Por Marco Aurélio Arrais
Sabe, seu moço, o mal que a gente faz aqui na Terra, se paga depois que morre. A cobrança de Deus Nosso Senhor é certa, justa e medida conforme o merecimento de cada um. Não há quem dela escape, e rezar para defunto ruim não vai salvar ninguém do castigo. A alma a Deus pertence e ele sabe o que fazer com ela, cobrando o preço devido a cada criatura. Nessa vida, seu moço, já vi e fiz muita coisa. Pecado foi muito, sim. Carrego na cacunda o peso de algumas mortes. Mas não pense o senhor que não tiveram merecimento. Tiveram razão de ser e motivo para serem executadas. Tem situação, seu moço, que não tem como perdoar. Quando a falta é grande, o sofrimento é injusto, a ruindade é feita contra quem não mereceu, não tem desculpa. A maldade tem que ter fim. Não merece viver aquele que causa malineza com os outros. Veja só, seu moço, vou lhe inteirar de um sucedido, um caso de malfeito contra uma criança inocente, um anjinho que Deus botou no mundo para enfeite e embelezamento. Era afilhada do doutor Divino, homem que o senhor conheceu. Pessoa refinada, letrada, de uma bondade de santo. Ajudava todo mundo, e nunca fez mal a ninguém. Alguns dizem que não era assim. Mas isso fala quem não conhecia ele, um homem justo, direito e sincero.
Essa menina, a afilhada do meu patrão, o doutor Divino, era filha do Mané Peão com a Elvirinha. O nome da menina era Luzia, por causa de uma promessa que a mãe dela fez pra santa protetora das vistas. Era uma menininha de uns oito aninhos, seu moço, uma flor de formosura, de muita inocência. O pai dela, o Mané Peão, tinha nascido nas terras do doutor Divino. A amizade dele com o patrão vinha desde quando eles eram crianças. Cresceram juntos, comendo da mesma comida e na mesma mesa, como era corrente naquele Goiás antigo. Não tinha, naquele tempo, diferença no tratamento que se dava às pessoas, fossem importantes do tipo gente graúda, ou pequeno de posses, pois o que contava era o valor da vida que cada um levava.
Quando a menina nasceu, o doutor Divino, junto com a mulher, dona Zefa, apadrinharam ela. Desde pequena, morava mais na casa dos padrinhos do que na casa lá dos pais dela. O patrão fazia gosto, e já havia dito pro Mané Peão que quando chegasse a hora, a menina ia morar na capital com a filha dele. Ia estudar e ser doutora. Ele ia pagar tudo. Queria a ela como se fosse a caçulinha dele, e não negava isso pra ninguém.
Quando o serviço aumentava muito, principalmente na época de roçagem de pasto, era costume contratar gente de fora, que estava ali de passagem. Sabe como é, aqueles que vêm não se sabe de onde, e nem se o nome que dizem ter é o deles mesmo. Essa gente pega uma empreitada para roçar um pasto, consertar cerca e curral ou fazer qualquer serviço que esteja precisando ser feito.
Aí, então, apareceu por lá um tal de Honório, de apelido Lobó, por ser muito feio e desajeitado. Não conseguia engraçamento nem com as putas na zona da vila. Tinha uns olhos maus, e vivia retirado pelos cantos, sem dar conversa com ninguém. Olha seu moço, eu mesmo não gostava dele. Penso que todo cabra que não faz amizade, não se dá com as pessoas, não ajuda companheiro na labuta, não é merecedor de confiança.
Numa quarta-feira, o Mané Peão tinha ido trabalhar naquele retiro que fica lá pras banda do Grotão, bem a uma meia légua da sede, para preparar um rancho que a peãozada ia usar como cozinha, enquanto fazia a marcação do gado que havia nascido. A mãe da Luizinha fez o almoço do marido, colocou a comida numa gamela pequena, e como o serviço era muito na ralação da mandioca para fazer farinha, mandou a menina levar a comida pro pai. Isso era normal, seu moço. Todo mundo era conhecido, tudo irmanado. A menina ia passar na porta de pelo menos dois ou tres vizinhos e não havia motivo para preocupação.
O pai chegou no final da tarde e a mulher ficou desesperada quando não viu a menina. Achava que estivesse lá no Grotão, com ele. Juntaram o pessoal para procurar Luizinha, e aquele povo foi esparramado pelos quatro cantos daquele mundo. Anoiteceu, e a menina não foi encontrada.
