Por Beatriz Jucá e Leandro Barbosa
- Afetados pela seca, poluição, enchentes e inundações, jovens de diferentes estados contam como as mudanças no clima vêm afetando sua rotina – resultando em doenças, desnutrição, desolajamentos e interrupção de aulas.
- Segundo relatório do Unicef, 2 bilhões de crianças e adolescentes no mundo estão expostos a riscos decorrentes da emergência climática; no Brasil, são 40 milhões – equivalentes a 60% das pessoas com menos de 18 anos de idade.
- A crise climática é uma crise do direito de crianças e adolescentes, segundo especialistas, pois afeta desde o direito à moradia digna e à saúde até à educação e à alimentação, levando a problemas no desenvolvimento infantil e na capacidade de aprendizagem.
A emergência climática tem afetado o desenvolvimento e violado direitos de crianças e adolescentes no mundo e no Brasil. Secas extremas prolongadas dificultam o acesso à água e prejudicam a alimentação, junto com as queimadas. Chuvas excessivas e outros desastres desabrigam, forçam deslocamentos, cancelam aulas. Poluição, ondas de calor e inundações geram doenças.
Quase todos os meninos e meninas do planeta estão expostos a pelo menos um risco climático e ambiental, segundo um relatório publicado em 2021 pelo Unicef, fundo criado pela ONU para promover os direitos e o bem-estar de crianças e adolescentes em todo o mundo. Passa de 2 bilhões o número de crianças e adolescentes com menos de 18 anos expostos a mais de um risco, choque ou estresse climático/ambiental, conforme o documento.
O Brasil está no centro do problema. Mais de 40 milhões de crianças e adolescentes – 60% do total de brasileiros – desta faixa etária estão expostos a mais de um dos riscos analisados no estudo do Unicef. A Mongabay ouviu jovens de diferentes regiões do país para entender como eles têm enfrentado a crise climática que já afeta suas rotinas e viola seus direitos no presente.
Darley Ferreira, de 18 anos, diz que foi inesperado ver os rios amazônicos sem água em 2023, ano em que a Amazônia enfrentou a pior seca já registrada. O Rio Arapiuns, que passa pela comunidade São Marcos, onde ele vive, na região do Baixo Tapajós, oeste paraense, secou. E a logística para se deslocar até a comunidade onde estuda, distante da sua, ficou complicada com as dificuldades impostas ao transporte fluvial.
“Nós, alunos, tivemos que andar, muitas vezes tivemos que nos molhar no rio, tivemos que cair no rio [devido ao encalhamento do barco]. Em algumas regiões, os alunos precisavam acordar às 4h da manhã, para chegar a tempo na escola. Muitos acabaram desistindo por causa disso”, conta Darley.
A agricultura familiar, fonte de renda para as famílias da região, também foi afetada, e a produção da farinha de mandioca (a maniva) foi menor que a de anos atrás. Até o tempo de trabalho na roça precisou ser mudado. “O trabalho que durava, em média, das 7 da manhã às 11 horas, hoje dura das 6 da manhã até no máximo 9 horas, porque o calor é intenso”, explica Darley.
Isso se refletiu na renda da família, que passou a depender mais ainda dos programas de transferência de renda do Governo, já que a receita extra diminuiu. O desequilíbrio financeiro só não foi maior graças ao turismo comunitário, com algumas famílias transformando suas casas em pousadas. Mas a atividade também precisou ser adaptada, já que a canoagem foi retirada do roteiro por conta da seca que afetou os rios.
Darley diz que, em regiões próximas à sua, a seca e as ondas de calor também levaram à morte muitos peixes e botos. “Foi um sofrimento para as comunidades, porque elas começaram a ver isso e não poder fazer nada”, lembra.
Ao risco de fome, o Governo respondeu com cestas básicas. Também apoiou as comunidades com ônibus. Darley diz que algumas comunidades ficaram sem água potável quando os poços secaram e tiveram que usar a água do rio. “A gente sabe que a água do rio já está contaminada, já está cheia de mercúrio [devido ao garimpo ilegal presente na região]. Tudo isso é resultado dos grandes impactos ambientais”, afirma.
O estudante do Ensino Médio diz que esses problemas não são fruto apenas da seca do ano passado, mas de uma série de intervenções humanas que provocam impactos ambientais preocupantes. “A seca vem acontecendo por causa das grandes empresas, das grandes indústrias, do agronegócio, que vem cada vez mais aumentando dentro da nossa região e vem desestabilizando. Por exemplo, se há desmatamento, há morte de igarapé, que compõe os rios“, explica.
