Concessão de exploração dos parques estaduais em São Paulo é institucionalização do estelionato
Por Oliver Alexandre Reinis
O presente texto analisa a situação dos Parques Estaduais de Ilhabela e da Serra do Mar frente à Lei nº 16.260/2016, que autorizou o Estado de São Paulo a conceder a exploração de serviços ou o uso, total ou parcial, de áreas em próprios estaduais.
Descreve o artigo 171 do Código Penal, em seu inciso I, o crime de estelionato na modalidade de disposição de coisa alheia como própria, como os atos de vender, permutar, dar em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia, como própria.
O mesmo não é novidade no nosso ordenamento jurídico, e sobre ele muito já foi escrito. E, apesar da situação que descreverei nas próximas linhas, no meu entendimento, se subsumir de forma cabal no tipo penal citado, fato é que não lograremos processar e condenar quem o está cometendo, uma vez que trata-se de pessoa legalmente inimputável. Todavia, logo que vi os nomes dos Parques Estatuais de Ilhabela e da Serra do Mar arrolados na lista de Parques Estaduais para os quais se buscará concessões de exploração pela iniciativa privada, constante da Lei Estadual nº 16.260/2016, o que veio imediatamente à minha mente foi justamente o art. 171, I, do Código Penal.
No meu entender trata-se do maior estelionato através de disposição de coisa alheia como própria, que já se viu em nosso País.
Explico: o governo brasileiro, em todas as suas instâncias, sempre teve o péssimo hábito de “dar esmola com o bolso dos outros”. Isso não é novidade, e vivemos no nosso dia a dia diversas situações em que nosso bolso é exposto a essa máxima. Também não é novidade que diversas de nossas leis (da mesma forma que em outros Países), são pensadas mais por grupos econômicos e seus interesses, do que visando o bem estar da população, da sociedade, do meio ambiente, etc.
E não foi diferente com o malfadado e “mal falado” PL 249/2013, que nasceu com o objetivo de “autorizar a Fazenda do Estado a conceder a exploração de serviços ou o uso, total ou parcial, de áreas em próprios estaduais que especifica”, transformado na Lei Estadual nº 16.260/2016. Defendido por algumas ONGs ambientais, o mesmo foi aprovado às pressas, sob forte pressão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo, após uma emenda aglutinadora apresentada no inicio de junho deste ano, sem passar pelas necessárias discussões técnicas e sociais – especialmente nos municípios que terão seus Parques cedidos à exploração privada. E acompanho de perto dois destes municípios.
Assim, muitas críticas podem ser feitas à referida Lei. Entre elas, as que considero mais importantes são as seguintes: a) que ela não leva em conta as características de cada Parque e do formato de sua exploração atual, criando um modelo único de concessão, que afastará os empresários locais; e, b) que os Conselhos Gestores dos Parques não possuem a autonomia que deveriam, para opinar e determinar o formato da cessão mais interessante para cada Parque.
Cada um destes temas merece um texto próprio, que pretendo explorar em breve. Mas neste primeiro momento, como disse inicialmente, o que me chamou a atenção foi o estelionato que se está cometendo – ao menos no que se refere aos Parques que mencionei linhas atrás. Bom, passemos então à explicação desta minha ilação.
Este texto analisará referida Lei do ponto de vista do direito de propriedade e seus desdobramentos.
Como jé expus alguns parágrafos acima, o governo brasileiro gosta de dar esmolas com o bolso dos outros. E a criação de diversos dos nossos Parques Estatuais não foram de outra forma. Isso porque, em que pese a obrigação do Estado de desapropriar as áreas abrangidas por Decretos de criação de Parques Estaduais, poucas foram feitas.
Os proprietários das áreas em questão, da noite para o dia, se viram alijados de suas propriedades, sem a indenização que lhes deveria ser garantida. Isso levou à propositura de diversas ações de indenização por desapropriação indireta, contra as quais a Fazenda Pública do Estado sempre lutou de maneira feroz – visando o não pagamento das indenizações. E o fez de maneira hábil e eficaz, tanto que o Superior Tribunal de Justiça, capitaneado neste assunto pelo Ministro Mauro Campbell Marques, fixou entendimento de que:
“o ato administrativo que criou o Parque Estadual de Ilhabela não impôs aos proprietários outras restrições que não aquelas decorrentes da legislação constitucional e infraconstitucional, sendo certo que essas limitações administrativas, de caráter geral, não constituem direito que ampare qualquer indenização” (REsp 872976/SP, Segunda Turma, julgado em 21/10/2010, DJe 5/11/2010).
O mesmo enetendimento foi aplicado ao Parque Estadual da Serra do Mar.
