O microbioma intestinal é composto de bilhões de bactérias. Cientistas têm tentado entender como elas afetam nossa saúde, aumentam o risco de doenças e interagem com os órgãos e sistemas vitais do corpo, incluindo o cérebro. Há um longo caminho à frente.
Embora não se entenda exatamente o que é um microbioma intestinal saudável, sabe-se que fatores ambientais, como a dieta, podem modificá-lo. Uma teoria que ganha força é de que a poluição atmosférica é outro desses fatores e que ela pode provocar doenças – uma má notícia para o intestino, já que a qualidade do ar vem piorando ao redor do mundo.
Se boa parte de nossa saúde é mapeada ainda no início de nossas vidas, o mesmo não ocorre com nosso intestino, afirma Marie Pedersen, professora associada da Universidade de Copenhague. “O microbioma é dinâmico e pode mudar ao longo da vida devido a exposições (a diferentes agentes). Há muita interação entre o intestino e ao que estamos expostos”, explica.
Essas exposições influenciam o desencadeamento das doenças inflamatórias intestinais (DII), que incluem a doença de Crohn e a colite ulcerativa, ambas ainda sem cura. Elas ocorrem quando o sistema imunológico não funciona adequadamente, e o próprio corpo é visto como um agente a ser combatido – processo que causa úlceras e inflamações no intestino.
“Imagine ter uma ferida que nunca cicatriza, só que do lado de dentro do corpo. Toda vez que você come ou bebe, é como esfregar sal na ferida”, exemplifica Jaina Shah, gerente de publicações e informações da organização Chron’s and Colitis, do Reino Unido.
A colite ulcerativa é localizada e afeta o intestino grosso, enquanto a doença de Crohn pode afetar qualquer parte do intestino. Ambas as condições podem impactar quase todo o corpo, incluindo hormônios, digestão, níveis de energia e saúde mental. Eles exigem medicação ao longo da vida e, em muitos casos, cirurgias de grande porte.
“Crohn e colite são causados pela herança genética do indivíduo, somada a uma reação anormal do sistema imunológico a certas bactérias no intestino, provavelmente desencadeada por algo no ambiente”, explica Shah.
Gatilhos ambientais
Esses gatilhos ambientais incluem a dieta e o estresse. Além deles, a hipótese da higiene argumenta que viver em ambientes assépticos prejudica o desenvolvimento do sistema imunológico.
Tanto genes quanto fatores ambientais podem prejudicar o intestino de forma semelhante, de acordo com Gilaad Kaplan, professor associado da Universidade de Calgary e autor de vários estudos sobre a relação entre o intestino e a poluição do ar.
“Mais de 200 genes são conhecidos por tornar alguém suscetível às DII. Esses genes estão relacionados à parede intestinal e alguns estão relacionados com a forma como o sistema imunológico combate as bactérias ruins nessa área”, afirma Kaplan.
“A barreira intestinal protege contra mutações genéticas, mas a exposição ambiental pode danificar essa barreira. Se um gene danifica o sistema imunológico, isso pode provocar doenças”, acrescenta.
Padrões na ocorrência de DII têm ajudado pesquisadores a entender a influência da poluição atmosférica nessa condição.
Dados mostram, por exemplo, que a incidência dessas doenças é maior em zonas urbanas que do que em rurais e que nações mais desenvolvidas têm taxas mais altas de DII. Uma análise constatou que as taxas mais altas estavam na Europa e na América do Norte, enquanto que o número de casos em países recentemente industrializados na África, Ásia e América do Sul tem aumentado continuamente.
Hoje se acredita que a poluição atmosférica altera o microbioma intestinal, provocando resposta imune e inflamação que levam ao desenvolvimento das DII.
Em 2005, Kaplan participou de uma aula sobre o mecanismo de como a poluição do ar impacta o coração e percebeu que havia cruzamentos com as DII, sua área de atuação. “A primeira parte da minha pesquisa foi analisar dados para ver se havia mais casos de DII em áreas com mais poluição”, explica Kaplan.
Ele analisou dados de mais de 900 casos de DII no Reino Unido, abrangendo três anos. Embora não tenha encontrado uma associação entre os casos diagnosticados recentemente de DII e os níveis de poluição do ar em geral, ele descobriu que a doença de Crohn era mais encontrada em jovens com maior exposição ao dióxido de nitrogênio.
Kaplan também encontrou ligações semelhantes entre poluição do ar e apendicite e dor abdominal.
O fator complicador desses estudos, no entanto, é que as pessoas talvez não tenham vivido por muito tempo em áreas de alta poluição. Além disso, a correlação não prova que um conjunto de dados é causa de outro, por isso é importante explorar mecanismos por trás das informações, diz Kaplan.
Mortalidade
A poluição atmosférica é composta de várias substâncias, incluindo monóxido de carbono, óxido de nitrogênio (produzido por veículos a diesel), ozônio, dióxido de enxofre e partículas (de poeira, pólen, fuligem e fumaça).
A poluição é uma das principais causas de doença e mortalidade e tem sido associada a muitas condições de saúde, incluindo doenças pulmonares, ataques cardíacos, derrames, mal de Alzheimer, diabetes e asma. No entanto, os cientistas ainda não sabem quais são os poluentes específicos responsáveis.
“A maioria dos pesquisadores usa dados de locais de monitoramento fixos, que estão em quase todas as cidades. No entanto, eles ficam limitados a estudar alguns poluentes que representam todos os outros”, diz Kaplan.
