Por Silvia Palacios e Lorenzo Carrasco
No domingo 2 de outubro, uma pequena margem de cidadãos colombianos (50,23% x 49,76%) rejeitou o acordo de paz articulado nos últimos quatro anos entre o governo do presidente Juan Manuel Santos e a liderança das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
O resultado, que surpreendeu o mundo, não significa que os colombianos rejeitem a mais que merecida perspectiva de uma pacificação da nação, após 52 anos de ações da guerrilha convertida em milícia narcoterrorista. O que a opção pelo “não” e a abstenção de 60% do eleitorado denotam é uma falta de confiança generalizada de que os termos do acordo possam criar as condições para uma paz com justiça plena, que possibilite uma autêntica reconciliação nacional. Não foi esta a atitude do governo e das FARC, adiantando-se ao plebiscito com a ostensiva celebração de um espetáculo “mundialista” em Cartagena, em 26 de setembro, com a presença de vários chefes de Estado estrangeiros e do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon.
De fato, sem a justiça que alenta a esperança, de pouco vale o peso de um calhamaço de 297 páginas para garantir a reconciliação dos colombianos. O texto do Tratado de Versalhes, que concluiu a I Guerra Mundial, era bem menor e tampouco logrou estabelecer uma paz duradoura após o sangrento conflito, precisamente, porque ocultava manobras destinadas à criação de estruturas de um embrionário “governo mundial”, impostas aos Estados acusados de serem os causadores da guerra.
O paralelo com Versalhes abre uma brecha para iluminar as entranhas do que significa a denominada “justiça transicional ad hoc”, dispositivo legalizado de ingerência supranacional, ou melhor, um conjunto de mecanismos de ingerência de um “governo mundial” sobre um Estado nacional soberano. É emblemático que o texto do acordo tenha sido depositado pelo governo da Colômbia junto ao governo da Suíça, para ampará-lo sob os termos dos acordos de Genebra sobre o encerramento de conflitos armados. Isto significa, simplesmente, que o acordo não está amparado nas leis supremas colombianas, mas em uma corte internacional. Efetivamente, isto confere às FARC o status de força beligerante legítima, algo que não conseguiu durante décadas, em vez de força originalmente insurrecional posteriormente associada ao narcotráfico, depois de destronar os carteis de Cáli e Medellín como a principal fornecedora de drogas no país.
Assim, o tema mais polêmico é a instalação da Jurisdição Especial, integrada por magistrados colombianos e estrangeiros, que deverá julgar as lideranças e a militância das FARC, em um marco de “suavização” dos crimes cometidos e, por conseguinte, das penalidades. De antemão, tal instância abre caminho para a intervenção da poderosa máfia dos “direitos humanos”, com suas ativas ONGs especializadas em ações desestabilizadoras dos governos nacionais, a exemplo das chamadas “comissões da verdade”, que quase sempre servem para intimidar as Forças Armadas nacionais que combateram tais grupos insurrecionais e, no melhor dos casos, as colocam no mesmo plano que estes.
Com o afã de aumentar a visibilidade internacional do acordo, o presidente Santos chegou a convidar o papa Francisco para participar do comitê de seleção dos magistrados que integrarão o futuro Tribunal Especial da Paz. O Pontífice declinou, embora tenha sido um apoiador entusiasmado do processo de negociações ocorrido em Havana.
Para não deixar dúvidas sobre o cunho “mundialista” do acordo, no dia seguinte ao plebiscito, o líder máximo das FARC, Rodrigo Londoño, conhecido como “Timochenko”, divulgou um boletim de imprensa, afirmando que, apesar do “não”, o acordo continuava vigente, e que o plebiscito tinha um caráter político e não jurídico – ao contrário do entendimento da Suprema Corte sobre o caráter vinculante do pleito.
Na interpretação de “Timochenko”, o acordo teria um caráter especial que, ao ser depositado junto ao Conselho da Confederação Suíça, em Berna, “lhe confere um inegável e irrevogável efeito jurídico”. Sentindo-se investido pela jurisdição supranacional, o líder das FARC convocou “o movimento social e político a respaldar resolutamente, pela mobilização e outras formas de expressão pacífica, o Acordo Final para a construção de uma paz estável e duradoura”.
O papel da Noruega nos acordos de Havana
Possivelmente, alguns se surpreenderam com a presteza com que o Comitê Norueguês do Prêmio Nobel da Paz concedeu o insípido prêmio a Santos, poucos dias após a vitória do “não”, no que foi uma evidente intenção de apoiar um mandatário que goza de popularidade muito baixa entre os seus concidadãos.