No dia seguinte, de madrugadinha, sairam todos para bater os matos, examinar os córregos, correr a vizinhança, mas sem sucesso. Lá pelo meio da tarde, debaixo de uma ramagem que cobria o corpinho da menina, nós achamos ela, seu moço. Era uma desgraceira de doer o coração. Ela tava toda arrebentada. As partezinhas lá dela eram uma ferida só. A roupinha, toda rasgada e ensanguentada, estava jogada de lado. E o que mais me doeu foi ver aqueles olhinhos inocentes, arregalados de medo, com as formigas passeando por cima. As mãozinhas estavam fechadas. Parecia que queriam segurar um pouquinho da vida que a morte estava levando.
Foi então que a falta do tal de Lobó foi sentida, Mais adiante, no trecho destinado a ele para roçar, encontramos a foice que tinha usado no serviço que estava sem terminar. O rancho que dormia estava vazio, sem sinal dele.
O patrão, chorando feito menino, me chamou de lado. Mandou que a gente fosse até sua casa. Lá me ordenou que chamasse dois dos cabras de nossa maior confiança. Deu pra gente uma carabina e duas cartucheiras de caça. Ordenou que campeasse ele. Me deu ordem precisa para não trazer o desgraçado.
Enquanto havia luz, batemos no piso no infeliz. Quando começou a cair a noite, paramos para dormir. Não acendemos fogo. A comida foi carne seca crua. Ainda era meio escuro, quase no clarear do dia, quando voltamos a seguir o rumo dele. Não paramos nem para comer. A água era bebida nos córregos e nas nascentes, no meio da mata. Pelo início da tarde encontramos, na beira da picada, um monte de merda ainda fresca, seu moço. Era o sinal que eu precisava, e vi que ele estava na nossa frente, numa distância que não era muita.
Fomos avançando com cuidado, sem conversar, sem pitar, prestando atenção em qualquer barulho. Pelo sinal que tinha deixado, percebi que não fazia ideia de que a gente estava já bem pertinho dele.
Quando começou a escurecer, foi ficando difícil de enxergar, e dei ordem de parada. Já de noitinha mandei um dos meninos subir numa árvore e olhar em volta. Na distância de mais ou menos um quilômetro, já saindo no cerrado, viu o clarão de uma fogueira.
Chegando mais perto, certifiquei de que era o tal de Lobó. O cabra dormia pesado. Tava só com a roupa do corpo e o facão. Êle tinha fugido depois de fazer a maldade, sem levar nada de comer. Devia estar muito cansado, com fome e tinha os pés bem machucados de pisar em espinho e de tropeçar nas raízes das árvores. Vi que na primeira noite, não tinha parado. Na necessidade de se afastar, correu a noite toda no escuro, daí a situação em que se encontrava.
Mandei os meninos fazerem o cerco, com ordem de atirar nas pernas, sem fazer muito estrago, se fosse preciso. Eu precisava dele vivo. Queria ele inteiro.
Quando os primeiros passarinhos começaram a cantar, no amanhecer, chegamos devagar, com cuidado, e sujigamos o cão. Êle não estava esperando, e deu um grito apavorado! Mas já era tarde, e daí a pouco, amarrado pelos pés e pelas mãos, gemia e chorava, com medo. Se tem coisa que me dá nojo, é ver choro de frouxo, seu moço. O homem tem que ter a certeza de que é capaz de responder e pagar pelo que fez de errado! Todo safado, na hora daa cobrança tem a mania de chorar, de encatarrar o bigode. Tem até aqueles mais porcaria, que não tem vergonha de mijar na roupa. Coisa feia!
Então perguntei pra êle porque tinha feito aquilo com a menina. Se não tinha dó de fazer tanta judiação. Se queria fazer safadeza, tinha muita mulher puta na vila que estava lá pra aquilo mesmo. Ele então falou que fazia alguns dias que tinha visto a menina e se engraçado dela. Não era a primeira vez que tinha feito aquele tipo de serviço, só que com mulher de verdade, já adulta. Com criancinha, não. Que não sabia o que tinha dado nele. Devia ter sido coisa do capeta, que fez ele perder a cabeça. Pediu, então, que livrasse ele. Que ia embora e nunca mais ia aparecer. Fiquei com mais raiva ainda, e mandei amarrar ele com as pernas presas na forquilha de uma arvorezinha baixa., com as costas deitadas no chão.
