Por Lobato Felizola
- Autoridades aprovaram projeto sem verificar o impacto socioambiental da construção da maior usina eólica do estado na época, afetando moradores e ecossistema.
- Resistência fez a comunidade receber uma rara indenização, que não resolveu os problemas permanentes, e ainda desencadeou conflitos internos.
- Com apoio da universidade, moradores saíram da invisibilidade cartográfica, mas com território reduzido em comparação ao original e perda de acesso a recursos naturais.
No litoral de Camocim (CE), a cerca de 350 quilômetros de Fortaleza, o vilarejo de pescadores da Praia do Xavier foi apagado do mapa – pelo menos nos documentos que buscavam permissão para construir um parque eólico ali. A empresa francesa Siif Énergies do Brasil redesenhou a realidade alterando o nome do local onde famílias viviam há gerações em casas de barro e palha. Essa manobra cartográfica viabilizou o maior centro de energia eólica do Ceará na época.
Inaugurada em 2009 e com concessão até 2032, a Central Eólica Praia Formosa – como foi batizada – tem capacidade de gerar 104,4 MW. As 50 turbinas estão em uma área de 1.040 hectares posicionada ao lado do conjunto de 22 casas localmente conhecido como Praia do Xavier. O aerogerador mais próximo fica a cerca de 200 metros das primeiras residências. Em relação ao mar, a distância das torres cai para menos da metade.
Antes da chegada do parque eólico, Xavier era um refúgio tranquilo centrado na pesca artesanal em jangadas, mariscagem e agricultura nas dunas úmidas. A comunidade pacífica, que hoje tem cerca de 50 moradores, resistiu por gerações sem qualquer estrutura: não tinha rodovia, água canalizada, eletricidade, escola, comércio, nem posto de saúde. Para todos esses serviços, era preciso percorrer 3 quilômetros até Amarelas, um dos três distritos de Camocim, município de 65 mil habitantes localizado no litoral oeste do estado.
Ao notar a singularidade desse estilo de vida, a Pastoral Social da Igreja Católica enviou a então freira Maria Luiza Fernandes para auxiliar nas questões legais sobre a criação de uma Reserva Extrativista (Resex). O que a comunidade não sabia era que, enquanto discutiam a formulação dessa unidade de conservação, o governo já estudava o potencial eólico do território.
“Nunca mencionaram essa ideia de usina em nossas conversas sobre a Resex. Só descobrimos quando vieram medir as casas e colocar torres finas e altas para testar a velocidade dos ventos”, lembra Fernandes.
A falta de diálogo efetivo e a ausência de considerações sobre a preservação das práticas de subsistência geraram descontentamento na comunidade. “Não houve nenhuma consulta ou reunião, nem tentaram oferecer algum emprego para a nossa gente trabalhar nas obras”, pontua o pescador Francisco das Chagas, conhecido como Chaguinha.
Tentativas de invisibilizar a comunidade
A tentativa de tornar invisível a Praia do Xavier é notável em um mapa de 2002 fornecido pela Siif Énergies à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace). O vilarejo não foi retratado, tornando-se um lugar em branco à beira-mar, como se nunca tivesse sido habitado. Na verdade, a representação geográfica da região mostra o grande areal dividido em fazendas griladas, contrariando uma lei de 1988 que considera as praias como um bem de uso comum do povo e de livre acesso.
O mapa foi anexado ao Relatório Ambiental Simplificado (RAS), estabelecido pela Resolução 279/2001 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Esse instrumento jurídico serviu de base para afirmar que o projeto da usina eólica não ofereceria impacto ambiental.
A resolução do Conama entrou em vigor logo após a crise energética de 2001, causada por baixos níveis de água nos reservatórios de usinas hidrelétricas, levando a um racionamento elétrico que durou nove meses. Além disso, as respostas ao apagão incentivaram a instalação da energia eólica através da abertura para investimentos estrangeiros, subsídios governamentais e programas de financiamento.
Havia pressa em aprovar o licenciamento ambiental de projetos de energia renovável, explica a pesquisadora Adryane Gorayeb, coordenadora do Observatório da Energia Eólica da Universidade Federal do Ceará (UFC), que acompanha a situação da Praia do Xavier desde 2011.
“Como é muitas vezes considerada uma ‘energia limpa’ por não liberar poluentes, a legislação tomou o princípio de que a energia renovável não provocava impacto socioambiental, acrescentando o status social da eletricidade como um direito de todos”, explica Gorayeb.
O relatório ambiental da empresa citou a comunidade, mas não mostrou sua localização no mapa. No entanto, arquivos oficiais já haviam identificado cartograficamente a Praia de Xavier, como um mapa de Camocim do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com Gorayeb, o apagamento de uma comunidade nos documentos oficiais ocorre justamente com o intuito de se apropriar das terras daquela população vulnerável. “Os documentos produzidos são, na realidade, interpretações daquele território conforme a empresa deseja explorá-lo. Por conta disso, é mais fácil a empresa camuflar a inserção da comunidade do que de fato ter que tratar e lidar com as questões relacionadas à Justiça, como as medidas compensatórias.”