Tanto o governo da Noruega como a União Europeia (UE) já haviam demonstrado o seu júbilo com a assinatura do acordo. Em um comunicado oficial, a primeira-ministra Erna Solberg declarou: “Este é um triunfo para todo o povo colombiano. Felicito as partes.” O chanceler Børge Brende enfatizou que o acordo permitirá o enfrentamento dos problemas que originaram o conflito: “O acordo pretende solucionar muitos dos desafios básicos que levaram ao conflito, facilitando uma participação política ampla, acesso à terra e alternativas à produção de coca.”
Por outro lado, além de ter compartilhado com Havana a condição de garante das negociações, Oslo esconde outros interesses sob um manto pacifista e “ecumênico”, especialmente, na Região Amazônica. A Noruega é o principal apoiador de jurisdições especiais para supostas defesas dos direitos indígenas (ou “povos originários”), fator que está potencializando conflitos étnicos em vários países ibero-americanos, inclusive o Brasil.
E tais jurisdições especiais, que conflitam com as instituições nacionais, têm nas FARC fieis e entusiasmadas apoiadoras. “Movimentos sociais e ONGs internacionais, uni-vos contra o Estado soberano”, poderá bradar “Timochenko”, com o punho erguido, e acrescentando, “defendamos o direito internacional, vivam as soberanias relativas”. Palavras que, se fossem proferidas, não teriam aplausos nas legítimas instituições políticas e jurídicas da Colômbia, mas, certamente, em centros oligárquicos europeus e estadunidenses.
Inexplicáveis concessões
Além da questão da “justiça transicional”, uma das principais causas da rejeição do acordo foi a extensão das concessões políticas feitas às FARC, que ultrapassam em muito os limites do justo e razoável.
A realidade é que as FARC, surgidas no contexto da Guerra Fria e das ilusões do socialismo real, perderam o seu norte ideológico desde a implosão da União Soviética, no início da década de 1990. A partir daí, a sua sobrevivência passou a depender, de forma crescente, da associação ao narcotráfico, à maneira do que fez no Peru o não menos sanguinário grupo Sendero Luminoso.
O negócio se tornou tão lucrativo que, em junho de 2001, no interior da selva de Caquetá, no sul do país, realizou-se uma célebre reunião entre o “comandante Raúl Reyes”, então o terceiro homem na hierarquia da narcoguerrilha, e o presidente da Bolsa de Valores de Nova York, Richard Grasso, que convidou Reyes a visitar Wall Street, para conhecer as maravilhas do centro especulativo das finanças globais. Na ocasião, as FARC negociavam uma iniciativa de paz com o governo de Andrés Pastrana (1998-2002), que fracassou exatamente no ponto da não aceitação de zonas de “soberania limitada” sob o controle da narcoguerrilha.
No ano seguinte, com o presidente Álvaro Uribe Vélez (2002-2010), teve início uma vigorosa campanha militar contra as FARC. No período 2008-2012, a narcoguerrilha perdeu os seus três principais líderes – o fundador Manuel Marulanda, Reyes e Alfonso Cano –, em um processo que apontava para a sua derrota militar. A partir daí, as FARC se converteram em grupos criminosos comuns, sobrevivendo de assaltos, sequestros e extorsões – crimes rebatizados com pretextos “revolucionários”.
Restava, então, no marco de um processo de rendição, conceder uma porta de saída aos milhares de guerrilheiros que nasceram e cresceram nas zonas controladas pelas FARC, e instá-los ao abandono das atividades delituosas, especialmente, o narcotráfico. A própria lei colombiana teria os recursos para efetivar essa transição, fortalecendo, ao mesmo tempo, o Estado e as instituições nacionais colombianas.
O que se ignora é o motivo pelo qual Santos, pertencente à “elite oligarca” de Bogotá (é membro da família proprietária do diário El Tiempo, o mais influente do país), se dispôs a negociar um acordo de paz colocado acima da jurisdição colombiana, para outorgar legitimidade política e uma virtual imunidade penal ao grupo armado. Ainda mais estranho é que, entre os numerosos itens do acordo, tenha sido infiltrado sub-repticiamente a nefasta ideologia de gênero, que vem sendo abertamente promovida pelas Nações Unidas, como lei moral das estruturas de “governança global”.
É evidente que, pelo exposto, existem interesses supranacionais na imposição de estruturas de “governo mundial” ao país, como a designação de zonas de “soberania limitada” em áreas que, não por coincidência, são ricas em recursos naturais estratégicos – ações cujo resultado tende a ser o oposto da estabilidade com a qual costumam ser propagandeadas e justificadas.