“O dióxido de nitrogênio é o principal poluente do trânsito, então estudamos essa substância e a atribuímos à ocorrência de doenças. É como no caso da nicotina do cigarro: ela é o alvo de estudos, embora seja composta de vários outros produtos químicos. É um desafio restringir a fonte exata.”
Está bem estabelecido que respirar o ar contaminado pela fumaça do cigarro também é um fator de risco para o desenvolvimento da doença de Crohn – o fator de risco ambiental mais estudado para as DII. Há, no entanto, questões ainda não respondidas neste campo de pesquisa.
Uma das mais intrigantes é por que fumar tem, na verdade, efeito protetor contra a colite ulcerativa.
Os poluentes chegam no corpo tanto pela respiração quanto pela ingestão de alimentos contaminados com material particulado. Kaplan e seus colegas mostraram que a exposição ao material particulado pode desencadear doenças gastrointestinais. Em laboratório, camundongos os inalaram por até 14 dias e se alimentaram de ração contaminada por 35 dias.
Exposição contínua
Os pesquisadores queriam simular a exposição contínua a altos níveis de material particulado e a comida contaminada, usando 18 mcg m3 (microgramas por metro cúbico de ar) por dia. Níveis de material particulado em cidades podem variar de 20 a mil em picos de concentração, o que significa que a dose total inalada é maior que 20 mil em 24 horas.
Eles descobriram que os camundongos que inalaram o material por um curto período de tempo sofreram alteração no gene imunológico, inflamação, tiveram aumento da resposta imune no intestino delgado e da permeabilidade do intestino. Os impactos da permeabilidade do intestino na barreira de revestimento da parede intestinal são considerados uma das causas das DII.
“O revestimento do intestino é projetado para servir como uma barreira, mantendo as bactérias ruins fora do corpo e permitindo que as boas façam seu trabalho”, diz Kaplan. “Se algo afeta a integridade do revestimento da parede, isso provoca pequenos buracos, por onde micróbios patogênicos entram, o que pode desencadear a resposta imune”.
Os camundongos expostos por 35 dias mostraram sinais de inflamação no cólon e alterações no microbioma intestinal.
Mas a poluição pode não apenas desempenhar um papel no desencadeamento das DII, mas também alterar a natureza da doença através das mudanças que ela provoca no microbioma intestinal. Em outro estudo, Kaplan comparou casos de apendicite não-perfurada e perfurada em 13 cidades, e descobriu que a apendicite perfurada, que é mais perigosa, estava ligada a uma maior exposição à poluição do ar. Ele concluiu que a exposição à poluição pode modificar o tipo de doença intestinal.
“Se você vivesse em uma área com boa qualidade do ar, você poderia ter tido uma apendicite moderada. A poluição do ar pode agravá-la para uma apendicite perfurada”, conclui.
Kaplan acredita que isto também ocorre com outros distúrbios relacionados ao intestino, mas são necessárias pesquisas para testar essa hipótese. As pesquisas também não explicaram por que as DII são mais comuns em áreas urbanas; e, embora seja evidente que a urbanização desempenhe um papel, não se sabe quais características subjacentes da urbanização causam as DII.
“Essas condições não eram encontradas na última geração nesses países. Conheço gastroenterologistas que não tinham visto DII até muito recentemente, e agora veem casos diariamente”, comenta Simon Travis, professor clínico e gastroenterologista consultor do John Radcliffe Hospital, em Oxford, cujo trabalho envolve a pesquisa das DII em países recentemente industrializados.
Mas esta não é a história toda. Alguns trabalhos associaram o aumento das DII à revolução industrial, uma vez que a doença de Crohn foi identificada nos anos 1930, durante o advento da era automobilística. No entanto, os primeiros casos de colite ulcerativa surgiram no final do século 19.
“Há algo na industrialização, mas também temos que refletir sobre por que em algumas regiões do mundo até mais poluídas, como na China urbana e na Rússia, por exemplo, as DII são incomuns até hoje”, pondera Travis.
Ele descobriu que essas doenças ocorrem nas principais cidades da Índia, como Déli e Mumbai, mas são raras em outras cidades. Ainda assim, ele está convencido de que as DII são doenças da urbanização, de uma forma ou de outra.
Nas circunstâncias atuais, o consenso é que a poluição do ar não é uma das principais causas da doença intestinal, mas pode ser um dos vários fatores desencadeantes.
“As DII são complexas e multicausais, e uma série de fatores ambientais influenciam seu desenvolvimento, incluindo a exposição a antibióticos na infância, amamentação e exposição à fumaça do cigarro”, afirma Kaplan.
Segundo o pesquisador, esses fatores vão se acumulando no corpo até ele desmoronar: “É difícil dizer que há um único responsável pela avalanche, já que cada um contribui em certo nível”.
“Alterar o microbioma intestinal é uma das principais causas da colite ulcerativa e da doença de Crohn. Muitas coisas causam isso. A poluição do ar é uma delas, mas sem a qual ainda veríamos casos da doença”, acrescenta.
Mais pesquisas devem se concentrar em países recém-industrializados, argumenta Travis.
“Se buscarmos as causas das DII, elas provavelmente serão encontradas em áreas do mundo onde as condições estão evoluindo e ocorrendo, porque no Ocidente, especialmente na América do Norte, as condições já evoluíram quase completamente.”
Fonte: BBC via AmbienteBrasil