E referido leading case vem sendo utilizado desde então para fundamentar decisões em processos que visam a condenação da Fazenda do Estado de São Paulo ao pagamento de indenizações por desapropriação indireta, decorrentes da criação dos dois Parques Estaduais citados.
Ou seja, a Fazenda do Estado de São Paulo conseguiu, junto ao STJ, a declaração de que a mesma não é proprietária das áreas contempladas pelos Parques em questão. Que a norma que os criou, impôs aos reais proprietários somente restrições ou limitações administrativas de uso, mas não alterou a propriedade – e nem a posse, do mesmos.
Ora, não havendo a tradição das referidas áreas para o Estado – fato este defendido e declarado pela própria Fazenda do Estado, não tem o Estado – seja diretamente seja através da Fundação Florestal, qualquer poder de ingerência sobre tais áreas. Cabe aos reais proprietários obediência às restrições criadas, mas só isso. Todos os demais direitos decorrentes do direito à propriedade – protegido constitucionalmente – ainda pertencem somente aos mesmos.
Além disso, o Estado só pode ceder o direito de exploração de serviços e bens públicos próprios. É regra comezinha de direito administrativo. Tanto que, no próprio preâmbulo da lei estadual nº 16.260/2016 podemos ver que as concessões de exploração de serviços será dada em “áreas em próprios estaduais”. Próprios são áreas de propriedade do Estado, e somente isso.
Mas se o STJ já definiu que a criação dos Parques Estaduais de Ilhabela e Serra do Mar não importaram em transmissão de propriedade das áreas ao Estado, mas tão somente em criação de restrições administrativas de uso, referidos Parques não são, ao menos em sua totalidade, Próprios Públicos.
Claro que há áreas que restaram desapropriadas, seja diretamente seja através de ações que, antes de firmado o atual entendimento do STJ, restaram declaradas desapropriadas indiretamente. Mas são áreas pequenas frente à totalidade das áreas dos Parques em questão. Pergunto então: como podem estes dois Parques estarem arrolados na lista da lei estadual nº 16.260/2016? Como pode o Estado de São Paulo querer conceder a terceiros a exploração dos mesmos – ganhando em contra prestação parte do dinheiro arrecadado com ela – se as áreas não lhe pertencem?
A resposta é simples: não pode.
Os Parques em questão, e provavelmente muitos outros, não podem ser objeto de concessão pelo Estado, pois suas áreas não lhe pertencem. E repise-se, não lhe pertencem por conta de tese jurídica criada pela própria Fazenda Pública do Estado de São Paulo.
Permitir que o Estado mantenha ambos os Parques na lista da lei estadual nº 16.260/2016 é institucionalizar o estelionato descrito no art. 171, I, do Código Penal, como forma de agir do Estado, que não só terá ilegalmente se escusado de pagar aos reais proprietários das áreas as devidas indenizações, como agora obterá lucro indevido decorrente da exploração desta mesmas áreas, lucro este que pertenceria, legalmente, aos proprietários das mesmas.
Por outro lado, o arrolamento dos mesmos na citada lei traz à baila outra digressão. Se o Estado poderia ceder a terceiros a exploração destas áreas, desde que respeitados os limites impostos nos respectivos Planos de Manejo, os proprietários de tais terras também o podem? Ou podem explorá-los diretamente?
A única resposta possível é que sim. Sendo assim, proprietários de áreas onde se encontram trilhas, cachoeiras e outras atrações consideradas turísticas poderiam, no nosso entendimento, explorar economicamente as mesmas, ou terceirizar a exploração com empresas interessadas, retendo obviamente o lucro da exploração, sem nada dever ao Estado.
Com isso, se abre uma nova possibilidade aos proprietários de áreas inseridas sendo dos aludidos Parques, que de alguma forma poderão lucrar com elas.
Por outro lado, acho importante a imediata retirada dos Parques Estaduais de Ilhabela e da Serra do Mar da lista de “próprios públicos” da lei estadual nº 16.260/2016, uma vez que legalmente tais áreas não o são – não em sua integralidade.
Oliver Alexandre Reinis é advogado, Doutorando em Direito e Ciências Sociais, LL.M. em Direito de Negócios, Bacharel pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo FDSBC, Membro da APET – Associação Paulista de Estudos Tributários, Membro da AIDA – Association Internacionale de Droit des Assurances, Membro do ISOC – Internet Society Brasil, Membro do Grupo Setorial do Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte – GERCO/LN da Secretaria Estadual do Meio Ambiente – SMA/SP – biênio 2014/2015. Colaborador do Portal Ambiente Legal.
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