Amanheceu um dia bonito. Céu limpo, desanuviado. O sol doía na vista, de tão aceso. Mandei atiçar o braseiro e assamos um pouco da carne, para comer com farinha. Mandei dar um pouco pro Lobó. Acho que ele até pensou que não ia morrer, e quiz puxar conversa. Mandei que calasse a boca. Dei de comer, sim. É muita judiação deixar um filho de Deus morrer com fome.
Olhando em volta, mandei um dos meninos procurar um coqueiro de tucum, que por ali tinha muito. Que cortasse e trouxesse e tronco, sem tirar os espinhos. Pro outro, pedi que, usando o tronco cortado, colocasse ele atravessado sobre dois tocos de árvore, que tinha ali perto, como se fosse uma pinguela.
Aí, então, tiramos a roupa dele, que foi deitado de barriga pra baixo em cima dos espinhos do tronco do coqueiro, bem amarradinho, com as mãos e os pés bem presos, sem poder se mexer.
Quando eu era menino, aprendi com o finado padre Antonio, que Jesus morreu no sofrimento pra mode salvar nois tudo da condenação. Foi quem mais sofreu nesse mundo! Com o sofrimento, ele tirou o mundo da perdição. Desde esse tempo, fiquei ciente de que o pecador, para amiudar a condenação merecida e aliviar o peso e o tamanho dela, deve sofrer antes da morte. Deus fica servido com o sofrimento dele e abrevia a condenação.
Foi aí que eu despachei os dois companheiros de volta pra casa, pois daí em diante o serviço era meu, conforme ordenado. Eu sabia que o crime do Lobó era de muito castigo. Merecia condenação até o fim do mundo. Mas me senti na obrigação de ajudar a ele a fazer uma diminuição no volume do seu castigo. Não, seu moço, eu não gosto de fazer judiação com ninguém. Não sou de maltratar vivente sem motivo, porque isso só tem valor se o efeito é de ajuda e favorecimento.
Disse pra ele o que eu ia fazer, e que durante o serviço, ia ajudar a limpar a sujeira da alma lá dele. Que tinha levado o terço que foi da minha finada mãezinha, pra rezar pedindo pro Senhor Jesus um pouco de misericórdia, um tantico do amor que ele tem pra nois tudo, pra podê aliviá o peso da condenação dele.
Peguei a cabaça de água e dei pra ele beber, muito mesmo, e falei que era preciso. Ele ia sentir muita sede.
Com a faca, cortei as duas orelhas dele. Tirei a metade do nariz e cortei o beiço de cima. Já tinha esquentado no fogo o ferro do facão, e cheguei ele nas feridas pra parar de sangrar. O Homem urrava feito um bicho do mato, fazia até dó. Risquei a cacunda dele com a faca, sem ofender muito. Aí, com um espinho do tucum, depois de fazer uns cortes lá no cu dele, preguei bem na entrada o beiço de cima lá dele e uma orelha.
Me afastei uma distancia boa, e comecei a rezar, correndo as contas do terço, pedindo a Deus misericórdia pela alma daquele infeliz, que tinha pecado muito, e que ainda assim, tinha um irmão vivente pedindo alívio pros pecados dele.
Daí a pouco, o homem tava cheio de varejeira. Nunca vi tanta mosca assim. Parecia que brotavam do chão. A cara dele ficou preta de tanta mosca, que cobriam suas feridas, fazendo uma festa danada em cima do sangue coalhado, na meleca que escorria do buraco onde era o nariz, e nada espantava elas. Ele urrava, gemia, gritava. Tentava se levantar de cima do tronco, mas estava bem amarrado. A barriga e o peito dele estava cheio dos espinhos, enterrados bem fundo na carne dele. As moscas cobriam as costas e as feridas lá no cu dele. Elas deviam incomodar muito, porque ele se mexia muito, e em pouco tempo não gritava mais, só roncava feito porco morrendo.
Quando percebi, tinha parado de rezar. Pedi perdão e voltei contar as Ave-Maria e Padre Nosso, com muita fé, voltando a pedir um pouco de perdão pra ele.
Já era de tardezinha, quando voltei pra perto dele. Era um fedor danado. Tinha se borrado todo, e as feridas começavam a virar carniça. Mas ele ainda vivia. Estava tudo coberto de ovos das varejeiras, percebi que no outro dia elas iam nascer e começar a comer ele vivo. De noite, despejei um pouco de água na garganta dele e fui dormir.
