Por Kevin Damasio
- Prestes a iniciarem o trabalho, algumas das 146 coletoras indígenas da Rede de Sementes da Bioeconomia Amazônica (Reseba), a primeira de Rondônia, viajaram até o nordeste de Mato Grosso para conhecer o grupo mais longevo do Brasil, a Rede de Sementes do Xingu.
- Na ausência de um programa governamental, o intercâmbio com grupos estabelecidos é o caminho para que novas redes adquiram expertise e encontrem caminhos para se firmar, com capacitação técnica e estratégias de gestão.
- Base da cadeia de restauração, as redes de coletores são fundamentais para o Brasil alcançar a meta de restaurar 12,5 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030. Na Amazônia, a recuperação de florestas é imprescindível para evitar o colapso climático, defendem cientistas.
- O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima espera implementar neste ano um plano nacional para suprir as lacunas da cadeia da restauração, com extensão florestal, fomento a mercados e desenvolvimento de mecanismos financeiros.
NOVA XAVANTINA, MT — Em julho, 15 mulheres indígenas percorreram 1.600 quilômetros de Rolim de Moura, em Rondônia, até Nova Xavantina, no nordeste de Mato Grosso. Elas representavam as 146 coletoras da Rede de Sementes da Bioeconomia Amazônica (Reseba), criada em meados de 2021 e formada pelas etnias Aikanã, Gavião, Sabanê, Suruí, Tupari e Zoró. Após um dia de estrada, chegaram à zona de transição entre Amazônia e Cerrado para conhecer de perto o mais longevo grupo de coletores do Brasil, a Rede de Sementes do Xingu.
Base da cadeia de restauração, as redes de coletores são fundamentais para alcançar a meta nacional de recuperar 12,5 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030 – 4,8 milhões na Amazônia e 2,1 milhões no Cerrado. Sem um programa governamental, intercâmbios com grupos estabelecidos são uma forma de novas redes adquirirem expertise e encontrarem os caminhos para se firmar.
“É muito importante para nós ter esse conhecimento através das outras pessoas que estão nos ensinando como produzir, limpar, coletar semente”, conta Rubithem Suruí, integrante da Reseba e representante das 56 coletoras da Terra Indígena (TI) Sete de Setembro.
Aos 27 anos, Rubithem é liderança entre as mulheres da aldeia Gamir, cujo conhecimento sobre o potencial econômico das sementes se limitava às espécies utilizadas para artesanato, como tucumã. Até que membros da Ação Ecológica Guaporé (Ecoporé) propuseram a criação da primeira rede de coletores de Rondônia.
A Ecoporé é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, que há 35 anos foca na restauração da Amazônia. Produz 600 mil mudas florestais por ano no viveiro da sede em Rolim de Moura, grande parte destinada a projetos de restauração.
“A Reseba surgiu para articular a compra e venda de sementes com os povos originários e suprir tanto a demanda do viveiro como a do estado”, diz Aline Smychniuk, analista socioambiental da rede.
Conhecimento prático
Durante a visita a Mato Grosso, as coletoras e técnicas da Reseba foram conhecer as árvores matrizes do grupo de coletores urbanos de Nova Xavantina, parte da Rede de Sementes do Xingu. “No trajeto, eu vou em pés de várias espécies, coletando tudo que conseguir e estiver na época”, diz Milene Alves, 25 anos, bióloga e coletora desde os 16 na Rede de Sementes do Xingu. “O papel do coletor é monitorar a floração, para ver se a flor vai vingar, abrir, virar fruto, e se o fruto vai madurar.”
Em praças públicas da cidade, Alves apontou matrizes de angelim, angico, paina-barriguda, caju, tamboril, ipês. Na BR-251, jatobás-do-cerrado e barus que restaram em alguns imóveis rurais, cujos proprietários liberaram o acesso – um grande desafio para os coletores urbanos. “Isso é o que sobrou de mata para nós”, disse Alves, observando a paisagem dominada pela agropecuária, retrato de 60% do município.
Na borda de uma propriedade, as indígenas da Reseba aprenderam a selecionar os frutos de baru espalhados pelo chão. Na beira da estrada, coletaram jatobás-do-cerrado usando uma vara de bambu com um gancho de ferro na ponta. De volta à cidade, pararam em uma praça em busca de caroba – ou jacarandá, como é chamado na Amazônia.
Em seguida, Alves e sua mãe, a coletora Vera Oliveira, ensinaram diferentes técnicas de beneficiamento das sementes. Deixaram a caroba secar ao sol, para desprender a ponta do fruto e poder abri-lo com um facão. Esfregaram as garapas – árvore que ocorre em diversos biomas brasileiros e, na Amazônia, pode alcançar 40 metros de altura – em uma peneira com um chinelo e separaram as pequenas sementes, além de utilizarem uma roçadeira para acelerar o processo. Em um chão firme, estenderam uma lona sobre a qual colocaram os jatobás, e passaram com as rodas do carro por cima para quebrá-los e extrair as sementes. Depois, formaram lotes destinados às casas de sementes, onde foram armazenadas em um ambiente controlado – frio, escuro e seco.
