhece que esta é uma política necessária. E ninguém em sã consciência defende as cotas como algo permanente. Hoje existem políticas para mulheres nas candidaturas partidárias, para pessoas com deficiência… Quiçá em 30 anos a gente não precise ter e todos possam desfrutar de igualdade.
Criminalização do racismo
Nós estamos completando este ano, 26 anos da Constituição de 1988 e quase 26 anos da lei que criminalizou o racismo. Na verdade, a primeira de 1951, a Lei Afonso Arinos, considerava a discriminação uma mera contravenção penal. Ela foi revogada pela Constituição de 38.
A lei penal tem hoje um grau de aplicação muito pequeno. Essa tendência é positiva, não no sentido que não deva ser aplicada, mas porque a Norma Penal é aplicada para a conduta mais grave, mais ofensiva. No cotidiano as pessoas usam cada vez mais a legislação Civil. Então, cresce o número de indenização por dano moral, por problemas de relação de consumo e tantas outras. Isso demonstra que se existe uma parte do corpo que as pessoas sentem dor, é sem dúvida, o ‘plexo bolsal’.
O Direito tem sido chamado a enfrentar as novas dimensões da cidadania. As ONGs, que hoje desempenham um papel importante na produção de política pública, têm reivindicações. Os movimentos sociais que lutam por igualdade, contra a discriminação, têm reivindicações. Os grupos religiosos minoritários cada vez mais vão ao Judiciário reivindicar a igualdade de direitos. Então, você precisa ter quadros preparados para essas demandas.
Qual foi a opção que fizemos na Zumbi dos Palmares? Nós estamos preparando operadores do Direito, pessoas que irão agregar um valor humanitário, uma visão mais fina dos problemas contemporâneos, com comprometimento para o combate de qualquer forma de intolerância.
Meio ambiente cultural
Um dos grandes paradoxos do século XXI é que muitos seres humanos têm dificuldade de conviver com outros seres humanos. Mesmo com a Internet relativizando fronteiras, 75% dos conflitos armados em curso no planeta hoje acontecem devido à incapacidade de convivência com a diversidade.
Numa sociedade plural como a nossa, o Estado democrático não pode pender nem para um lado, nem para o outro. Ele tem que fazer valer o sistema jurídico para garantir que os diferentes atores possam se expressar num ambiente de respeito recíproco.
Justiça Ambiental
Muitas vezes eu vejo grandes oradores do movimento ambiental falando sobre a diversidade biológica e da fauna brasileira e perdem de vista a diversidade humana. Isso é altamente desafiador. O nível de acúmulo que nós temos sobre isso no Brasil é muito pequeno, mas não é possível pensar o planejamento urbano, como é que melhoramos as nossas cidades e a convivência, se não pensarmos a Justiça Ambiental.
Há uma razão para que um determinado grupo sofra mais as mazelas da forma como aquela cidade está organizada do que outros. Isso não é fruto do ocaso. São decisões políticas.
Esse mosaico cultural e religioso de certa maneira tem um espaço de convivência no cotidiano, o que não significa que não haja discriminação. Podemos dar o exemplo de como é que se constrói uma sociedade plural, em que a diversidade conviva harmoniosamente.
Para isso você precisa reconhecer que há problemas e é nisso que essa ideia de Justiça ambiental pode ser muito útil, no sentido de pensarmos para o futuro plataformas de qualidade de vida mais equânimes.
Questão fundiária e tendência higienista
Há um levantamento segundo o qual o Brasil teria mais de quatro mil quilombos, um legado presente da resistência escrava – as pessoas rompiam com o sistema escravista, se afugentavam em regiões inóspitas e ficavam ali resistindo.
Poucos sabem, mas não há nenhuma comunidade de quilombo no Brasil que reivindique título individual de propriedade. É sempre coletivo. O que as pessoas querem é a propriedade da terra para produzir, criar seus filhos e manter suas tradições culturais. Hoje 40% destas comunidades têm escola.
O bem-estar dessas comunidades pode vir a ser um reflexo da forma igualitária e inovadora como o Brasil trata a presença africana e dos negros nessas terras. Está previsto textualmente na Constituição de 88 a titulação das comunidades quilombolas como política pública. Se tivesse acontecido, teria significado uma espécie de reforma agrária étnica no Brasil.
Obsolescência das estruturas da Justiça
O Estado tem por vocação institucionalizar o conflito – demarcação de terras indígenas, as demandas das comunidades tradicionais de quilombos, mas isso não é tudo. O importante é: o Estado tem ouvido as pessoas? Há fóruns onde a pessoa possa chegar e de fato externar, compartilhar uma angústia, um problema? As agências públicas têm que manter canais de comunicação mais frequentes e eficazes com os atores sociais cada vez mais difusos.
Lembro-me quando lidava com a temática de quilombo, íamos para as comunidades muito preocupados com insumos agrícolas, com estrada vicinal, e o sujeito dizia: ‘olha, de certa maneira a economia de subsistência está indo, o que nós queremos é o título’. Era a segurança de que aquilo é dele e que os filhos não vão ser expulsos da terra.
Vocação Palmares
Você resolve o grave problema da discriminação com uma sociedade cada vez mais inclusiva, em que a igualdade não seja só um ideário, uma letra morta.
O nosso Reitor, José Vicente, insiste que a Universidade deve ser um centro formativo de quadros com uma perspectiva mais humana, mais plural do Direito e da Educação. Nossa vocação é ser um polo de produção de conhecimento e de prestação de serviço na questão da diversidade.
Fonte: http://www.flinksampa.com.br/index.php/seminario-internacional
https://www.ambientelegal.com.br/tv-ambiente-legal-hedio-silva-junior/
Hédio da Silva Jr foi militante do movimento negro desde os anos 70, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB e ex-secretário da Justiça do Estado de São Paulo.