Hora de acabar com a omissão e tratar de onerar quem efetivamente está lucrando na crise…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O tema, nesse período de consertos e concertos institucionais, no enfrentamento da enorme crise econômica, social e política que se abate sobre o Brasil, é o aumento da carga tributária sobre quem não tem mais como suportar qualquer outra carga: o povo brasileiro.
Pensando nisso é preciso pegar a lupa na gaveta para olhar com mais cuidado o que está escrito em nossa legislação tributária, pois, do contrário, podemos aceitar uma carga que deveria, de há muito, ter sido transferida a quem hoje lucra, e muito, na economia brasileira.
Nesse sentido, peço a atenção do leitor para uma excrescência aposta na legislação, que garante ganhos absurdos a quem já tem muito, e retira do tesouro valores que deveriam, por um princípio de justiça tributária, abastecer o Estado em benefício da sociedade e da cidadania. Senão vejamos:
O princípio da capacidade contributiva
A chave para a Justiça Tributária está no principío da capacidade contributiva.
O princípio visa tributar os desiguais desigualmente, impondo tributação mais onerosa àqueles de detêm maior concentração de riquezas.
Em nada difere a razão da justiça fiscal pela capacidade contributiva da antiga lição introdutória do direito brilhantemente ministrada pelo Professor Gofredo da Silva Telles, quando ainda estava eu nos bancos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco: “onde há fracos e fortes, a liberdade escraviza, o direito liberta”.
É nesse sentido que o princípio da capacidade contributiva, fundamenta o sistema tributário.
A lição maior vem do direito fiscal português, cujo artigo 4° da Lei Geral Tributária reza: “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou de sua utilização e do patrimônio”.
Assim é que, se a capacidade econômica dos cidadãos é afetada pela carga tributária, torna-se necessário que a igualdade, a generalidade e a capacidade contributiva atentem para a capacidade econômica de cada contribuinte, a fim de não gerar distorções que afetem o princípio de justiça material, que constitui fundamento da tributação.
No Direito Tributário Brasileiro, a primeira menção da capacidade contributiva foi feita na Constituição de 1824, que dispunha, em seu art. 179, § 15 que: “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção a seus haveres”.
Ou seja, desde os tempos do império, a lei determina que todos devem contribuir na proporção dos seus recursos.
A atual Constituição Federal também contempla o princípio, no parágrafo 1º do artigo 145, que reza:
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
A excrescência da dedução de juros sobre capital próprio
Pois bem. Da reforma do estado, nos anos FHC, ao período populista lulo-dilmista, parece que algo se perdeu no movimento legisferante do fisco sobre os ganhos do cidadão contribuinte.
Essa ação voraz, paradoxalmente, gerou benefícios a quem deveria ser onderado, onerando, ao fim e ao cabo, quem deveria ter a capacidade contributiva preservada…
No período, nenhum outro setor foi tão beneficiado tributariamente como o grande capital, notadamente os bancos. E os benefícios vieram em forma de lei.
É o caso do surgimento da chamada “dedução de juros sobre capital próprio”, um benefício fiscal único, sem paralelo na legislação tributária estrangeira, inventado pelo legislador tupiniquim.
O mecanismo foi introduzido no governo FHC, no bojo da modificação do imposto de renda das pessoas jurídicas e contribuição social sobre o lucro líquido, por meio da Lei n. 9.249, no apagar das luzes do ano, em 26 de dezembro de 1995, e “empoderado” no governo Dilma, pela Lei 12.973/2014.
Consta no artigo 9º e no artigo 10 da Lei 9.249/95 o seguinte:
“Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP.
§ 1º O efetivo pagamento ou crédito dos juros fica condicionado à existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados.” (…)
§ 2º Os juros ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de quinze por cento, na data do pagamento ou crédito ao beneficiário.
(…)
§ 6º No caso de beneficiário pessoa jurídica tributada com base no lucro real, o imposto de que trata o § 2º poderá ainda ser compensado com o retido por ocasião do pagamento ou crédito de juros, a título de remuneração de capital próprio, a seu titular, sócios ou acionistas.
