Qual mulher nunca sentiu medo de caminhar para casa à noite em uma rua mal iluminada ou evitou passar por um parque vazio?
Almudena de Cabo/BBC News Mundo
O desenvolvimento de cidades seguras para elas está ganhando cada vez mais força depois de décadas de cidades sendo projetadas por e para homens.
Como resposta às ideias centradas em um conceito antiquado de uso do espaço, surgiu o urbanismo feminista, que busca inclusão e proteção das mulheres no cotidiano.
Mas essa proposta vai além de apenas evitar a má iluminação, aumentar a vigilância ou fazer manutenção: busca investir em estruturas urbanas inclusivas para criar espaços de convivência, gerando a chamada “segurança passiva”. Quanto mais pessoas transitam em um lugar, mais seguro ele se torna.
Urbanismo com perspectiva de gênero
A questão é que todos devem se sentir à vontade no espaço urbano, em qualquer lugar e a qualquer hora. Essa meta é o que os sociólogos chamam de “democratização do espaço urbano”.
Viena vem utilizando esse conceito há décadas, e agora cada vez mais cidades estão se juntando a esse movimento.
“O que o planejamento urbano feminista busca é a igualdade efetiva entre homens e mulheres. Trata-se de reduzir qualquer discriminação que ainda exista na prática”, diz à BBC News Mundo a arquiteta espanhola Alexandra Delgado, do estúdio de arquitetura urbana AD.
“Em última análise, um urbanismo feminista é um urbanismo que beneficia a todos nós, porque nos dá um espaço público melhor, mais oportunidades iguais, melhor acesso a equipamentos, melhor transporte público… é um urbanismo de oportunidade”, acrescenta.
Os primórdios remontam à década de 1960, quando feministas das áreas de arquitetura, urbanismo e geografia começaram a demonstrar que o planejamento urbano não é neutro e que é preciso incluir as mulheres nele.
Essa perspectiva oferece uma visão ampla das pessoas ao propor que mulheres e homens vivem e vivenciam o espaço de maneiras distintas. Essa visão ganhou força devido ao aumento da população das cidades.
Hoje, pouco mais da metade da população mundial vive em cidades, segundo dados da ONU. Além disso, até 2050, esse número deverá aumentar para 68%. Até 2030, espera-se que o mundo tenha 43 megacidades com mais de 10 milhões de pessoas, a maioria delas no Hemisfério Sul.
‘Cidades seguras’ da ONU
“Quando mulheres e garotas não conseguem andar em paz pelas ruas da cidade, fazer compras nos mercados, andar no transporte público ou simplesmente usar banheiros públicos, isso tem um tremendo impacto em suas vidas. Tanto a ameaça quanto a experiência de violência afetam seu acesso a atividades sociais, educação, emprego e oportunidades de liderança”, afirma uma iniciativa internacional conhecida como Cidades Seguras e Espaços Públicos Seguros, da ONU Mulheres.
Desde 2011, esta Iniciativa Global fornece apoio a governos, organizações de direitos das mulheres, organizações não governamentais (ONGs), setor privado e outros parceiros com o objetivo de criar espaços públicos seguros com e para mulheres e meninas em ambientes urbanos e rurais.
“Trata-se de ter um espaço público bem iluminado, cuidado, com áreas verdes, com equipamentos. São essas coisas que dão segurança diária”, explica Delgado sobre o programa da ONU que promove, entre outras coisas, o investimento na segurança dos espaços públicos.
Experiência na Espanha
Na Espanha, uma lei para a igualdade entre homens e mulheres inclui um ponto específico sobre planejamento urbano.
Na prática, isso significa que qualquer projeto de desenvolvimento urbano precisa necessariamente incluir um relatório de impacto de gênero no qual seja sempre explicitado a segurança dos pedestres e a segurança dos espaços diurnos e noturnos.
Isso se traduz em maior iluminação das ruas, ausência de áreas escuras e manejo da vegetação dos parques.
“Isso é tão importante que alguns planos urbanísticos foram cancelados por não ter [relatório de impacto de gênero]”, diz a arquiteta espanhola. “Se não houver boa iluminação, por exemplo, os projetos não passam nas avaliações do relatório de impacto de gênero.”
“Normalmente [o relatório] se traduz em uma melhoria do espaço público, sua iluminação e acesso ao transporte. Existem algumas questões, especialmente no espaço público, em que o plano precisa explicar por que não causa desigualdade nas mulheres, devido ao seu design. É um urbanismo que não prejudica ninguém, mas que beneficia a todos nós”, diz.
