Quatro especialistas em meio ambiente e legislação analisam as mudanças provocadas por marco regulatório que tem apoio do setor privado
Por Emanuel Alencar*
Com 74 páginas, o texto na nova lei do saneamento básico (PL 4.162/2019), aprovado nesta quarta-feira (24/08), no Senado Federal, altera sete legislações e traz uma série de novas possibilidades para que o país supere, definitivamente, o estado de calamidade em fornecimento de água potável e tratamento de esgotos. Além de extenso, o documento é complexo e requer análise cuidadosa. Apesar de amplamente apoiado pelo setor privado, tem dispositivo que favorece as estatais do setor, estica o prazo para fechamento de lixões para cidades de até 50 mil habitantes para 2024 e muda as atribuições da Agência Nacional de Águas (ANA). Ao priorizar as obras da engenharia “cinza” (construção de redes, tubulações e estações de tratamento de esgotos), ignora as soluções baseadas na natureza.
O #Colabora ouviu quatro advogados especialistas em meio ambiente e legislação sobre o tema para te ajudar a entender o que muda com a aprovação da lei, que segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro. Em sessão on-line que durou quase quatro horas, na qual o relator Tasso Jereissati (PSDB-CE) usou uma despojada camisa polo branca, o texto foi aprovado por 65 senadores. Foram 13 votos contrários. No Brasil, mais de 100 milhões de pessoas não têm acesso a esgotamento sanitário, e 35 milhões de habitantes não têm água potável em casa.
1. A lei favorece a privatização dos serviços de água e esgoto? De que forma?
Há controvérsias. No geral, quem defende a lei quer mais participação do setor privado. O texto, de fato, incentiva a criação de blocos regionalizados de municípios e determina a conversão dos contratos de programa (firmado por municípios e grandes operadoras estatais de saneamento, como a Sabesp, de São Paulo, e a Cedae, no Rio), em contratos de concessão. Isso significa que deverá haver concessão, precedida de licitação, dos serviços. A celebração dos contratos de programa não precisava ser precedida por licitação, em razão de uma previsão expressa nesse sentido na Lei de Licitações e Contratos (lei 8.666/93). Isso agora muda – mas nem tanto. Porque o texto também diz que os contratos de programa podem ser esticados por mais 30 anos, o que favorece as empresas públicas. E dá prazo até 31 de março de 2022 para isso acontecer (Artigo 16).
Em resumo, a lei é criticada por setores que defendem a maior participação do estado no saneamento e elogiada por setores que pedem mais abertura ao capital privado. “A ruptura dos contratos de programa pode deixar o saneamento torto, pois a presença do estado será cada vez menor e por isso ele não atende ao princípio da universalização”, critica o presidente da Associação Brasileira de Engenharia de Engenharia Sanitária (Abes), Roberval Tavares de Souza. Já o diretor-presidente da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Carlos Silva Filho, elogia o novo marco: “O texto não é perfeito, mas proporciona uma série de avanços para o setor, principalmente na parte de segurança jurídica, sustentabilidade financeira e regulação. São pontos extremamente importantes para viabilizar os avanços”.
2. Há no texto aprovado a previsão de que somente após pagar a indenização pelos investimentos não amortizados, o município pode retomar os serviços de água e esgoto (Artigo 42, parágrafo 5º). Isso não pode dificultar a vida do setor privado?
Essa é a leitura mais evidente, aponta o advogado Wladimir Ribeiro, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. É como se Duque de Caxias, por exemplo, rompesse com a Cedae e criasse um serviço autônomo de água e esgoto. Mas, pela redação da lei, a Cedae só poderia sair se recebesse uma indenização milionária antes. Acontece que há jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sentido contrário. Em 2011, Uruguaiana foi a primeira cidade do Rio Grande do Sul a conceder os serviços de água e esgoto à iniciativa privada. O STJ entendeu que o rompimento do contrato com a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) poderia ser feito sem pagamento de indenização à estatal. As cidades de Ariquemes (RO) e Itapira (SP) tiveram movimentos semelhantes. “Isso dificulta o ingresso do capital privado, e protege as empresas públicas de maneira até excessiva, eu diria. Pode até ser considerado inconstitucional”, pontua o advogado.
3. O que a nova lei fala sobre as cidades que têm serviços autônomos de água e esgoto?
Essas cidades podem continuar com seus sistemas. Os contratos já existentes não mudam. “Os contratos de programa existentes continuam vigendo até o advento (término de seu termo. No entanto, todos os contratos, de programa ou de concessão, terão que ser aditados para incorporar os prazos de universalização”, escreve o senador Tasso Jereissati (PSDB) no relatório do PL.
4. A lei dá prazo para a universalização do saneamento básico?
A lei fixa como prazo para a universalização dos serviços de saneamento básico a data de 31 de dezembro de 2033, que poderá ser acrescida de mais sete anos caso se comprove inviabilidade técnica ou financeira.