Darley compreende que a alteração do clima afeta a qualquer um, porém frisa: “quem sofre mais com isso são os vulneráveis, os mais pobres. Somos nós, os povos ribeirinhos, que não têm como comprar um ar-condicionado, para os dias muito quentes”.
A comunidade São Marcos, onde vive Darley, assim como outras comunidades do Baixo Tapajós, ainda são abastecidas por motores a diesel, que oferecem energia, normalmente, das 19h às 22h30. “Entende? Quem sofre somos nós que não temos energia elétrica 24 horas por dia”, lamenta o adolescente.
Colocar o lençol na geladeira para driblar o calor
A forma como Yan Daniel Brito Silveira tem enfrentado as ondas de calor em Fortaleza, capital do Ceará, é um reflexo da desigualdade que circunda a crise climática: ele coloca o lençol na geladeira para driblar o calor na hora de dormir.
O menino tem 12 anos e mora com a mãe em uma casa no bairro Vila Velha, na periferia da cidade. Um dia, estava em casa quando sentiu uma tontura e caiu no chão. Voltou à consciência pouco tempo depois e entendeu que havia desmaiado por conta das ondas de calor mais frequentes.
A família dele vive do salário da mãe como vendedora em uma loja de shopping e tem apenas um ventilador em casa, que precisa ser usado com cautela para evitar sustos com a conta de energia. Por isso, nas noites mais quentes, a saída de Yan, que cede o ventilador para a sua mãe, é recorrer ao lençol na geladeira. “Coloco um pouco de água no lençol e depois coloco no congelador para estar gelado antes de dormir. Não coloco muita água para não molhar muito”, explica.
Ele conta que só ouviu falar sobre emergência climática em uma aula de geografia na escola onde estuda recentemente e ali entendeu que o calor excessivo que tenta driblar diariamente pode ser parte dos efeitos da ação do homem, que empurraram o planeta para a crise climática.
“Entendo pouco sobre isso, mas o professor me explicou que o calor está mais forte por causa disso”, diz. Embora não esteja muito por dentro do assunto, ele sente os impactos da crise no dia a dia.
A crise climática e a violação de direitos das crianças
A crise climática é uma crise do direito de crianças e adolescentes, afetando desde o direito à moradia digna e à saúde até mesmo à educação e ao acesso à água. Se por um lado os eventos climáticos extremos estão destruindo escolas e suspendendo aulas, por outro a dificuldade de acesso à saúde e à alimentação afetam o desenvolvimento infantil e a capacidade de aprendizagem. Somam-se a isso os deslocamentos forçados e a perda de renda familiar, que empurra crianças à necessidade de ajudar nas tarefas domésticas e a trabalhar, aumentando o combo de violação de seus direitos.
“O problema é, obviamente, a crise climática que a gente está vivendo, mas o problema maior ainda são as desigualdades. E, por conta dessas desigualdades, os efeitos climáticos são sofridos de forma desigual também”, afirma JP Amaral, gerente de meio ambiente, clima e biodiversidade do Instituto Alana. “Por causa do seu processo peculiar de desenvolvimento, em especial na primeira infância, as crianças, sobretudo as negras e indígenas, são as mais vulneráveis à crise climática e por isso precisam de proteção especial também neste tema”, frisa.
O fenômeno também afeta a saúde. As temperaturas mais altas aumentam a incidência de doenças transmitidas pela água e por vetores, como malária, dengue e diarreia, por exemplo. Para ter uma dimensão do tamanho do problema, um estudo da ONU, que avalia quantitativamente o risco dos efeitos das alterações climáticas sobre causas selecionadas de morte, estima 95 mil mortes adicionais de crianças de até 5 anos de idade por subnutrição infantil em 2030.
Diante disso, JP alerta sobre a necessidade de um plano de adaptação climática orientado para a infância, onde sejam estabelecidos protocolos gerais e específicos para a proteção de crianças e adolescentes diante de eventos climáticos extremos.
“Falta praticamente tudo em uma política pública em relação a isso. Esperamos que haja uma incorporação das populações mais afetadas e respostas a elas, em especial às crianças, que são as mais vulneráveis nessa lógica toda, no plano nacional de adaptação climática que está sendo desenvolvido agora pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima”, enfatiza o especialista.