Na opinião da arquiteta espanhola, embora não tenha passado tempo suficiente para se dizer que esse urbanismo melhorou a segurança das mulheres nas cidades, ele “pelo menos tornou visíveis alguns problemas nos quais você nem pensava antes”.
“Só o fato de questionar: você está pensando em segurança nos espaços públicos? Está pensando em segurança à noite? É algo positivo. Nesse sentido, está indo na direção certa”, diz ela.
Viena: uma cidade para mulheres
No início da década de 1990, Viena desenvolveu o maior projeto habitacional da Europa até hoje construído por e para mulheres.
“A facilitação das tarefas domésticas e familiares, a promoção do bairro e um ambiente em que moradores possam caminhar com segurança foram os objetivos centrais do projeto modelo Frauen-Werk-Stadt I”, disseram à BBC News Mundo arquitetos do Escritório de Planejamento de Viena.
O projeto de 357 moradias liderado pela arquiteta Franziska Ullmann também teve o objetivo de promover a participação de mulheres no desenvolvimento urbano e principalmente no projeto de expansão urbana.
Concluído em 1997, este projeto tornou-se referência para os estúdios de arquitetura de todo o mundo.
“É muito interessante como referência por causa de questões práticas como, por exemplo, como existem ligações visuais interior-exterior, entre o apartamento, a escada, o pátio, o jardim, as praças, as ruas. Isso é vigilância passiva”, diz Delgado.
O bairro para mulheres também possui um térreo aberto e as garagens possuem estrutura aberta com iluminação natural, abaixo dos apartamentos, com acesso direto pelas escadas, para aumentar a segurança.
‘Caminhos seguros’ do México
Na América Latina, a violência contra mulheres e meninas marca o cotidiano de muitas cidades. Segundo dados da ONU, no México sete em cada dez mulheres enfrentaram algum tipo de violência em 2020.
De acordo com um censo de 2017 na Área Metropolitana do Vale do México, 61,4% das viagens feitas a pé na Cidade do México são realizadas por mulheres.
Mas, em 2018, a Pesquisa Nacional de Vitimização e Percepção da Segurança Pública (ENVIPE) revelou que apenas 14,3% das mulheres maiores de 18 anos disseram que se sentem seguras na rua. E 17 mil mulheres em cada 100 mil habitantes foram vítimas de roubo ou assalto na rua ou no transporte público.
Entre as medidas implementadas para combater isso em lugares como a Cidade do México, destaca-se o programa Caminhos Seguros, criado em 2019 para melhorar as áreas com maior incidência de crimes contra as mulheres, incentivar o uso do espaço público e prevenir crimes.
A ação promoveu aumento da iluminação pública com tecnologia LED, limpeza e reabilitação de áreas verdes, instalação de totens com câmaras de vigilância e botões de emergência.
“O programa propõe um desenho universal com uma perspectiva feminista para criar rotas seguras usando elementos que aliviam a violência e são integrados a uma imagem urbana que aumenta a percepção de segurança”, disse o Ministério de Obras e Serviços da Cidade do México, responsável pelo programa.
De 2019 até hoje, foram criados 510 km de caminhos seguros. Até o final de 2022, a meta é chegar a 710 km. Atualmente existem mais de 65 mil câmeras de vigilância e 11 mil botões de alerta.
Segundo as autoridades mexicanas, os crimes contra as mulheres em espaços públicos diminuíram 28,8% nesses locais desde 2019.
‘São medidas superficiais’
No entanto, embora especialistas indique que este é o caminho certo, ainda há muito a ser feito no combate à violência contra a mulher nas cidades.
“O conceito de arquitetura de gênero no México e todos os conceitos relacionados são superficiais, são apenas maquiagem. Sem dúvida eles funcionam, a maquiagem sempre funciona, mas só tapa buracos, não resolve o problema”, disse à BBC News Mundo arquiteta mexicana Tatiana Bilbao.
“Essas medidas são superficiais por vários motivos. O primeiro é porque realmente não há uma política de defesa dos direitos das mulheres em profundidade. A vida das mulheres não é protegida no México”, critica.
“Por mais que se tenha pensado em iluminação pública, espaços livres e outras medidas, isso não é suficiente. Mulheres são mortas na rua em plena luz do dia.”
No entanto, Bilbao reconhece que todo esforço ajuda. Para ela, existem estratégias de planejamento urbano que funcionam melhor, como a criação de espaços onde o trabalho de cuidado é socializado.
“Os becos existem, mas se você começar do zero tem que pensar em como fazer espaços que possam ser muito mais seguros socialmente, porque eles têm gente, porque são abertos… do que colocar luz em um beco escuro. Se houver becos escuros, algo deve ser feito contra eles, sem dúvida. Acho que tudo avança em paralelo.”
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63245544