5. Como fica o papel da Agência Nacional de Águas (ANA)?
A ANA deve ser a grande regulação dos sistemas, sendo a responsável por diretrizes gerais, a serem cumpridas por estados e municípios. Deve desenvolver capacidades regulatórias para lidar com contratos, riscos, avaliação de ativos, projetos de investimento e tarifas sociais. Por isso, precisará contratar técnicos. “Essa mudança nivela a regulação de forma harmonizada, já que no Brasil existem mais de 50 agentes reguladores”, diz Fabrício Soler, sócio de Felsberg Advogados, que enxerga a lei com bons olhos. “Traz uma grande expectativa de modernização do setor de água e esgoto”. As agências estaduais e municipais continuam existindo.
6. O que o texto diz sobre as parcerias público-privadas (PPP)?
Os municípios podem fazer parcerias público-privadas para o saneamento, mas as subcontratações estão limitadas a 25% do valor dos contratos (Artigo 11-A). Em quatro municípios de Goiás, por exemplo, a Companhia Saneamento de Goiás (Saneago), controlada pelo Estado, subdelegou o tratamento de esgotos à iniciativa privada [a BRK Ambiental assumiu os serviços em Aparecida de Goiânia, Jataí, Rio Verde e Trindade em 2017]. Essa subdelegação total das atividades está agora vedada pela nova lei. Mas o parágrafo quinto do mesmo artigo abre a possibilidade de se ampliar o percentual das subcontratações, caso os valores sejam investidos na universalização do saneamento básico “mediante prévia autorização da agência reguladora e do titular”.
7. A nova lei fala sobre infraestruturas verdes, ou seja, das soluções baseadas na natureza?
Não, e isso é algo que chama a atenção do advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, fundador da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados (OAB) do Brasil e consultor ambiental. De fato, o texto aprovado cita três vezes o termo “obras”, mas passa ao largo quando o assunto são soluções baseadas na natureza. “Só prevê que as estruturas de saneamento sejam feitas por meio de obras de engenharia. Há outros sistemas baseados na natureza, de remediação biológica, fitorremediação, com grande sucesso na Ásia e na Europa. Favorece muito o lobby de grandes empreiteiras”, critica Pinheiro Pedro, que integrou a equipe ambiental de transição do governo Bolsonaro. “É uma lógica que parou na primeira metade do século XX, que prioriza as obras faraônicas. O assunto da engenharia verde merecerá um PL próprio”.
8. Como ficam o prazo para o encerramento dos lixões, objeto da Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010?
Os prazos da PNRS (lei 12.305/2010), agora prorrogados, são para disposição final adequada de rejeitos, ou seja, impõe-se a adoção de ações prévias de reuso, reciclagem e recuperação de resíduos, para que apenas os rejeitos sigam para aterros sanitários licenciados. Para cidades com menos de 50 mil habitantes, que representam 73% dos municípios do país, o prazo é esticado para agosto de 2024. Capitais terão um prazo bem mais curto para se enquadrarem: até 2021. O diretor-presidente da Abrelpe, Carlos Silva, apoia as mudanças. Para ele, “além de trazer aperfeiçoamentos e garantia de sustentabilidade econômico-financeira para os serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos, o PL 4.162 ajusta os prazos da PNRS, porém vinculando à existência de planos de gestão integrada e recursos financeiros para custeio”. Ele ressalta que os lixões estão proibidos no país desde os anos 1980. O país ainda convive com aproximadamente 3 mil lixões.
9. O que o texto fala sobre drenagem urbana?
O projeto prevê, em um ponto bastante polêmico (Artigo 18-A), que os loteadores de empreendimentos imobiliários possam ser reembolsados em obras de drenagem, segundo critérios a serem estabelecidos em regulamento. Isso significa, segundo leitura do advogado Wladimir Ribeiro, que os municípios assumiriam um custo que atualmente não é deles. O próprio relator Tasso Jereissati critica o artigo em seu voto pela constitucionalidade do projeto: “Entendo que esse dispositivo é um desincentivo ao adensamento das cidades, princípio atualizado de política de desenvolvimento urbano, e poderia ser interpretado como enriquecimento sem causa dos loteadores, pois se beneficiariam, de maneira irrazoável, da valorização imobiliária decorrente da chegada da conexão da concessionária de serviços de saneamento sem arcar com os custos”, escreve, no relatório.
10. Há mudanças na titularidade das águas subterrâneas? Uma empresa pode privatizar esses recursos?
Não. Uma empresa como a Nestlé ou a Coca-Cola não poderia privatizar as águas do Aquífero Guarani (uma das maiores reservas subterrâneas de água do mundo), por exemplo, como supostas notícias que correram a internet em 2018 davam a entender. Na ocasião, o governo Temer negou qualquer negociação nesse sentido, que seria descabida e inclusive ilegal. A Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, conhecida como Lei das Águas, estabeleceu instrumentos para a gestão dos recursos hídricos de domínio federal e não permite a alienação destes recursos. “A outorga não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso”, diz o Artigo 18. Isso não muda com o marco legal do saneamento.
*Emanuel Alencar – Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Atualmente, é editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa o mestrando em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.
Fonte : Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 31/08/2020
Edição: Ana A. Alencar