“O importante é ser uma semente vigorosa, limpa, que não está misturada com outra espécie, que não tem fungo, caruncho, broca. Isso é uma semente de qualidade”, orientou Alves. “O olhar do coletor tem que ser minucioso.”
“Gostei muito. Conhecemos as árvores que lá na aldeia não tem. Agora vou falar pra minha filha, pro meu marido, passar tudo”, comentou Lucilene Maparoka Tupari, coletora da aldeia Colorado, na TI Rio Branco. “É muito baixinha essa árvore. Agora, pra lá [na Amazônia] não é assim, é muito alto. Por isso é difícil pra nós.”
Os desafios das redes
Ao longo do ano, desde janeiro, as engenheiras florestais Aline Smychniuk e Joana Gomes visitaram cinco Terras Indígenas de Rondônia para estruturar a Reseba. Realizaram oficinas teóricas e práticas, depois foram para a mata identificar as espécies potenciais, como bandarra e copaíba, e definir as matrizes de coleta.
Nas apresentações da Rede de Sementes do Xingu, um elemento chamou a atenção das rondonienses: o “elo”, liderança que representa cada grupo de coletores. “O elo é a comunicação entre o grupo e a rede”, detalha Roberizan Tusset, elo de Nova Xavantina há três anos. “Recebe as listas de potencial dos coletores, depois repassa para a rede. Faz reuniões para dividir os pedidos entre os coletores. Está de olho na qualidade da semente, que recebe e passa para o responsável da casinha [de sementes]. Recebe o pagamento e divide entre os coletores.”
A Reseba adotou uma estratégia semelhante. “Em cada território tem uma representante com a qual a gente trata diretamente, explica o máximo possível, para então repassar ao restante da comunidade”, conta Gomes, analista socioambiental da rede.
Criada em 2007, a Rede de Sementes do Xingu engloba mais de 600 membros divididos em 25 grupos de indígenas, agricultores familiares e urbanos. Até 2022, a rede coletou 294 toneladas de sementes para a restauração de 7,4 mil hectares na Amazônia e no Cerrado. Nesses 15 anos, o trabalho rendeu R$ 5,3 milhões para os coletores.
Milene Alves atribui o sucesso da rede à valorização de diferentes povos, à parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), ao pioneirismo da muvuca – método no qual um combinado de sementes de até 80 espécies é semeado diretamente no solo – e à capacitação técnica, com oficinas sobre qualidade de sementes e gestão, por exemplo.
Alves é técnica do Redário, uma articulação entre 24 redes brasileiras que abrangem cerca de 1.200 coletores, para promover assistência em questões como governança, mercado e logística. “Muitas alavancas, na maioria das redes, são a base. Tem muita dependência técnica dos grupos. Isso dá uma segurada no crescimento”, observa.
Na TI Tubarão/Latundê, no sul de Rondônia, a falta de conhecimento atrapalhou a primeira experiência dos indígenas com a coleta. Em 2015, uma empresa encomendou sementes, mas não os instruiu, conta Dorvalina Sabanês, da aldeia Tubarão Gleba. “A gente só colhia e entregava. Não sabia como era para fazer, para guardar sementes. Vinha muito bicho, muita coisa.”
Essa experiência desmotivou boa parte das 26 famílias da aldeia a aderir à Reseba, mas Dorvalina estava animada para retornar ao território e engajar seus parentes: “Dessa vez, a gente aprendeu muita coisa e pode contribuir na aldeia, para não entregar semente toda estragada, toda bichada, aprender a cuidar das coisas”.
Políticas públicas
Fornecer uma capacitação técnica, ou extensão florestal, “estruturada e relevante”, e aprimorar a cadeia de produção de sementes e mudas estão entre as promessas do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), criado em 2017, mas engavetado no governo Bolsonaro.
“A extensão florestal vai ser fundamental para o sucesso desses projetos de restauração”, diz à Mongabay Rita de Cássia Mesquita, secretária de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Segundo Mesquita, o governo trabalha para restabelecer a comissão que trata das políticas de restauração, a Conaveg. Em seguida, revisará e implementará o Planaveg.
O plano prevê também o fomento ao mercado e o desenvolvimento de mecanismos financeiros para incentivar a recuperação da vegetação nativa. Hoje, essa frente da bioeconomia depende da “disposição a restaurar” dos proprietários rurais, avalia Mesquita.
O Código Florestal, aprovado em 2012, é a única lei que obriga proprietários a recuperar seus passivos ambientais, que somam mais de 20 milhões de hectares, segundo o Observatório do Código Florestal. As maiores áreas estão na Amazônia (aproximadamente 10 milhões de hectares) e no Cerrado (quase 5 milhões de hectares).