Os impactos iniciais
Os conflitos entre a comunidade e o empreendimento começaram durante a fase inicial de implantação. “Os moradores precisavam escalar as dunas mais altas como única alternativa para sair ou voltar ao vilarejo depois que a construção do parque fechou a única via de acesso, um caminho nas dunas baixas marcado por pisadas que deixaram a areia mais firme”, conta Fernandes.
Para piorar, durante as obras, a empresa construiu a própria estrada para melhorar o tráfego dos caminhões, mas mesmo assim a comunidade ficou proibida de pisar no asfalto.
As obras ainda aterraram lagoas interdunares, afetando a pesca durante o inverno, período em que o mar geralmente não dá peixes. A maior delas, e a única perene, foi esvaziada de forma definitiva. “Foi triste demais ver nossa lagoa sendo jorrada de uma vez. A força da água levada em direção ao mar quase destruiu uma das casas”, lamenta Chaguinha.
O corte das dunas para nivelar o terreno e instalar cabos subterrâneos resultou na areia sendo levada para o manguezal, prejudicando o trabalho de mariscagem. O constante ruído das turbinas, ultrapassando limites normais mesmo nas casas distantes, tornou-se uma realidade incômoda. Além disso, a explosão de uma turbina no primeiro ano de operação gerou medo entre os moradores, adicionando riscos tangíveis à lista de impactos.
Apesar de estar ao lado do maior parque eólico do Ceará na época, a eletricidade só chegou ao vilarejo anos após a inauguração. De fato, toda a energia produzida no Brasil, independentemente da forma de geração, alimenta o Sistema Interligado Nacional, para então ser distribuída à população. Mas, segundo os moradores, o empreendimento dificultou a liberação das linhas de transmissão de energia fornecidas pela Enel Distribuição porque precisavam passar pela área da usina.
Colocando Xavier de volta ao mapa
A resistência surgiu contra o desenho cartográfico que inicialmente excluiu Xavier dos mapas oficiais. Um mapa social desenvolvido pela UFC em colaboração com a comunidade delineou os limites do território tradicional, fortalecendo a posição dos moradores. Em 2022, eles conseguiram o Termo de Autorização de Uso Sustentável (Taus), permitindo atividades tradicionais, mas com espaço bem menor do que originalmente possuíam.
A trajetória jurídica foi complexa. A Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), que adquiriu a Siif Énergies em 2011, teve que compensar a associação comunitária substituindo as 22 residências tradicionais por alvenaria. Apesar do caráter peculiar da medida de compensação por moradia, a construção das casas não serve como uma quitação para reparar os danos, esclarece o promotor de justiça que cuidou do caso no Ministério Público (MP) do Ceará, Paulo Henrique de Freitas Trece.
Em resposta à Mongabay, a CPFL informou que “o empreendimento seguiu o rito processual de licenciamento ambiental exigido pelo órgão licenciador competente”. E foi exatamente o papel das autoridades que faltou entrar na negociação com a comunidade, segundo o MP.
“Os órgãos ambientais têm sua parcela de responsabilidade porque aprovaram o parque eólico sem fazer sequer uma visita ao local para comparar a cartografia apresentada in loco”, argumenta Trece. A reportagem procurou a Semace e aguardava uma resposta até a publicação da reportagem.
Por fim, o acordo também permitiu aos moradores o acesso à estrada criada pela empresa e a autorização para a instalação da rede elétrica da Enel.
Entretanto, muitos residentes continuam insatisfeitos com as limitações da mitigação dos impactos, resumida à reforma das casas – o que também acabou levando a conflitos internos dentro da comunidade por causa da gestão dos valores da indenização, conforme um artigo publicado na revista científica Renewable and Sustainable Energy Reviews.
Além disso, moradores relatam que a população ainda sofre com a insegurança alimentar resultante da perda das lagoas e o desencadeamento de outros problemas, como a especulação imobiliária e a invasão de grileiros em terras vizinhas.
O futuro da energia eólica no Brasil
A energia eólica representa atualmente 14% da matriz energética brasileira, com planos de dobrar sua capacidade até 2030. Contudo, o setor enfrenta o desafio de equilibrar a expansão com o respeito às comunidades locais e ao meio ambiente, como ilustrado na cearense Praia do Xavier.
Por um lado, a legislação avançou com a Resolução 462/2014 do Conama, exigindo Estudo de Impacto Ambiental para usinas eólicas em ambientes sensíveis, como dunas e manguezais. Mas a experiência de Xavier destaca a necessidade urgente de abordagens inclusivas e consultas reais às comunidades impactadas.
Fonte: Mongabay News Brasil
Publicação Ambiente Legal, 13/03/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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