§ 7º O valor dos juros pagos ou creditados pela pessoa jurídica, a título de remuneração do capital próprio, poderá ser imputado ao valor dos dividendos de que trata o art. 202 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sem prejuízo do disposto no § 2º.
§ 8º Para fins de cálculo da remuneração prevista neste artigo, serão consideradas exclusivamente as seguintes contas do patrimônio líquido:
I – capital social;
II – reservas de capital;
III – reservas de lucros;
IV – ações em tesouraria; e
V – prejuízos acumulados.
§ 9º À opção da pessoa jurídica, o valor dos juros a que se refere este artigo poderá ser incorporado ao capital social ou mantido em conta de reserva destinada a aumento de capital, garantida sua dedutibilidade, desde que o imposto de que trata o § 2º, assumido pela pessoa jurídica, seja recolhido no prazo de 15 dias contados a partir da data do encerramento do período-base em que tenha ocorrido a dedução dos referidos juros, não sendo reajustável a base de cálculo nem dedutível o imposto pago para fins de apuração do lucro real e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido.
§ 10. O valor da remuneração deduzida, inclusive na forma do parágrafo anterior, deverá ser adicionado ao lucro líquido para determinação da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido.
§ 11. O disposto neste artigo aplica-se à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
§ 12. Para fins de cálculo da remuneração prevista neste artigo, a conta capital social, prevista no inciso I do § 8o deste artigo, inclui todas as espécies de ações previstas no art. 15 da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, ainda que classificadas em contas de passivo na escrituração comercial.
Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.
§ 1o No caso de quotas ou ações distribuídas em decorrência de aumento de capital por incorporação de lucros apurados, a partir do mês de janeiro de 1996, ou de reservas constituídas com esses lucros, o custo de aquisição será igual à parcela do lucro ou reserva capitalizado, que corresponder ao sócio ou acionista.
§ 2o A não incidência prevista no caput inclui os lucros ou dividendos pagos ou creditados a beneficiários de todas as espécies de ações previstas no art. 15 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, ainda que a ação seja classificada em conta de passivo ou que a remuneração seja classificada como despesa financeira na escrituração comercial.
§ 3o Não são dedutíveis na apuração do lucro real e da base de cálculo da CSLL os lucros ou dividendos pagos ou creditados a beneficiários de qualquer espécie de ação prevista no art. 15 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, ainda que classificados como despesa financeira na escrituração comercial.
Segue-se ao caput dos artigos, como se vê, um rosário de parágrafos (alguns dos quais tratei de poupar o leitor), regrando o instituto, o qual, ainda que pareça constituir uma desoneração voltada a incentivar quem empreende, em verdade, beneficia efetivamente as corporações detentoras de grandes lucros, em especial o sistema financeiro.
A injustiça tributária em forma de desoneração do grande capital
É preciso focar no básico (como dizem os americanos: back to the basics), para não cair na armadilha adrede preparada pelos proselitistas bancados pelo grande capital: em qualquer país decente, a distribuição dos lucros se dá após o pagamento do imposto. Só no Brasil surge a possibilidade legal de, em certa medida, se atribuir os juros sobre capital próprio a dividendos.
Além disso, a lei permite a dedução dos Juros de sobre o Capital Próprio – comumente chamado JCP, da base de cálculo do imposto de renda das empresas e da contribuição social, reduzindo ainda mais o imposto a pagar das corporações que efetivamente lucram…
É a negação da justiça fiscal, a inversão da capacidade contributiva em desfavor do tesouro, privilegiando quem muito lucra.
Com efeito, se o dispositivo fosse simplesmente eliminado, o Brasil não apenas voltaria a ter um regime tributário justo e compatível com o resto do mundo (neste ponto…), como também a arrecadação da receita seria incrementada em valor superior a 10 bilhões de reais por ano.