Pela lei, todos os proprietários rurais deveriam se regularizar até 31 de dezembro de 2022. Mas, em junho, o Congresso Nacional tornou individual o prazo de adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Agora, o período de um ano para aderir ao PRA passa a contar a partir da convocação do proprietário pelo órgão estadual responsável.
Essas alterações desestabilizam as redes de coletores, afirma Alves. “O cara tem uma área para restaurar, mas está segurando e esperando uma mudança no Código Florestal. Se tiver uma brecha, ele não precisa mais fazer.”
“Nós ainda passamos por instabilidade quanto à venda das sementes. Vivemos problemas muito similares às redes que estão iniciando agora”, acrescenta Marcos Vinícius Lima, responsável comercial da Rede de Sementes do Xingu, cujos principais clientes são o Instituto Socioambiental, a Fazenda Brasil e o Instituto Pequi.
Essa inércia dos proprietários também é sentida em Rondônia. A Ecoporé tem um projeto com o governo do estado para recuperar 500 hectares degradados no eixo da BR-429, em pequenas propriedades com o Cadastro Ambiental Rural analisado pela Secretaria do Desenvolvimento Ambiental. A Ecoporé visita as áreas, identifica as necessidades, doa mudas e realiza acompanhamento técnico.
“Não estamos conseguindo adesão dos produtores”, diz Joana Gomes. “Precisa ter mais incentivos e cobranças do governo. Já conseguimos fazer projetos dentro de áreas públicas, mas temos que voltar os olhos para as áreas privadas, as que mais precisam de restauração.”
Ameaças externas
A agropecuária foi o vetor de 95,7% do desmatamento no Brasil em 2022, segundo o MapBiomas. Já o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou, na última década, 8,24 milhões de hectares desmatados na Amazônia e 9 milhões no Cerrado – somados, dá uma área equivalente à do Uruguai.
Luciana Gatti, pesquisadora do Inpe, alerta que a meta de zerar o desmatamento até 2030 pode não ser suficiente para evitar o colapso climático na Amazônia. Estudos estimam que isso acontecerá se o desmatamento alcançar de 20% a 25% da Pan-Amazônia, que engloba nove países e já perdeu 17% de sua cobertura original.
“Estamos caminhando cada vez mais rápido para o colapso. Não é só parar de desmatar, temos que recuperar floresta perdida”, diz Gatti. Para a cientista, as ações de restauração na Amazônia precisam se concentrar onde a mortalidade tem superado o crescimento vegetal — e, ainda assim, a floresta já emite mais carbono do que absorve.
“Regiões de Mato Grosso, Pará, Rondônia e Acre estão com mais de 50% desmatados, então essas áreas precisam ser recompostas”, observa Gatti. Com a restauração florestal “aumenta a evapotranspiração, então ajuda a recuperar as chuvas e a diminuir a temperatura. Vai dar mais condição da floresta sobreviver, e aí conseguimos impedir o ponto de não retorno”.
Em Nova Xavantina, 52 mil hectares de formações savânicas e florestais deram lugar à agropecuária, com perda de 20% da vegetação. Os 180 mil hectares de pastagens degradadas (74% do total) têm sido substituídos por monoculturas de soja, cuja área triplicou desde 2000.
“Aqui bem em volta da rua a gente pegava muitas matrizes – acabou tudo”, conta Vilmar Tusset, de 64 anos, pequeno produtor e coletor da Rede de Sementes do Xingu desde 2012. “Agora tem que plantar pra coletar, senão não vamos dar conta mais. A soja tá vindo forte, e vai acabando o meio ambiente.”
Há quatro anos, Tusset vive com a esposa, Roberizan, em uma chácara de 12 hectares que passa por uma transição. Ele já parou a produção de porcos e galinhas e deve terminar a de gado neste ano. Quer se dedicar apenas à coleta de sementes, à restauração e ao plantio de espécies nativas do Cerrado.
Ameaças externas também rondam as terras das coletoras de Rondônia. A TI Sete de Setembro, por exemplo, sofre com a ação de “garimpeiros, madeireiros, grileiros e latifundiários”, diz Rubithem Suruí. A floresta ocupa 96,7% dos 248 mil hectares, mas houve perda de 2.718 hectares de 2018 a 2022, conforme o Inpe. Para chegar a algumas matrizes de coleta, é preciso atravessar pastagens de invasores.
As mulheres Suruí aguardam a concretização da primeira encomenda da Reseba para ir a campo. “A gente já andou nas matrizes, para ver quantas árvores tinham sementes para dar, e vamos coletar o que pedirem”, diz Rubithem.
As sementes coletadas contribuirão para evitar o colapso da Floresta Amazônica, mas Rubithem considera efeitos locais importantes: geração de renda e autonomia para as mulheres, redução das pressões e a matéria-prima para restaurar os próprios territórios.