De manhã, ele tava coberto de bicheira. Sua cara, suas costas, seu cu era um mar de vermes, seu moço, e ele só gemia baixinho, com uma voz fina, e respirava bem curtinho. Comi o resto da carne seca e recomecei a rezar o terço, sabendo que em pouco tempo aquilo ia terminar.
O primeiro que chegou, sentou no alto de um pequizeiro, ali na vizinhança, e ficou de lá, torcendo a cabeça de um lado pro outro, tomando coragem. Logo veio mais, e em pouco tempo a árvore estava tomada. Quase não se via as folhas. A urubuzada cobria tudo. Então, um deles voou e veio sentar no chão. Ficou dando aqueles pulinhos pra lá e pra cá, parece que conferindo o que era aquilo. Com um vôo curto, pousou nas costas dele. Êle deu um berro. Com o berro o urubu voou assustado, espantando até um dos que estavam assentados no pé de piqui. Mas aquilo durou pouco. Veio outro, e foi se aprochegando. Já não fugiam por causa dos gritos dele. Só davam uma paradinha, e continuavam chegando cada vez mais perto. Procurei rezar mais ainda, pois é na hora da morte que as rezas fazem mais efeito.
Aí, então, um deles voou e sentou no toco, na frente da cara dele. Ficou lá olhando curioso, e de repente deu uma bicada certeira, e grudou, e sem se assustar com a gritaria, arrancand o olho esquerdo. Foi o sinal. Os outros foram chegando. Uns sentaram nas costas dele arrancando pedaços da pele. Outros brigavam pela ferida aberta lá na parte de trás dele, mergulhando o bico e transformando aquilo num buraco que ia só aumentando. Já tinha ficado sem o outro olho, e o corpo todo parecia uma mina de sangue, do tanto que escorria,descendo feito cachoeira até o chão. Então, daquela loca que agora era o cu dele, saiu no bico de um dos bichos uma tripa vermelha, que disputada pelos outros, foi puxada e ficou com uns quatro palmos para fora.
Nessa hora já tinha rezado o terço todo tres vezes, e vi que se Deus fosse servido, se minhas orações valessem, ele ia ter um desafogo, um desconto nos pecados. Fui até lá e espantei a urubuzada. Êle ainda respirava bem fraquinho. Pedindo perdão a Deus, dei um tiro na cabeça dele. Enterrei ali mesmo. Não marquei o lugar. Não ia voltar lá nunca mais.
Quando cheguei fui primeiro prestar contas pro meu patrão. Depois fui até a casa do Mané Peão. Chamei ele e a mulher. Tirei da capanga um lenço com a outra orelha do criminoso e dei pra eles. A mulher entrou na casa e ouvi batidas de martelo.
Até hoje, seu moço, a orelha está pregada atrás da porta.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
.
.
.
Ol@ Marco…
Como é bom ler um bom texto. Escrito de forma clara e de forma que as imagens saltam-nos aos olhos!
Obrigad@ por compartilhar…
Abs
Marcão, isto é excelente! Tem ritmo, voz, prende. Cheio de coerência, o regionalismo totalmente acertado. Fiquei arrepiada com o cheiro ruim do Lobó. Parabéns mil vezes. Beijão, primo querido.
Pareceu um filme,muito bem desenvolvido, fazia tempo que não lia um conto que me fazia sentir cada detalhe das palavras expressas. Parabéns, sensacional!
Me senti sentado no baldrame de um casebre ouvindo de um velho sertanejo os causos , noite adentro . Parabéns Marcão…
Dante que se cuide porque duvido que conseguisse a proeza de produzir um enredo tão trágico, cruento e pavoroso, do início ao fim e, ao mesmo tempo, envolvendo o bem e o mal e invocando o Divino e Satã como o Marco Aurélio fez nessa sua crônica que, pretendendo divertir o leitor também o incomoda as vezes, levando-o a respirar fundo e a remexer onde estiver sentado, o que em parte é o desejo colateral do autor.
Já com uma produção significativa de excelentes crônicas publicadas, e outras tantas inéditas e em andamento, é preciso agora reuni-las sob um título sugestivo e assumir-se como mais um bom Cronista Goiano, publicando-as para satisfação dos apreciadores desse gênero literário.
Parabéns!