Para se ter uma ideia, o valor em causa, perdido com a dedução em favor dos bancos e outras grandes corporações, é muito maior que o que o governo federal divulgou pretender arrecadar com o recente aumento da carga tributária (contribuições) sobre os combustíveis – carga essa que recaiu sobre toda a economia e onerou indiscriminadamente todos os cidadãos brasileiros…
O atentado contra a Justiça Tributária, advindo da omissão do Poder Público em buscar revogar o dispositivo da “dedução de juros sobre capital próprio”, fica mais patente quando se observa o gravame causado pelo aumento do tributo sobre os combustíveis na cadeia logística e no preço dos alimentos, em pleno período de crise, enquanto os bancos e demais agentes financeiros, além de grandes empresas nacionais extratoras de minérios e outras commodities apresentam lucros estratosféricos e vêem-se beneficiadas pela política fiscal, que deveria justamente tributar seus lucros…
Resumindo, com a manutenção do regime de dedução sobre os JCP, quem está lucrando em plena crise, sofre menor carga tributária que quem está lutando ferozmente para sobreviver…
O mais incrível é que, enquanto se amplia a contribuição social sobre atividades importantes para a economia popular, há a omissão com relação a um benefício dado a quem lucra, e que atinge exatamente as contribuições sociais…
Dilma Rousseff amplia o privilégio tributário ao grande Capital
Já não bastasse o absurdo legal inoculado há tempos na legislação do imposto de renda, o governo Dilma Rousseff, ao final do seu primeiro mandato, enquanto vociferava a retomada do regime de benefícios em prol da socialização da economia, ampliou o presente de papai noel concedido aos bancos e grandes corporações, editando a Lei 12. 973 / 2014, que estabelecia a ampliação com retroação das deduções, na forma seguinte:
“Art. 73. Para os anos-calendário de 2008 a 2014, para fins do cálculo do limite previsto no art. 9o da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, a pessoa jurídica poderá utilizar as contas do patrimônio líquido mensurado de acordo com as disposições da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
§ 1o No cálculo da parcela a deduzir prevista no caput, não serão considerados os valores relativos a ajustes de avaliação patrimonial a que se refere o § 3o do art. 182 da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
§ 2o No ano-calendário de 2014, a opção ficará restrita aos não optantes das disposições contidas nos arts. 1o e 2o e 4o a 70 desta Lei.”
Aparentemente, diriam os proselitistas em favor do grande capital, “os ganhos proporcionais não seriam grandes”… se o computo nominal não resultasse em valores estratosféricos.
Dilma Rousseff, consolidou com a norma retroativa, a visão sobre quem realmente mandava no país…
A omissão de quem está “careca” de saber…
Chega a revoltar a omissão das autoridades da fazenda, frente ao mecanismo da desoneração dos JCP, enquanto clamam por aumento na carga tributária sobre cidadãos que não têm mais o que extrair para si, seus familiares e suas arruinadas finanças.
É fato que o governo mantém no comando da gestão econômica, um competente líder do setor financeiro, ciente mais que qualquer outro profissional da injustiça legalmente mantida pela legislação em favor do grande capital. É fato, também, que esse mesmo líder pretende avançar a carga tributária sobre o povo.
Se a autoridade econômica, portanto, resolver analisar objetivamente o mecanismo legal, certamente o suprimirá, atendendo ao princípio da capacidade contributiva, como forma concreta de aplicação do princípio da igualdade e caminho adequado para efetivação da justiça tributária, conferindo melhor distribuição de renda, proteção das dignidade e da qualidade de vida dos cidadãos, e justiça tributária também aplicável a quem mais ganha sobre todos os aspectos na economia brasileira – o sistema financeiro e o grande capital.
Seria, portanto mais sensato, se a Presidência da República ou o Congresso Nacional buscassem esclarecimentos com relação ao mecanismo da JCP , de forma a impor a justiça tributária revogando o benefício.
A sugestão minha, portanto, é concreta: suprima-se o instituto na legislação tributária para onerar quem está lucrando, e muito, resgatando para o tesouro bilhões que por si só já cobririam parte do rombo fiscal, hoje cobrado injustamente dos contribuintes comuns.
Com a supressão dessa excrescência legal, a justiça fiscal seguiria a Constituição, o setor financeiro lucraria “um pouco menos” e a carga tributária não se abateria de forma tão absurdamente injusta a quem já luta para pagar suas contas e cobrir os juros escorchantes cobrados, justamente pelos bancos – beneficiados pela imoralidade em forma de regra legal.
Como diria Millôr Fernandes, “os bancos não perdem por esperar! Aliás, ganham… com juros e por mês…”
Com a palavra o povo brasileiro.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.