Outra expectativa em relação ao plano é a de que o governo pense em ações focadas nos impactos duradouros destes fenômenos climáticos. “Existe o impacto posterior a estes eventos extremos, que afetam muito a questão emocional e mental. As crianças são duplamente afetadas, pela própria vida delas e a de seus cuidadores. Por exemplo: a possibilidade de morte de um parente, de um cuidador, acaba significando as crianças ficarem órfãs, o que tem um impacto muito profundo na vida delas. E isso é uma coisa que tem um papel do Estado muito forte e que deve ser muito bem planejado”, conclui JP.
Do ativismo à ansiedade climática
A estudante indígena Thaís Pitaguary, de 17 anos, mal lembra a primeira vez que ouviu falar sobre emergência climática. Filha de uma mãe ativista e criada na Terra Indígena Pitaguary, na Região Metropolitana de Fortaleza, ela cresceu ouvindo sobre os impactos ambientais das pedreiras instaladas no entorno e como as ações do homem estavam deteriorando o planeta.
A compreensão maior do problema, no entanto, veio quando seu povo fez uma ação de retomada (quando um povo ocupa territórios reivindicados como tradicionais) e inativou uma pedreira. “Foi um momento em que eu realmente entendi como as ações do homem impactam o nosso planeta. Eu tinha 9 anos”, diz ela, que começou a dar palestras para alertar outros jovens sobre o assunto aos 10 anos. Hoje, se reconhece como ativista.
“Tem muita gente que fala que jovens e crianças são o futuro do Brasil, mas somos o agora e o que fazemos agora vai influenciar no futuro. Saber o que é emergência climática e conhecer como preservar o meio ambiente é preservar a nossa vida e a nossa saúde”, defende.
Mas esta tarefa não é fácil. A adolescente diz que, às vezes, precisa se afastar das redes sociais e das notícias sobre a crise por conta da ansiedade que causa nela. “Quando paro para pensar em todos os impactos e em todas as vidas afetadas, bate um desespero e uma ansiedade imensa”, afirma.
“Todos os dias vejo um parente ser perseguido por defender o meio ambiente. Me dá um desespero pensar que tem crianças morrendo hoje pelo calor excessivo, pela chuva excessiva, por impactos causados por nós mesmos”, acrescenta Thaís.
Na escola indígena da aldeia do povo Pitaguary, ela aprendeu sobre as tradições da etnia e sobre meio ambiente pelo ensino diferenciado. Adolescente, decidiu seguir os estudos na área ambiental em uma escola profissionalizante. Nos últimos anos, Thaís conta que tem sentido cada vez mais os efeitos da crise climática. Ela vive em uma aldeia com casas de alvenaria, onde a maior parte das pessoas trabalha em empregos na cidade ou na agricultura familiar por meio do plantio na Mata do Sabiá, que abastece a comunidade.
No ano passado, viu as chuvas excessivas alagarem a casa dela e fazerem a irmã, que mora na casa vizinha, perder parte do mobiliário. “Aqui a gente já tinha alagamentos por ser ponta de serra, mas não com a frequência dos últimos anos”, pondera.
No ano passado, pelo menos 2.951 pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas no Ceará por conta das chuvas excessivas, conforme dados da Defesa Civil computados até 11 de abril. Se olharmos para o país, nos últimos três anos, foram 31 milhões de pessoas afetadas, com 329,4 mil desabrigadas e 1,9 milhão desalojadas, segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios.
As chuvas excessivas também trouxeram outros transtornos para a educação na comunidade de Thaís, como queda de energia e de internet e o alagamento das passagens da comunidade, dificultando o acesso à escola. “Muitas vezes, eu ia para a escola indígena com a lama no joelho. Às vezes, a escola liberava e não dava mais aula, por conta da passagem, que ficava impossível”, lembra.
Neste início de 2024, a jovem diz que é a demora para a chegada da quadra chuvosa, o período que compreende a maior incidência de chuvas do ano no Nordeste brasileiro, que tem trazido impactos. As plantações de legumes e verduras têm passado por queimadas, a comunidade sofre com as ondas de calor e a cachoeira, que já deveria estar jorrando água, continua seca. “Sinto os impactos dentro do meu território. A gente tinha o tempo de banho na cachoeira que já era para estar tendo desde janeiro, e ela ainda está seca porque a chuva só começou a vir agora em fevereiro”, detalha.
Fonte: Mongabay Brasil
Publicação Ambiente Legal, 05/03/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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