Nesse contexto, vale recordar o papel da diplomacia dos EUA na promoção dos acordos de paz em El Salvador, no início da década de 1990, entre o governo e a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que se converteria depois na principal força política do país. A “prosperidade” prometida nunca chegou e a alegada entrega de armas da guerrilha (grande parte das quais já se encontrava em esconderijos fora do país), item fundamental dos acordos, foi tão precária que, mais tarde, uma grande quantidade delas foi abastecer bandos de narcotraficantes, como a sanguinária franquia Mara Salvatrucha e outras, que proliferam nos obscuros meandros do tráfico internacional de drogas, armas e pessoas.
Tais antecedentes são causa de muitas incertezas sobre o prometido desarmamento das FARC (que será supervisionado pelas Nações Unidas, em um bastante elástico prazo de seis meses), sobretudo, porque se sabe que algumas frentes da narcoguerrilha não estão convencidas do respeito ao acordo e continuam operando, na Amazônia colombiana.
Repercussões regionais
Tal realidade é tema de grandes preocupações entre as forças de segurança e defesa da região, inclusive, pelo fato de as FARC terem conhecidos vínculos com o crime organizado e grupos protoinsurgentes como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, e diversos grupos indigenistas, especialmente, entre os adeptos da “autonomia” dos mapuches, atualmente engajados em atividades abertamente terroristas, na fronteira chileno-argentina da Patagônia. Significativamente, em 5 de outubro, a imigração chilena impediu a entrada no país da ex-senadora colombiana Piedad Córdoba, considerada uma porta-voz oficiosa das FARC, que pretendia participar de uma reunião com lideranças mapuches (os seus direitos políticos, que haviam sido cassados em 2010, foram restituídos pela Justiça colombiana, dias depois).
No Brasil, essa preocupação ficou explicitada pelo jornalista Roberto Godoy, especialista em assuntos de segurança e defesa do jornal O Estado de S. Paulo, num artigo publicado em 27 de setembro (“Destino final das armas das FARC preocupa os vizinhos”)
Os prováveis cinco mil “operadores”, das FARC, a tropa guerrilheira ainda mantida em campo na Colômbia pelo comando supremo dos insurgentes, podem ter em mãos até 7 mil fuzis e pistolas, milhares de granadas de mão, mais uma grande quantidade de munições. Tudo isso em bom estado, pronto para uso. (…)
O estoque contabiliza um número desconhecido de foguetes propelidos do tipo RPG, fornecidos pela China, e LAW, ingleses, comprados no mercado paralelo, com ogiva antiblindagem. O inventário inclui explosivos diversos, entre os quais o poderoso C-4H, uma versão de alta concentração e alta velocidade – 1,5 mais potente que o TNT, gerando uma onda de choque que se desloca a pouco menos de 30 mil km/hora. O destino desse arsenal preocupa o governo do presidente Juan Manuel Santos e de países vizinhos, o Brasil principalmente. (…)
Em poucas semanas, haverá oferta de mão de obra combatente jovem, bem treinada, disciplinada e é bem possível, bem armada. Cartéis de drogas e facções do crime organizado das grandes cidades, além das gangues de contrabandistas das fronteiras do Brasil, Colômbia, Bolívia e Venezuela, farão gosto em recrutar os ‘soldados’ dispensados, pagando bem pelo conjunto de competências da mão de obra paramilitar.
Entre os ‘oficiais’ do contingente, há interesse particular pelos ‘professores’. Trata-se de um time de elite, quase todos oriundos da classe média burguesa, voluntários, com boa formação acadêmica e rara participação nas ações de enfrentamento. Sua missão era a de organizar a aplicação do dinheiro das FARC no mercado financeiro internacional e a de planejar as operações de expropriação – o nome político do assalto a banco e ao saque de empresas de transporte de valores.
Agora, esperemos os desdobramentos das repercussões do “não” na implementação do acordo.
Silvia Palacios é jornalista, diretora do MSIa e dos jornais Solidariedade Ibero-americana e Página Iberoamericana. É coautora dos livros Quem manipula os povos indígenas contra o desenvolvimento do Brasil: um olhar nos porões do Conselho Mundial de Igrejas e Máfia Verde 2: ambientalismo, novo colonialismo.
Lorenzo Carrasco, escritor mexicano, é jornalista, sociólogo consultor estratégico, presidente do Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa) e colaborador do Portal Ambiente Legal
It’s a plrausee to find someone who can identify the issues so clearly