Fragmentação de hábitat e atropelamentos de fauna são alguns dos riscos apontados por ambientalistas.
Por Isabella Baroni*
A construção de uma ponte sobre o rio São Lourenço, ligando Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no maior centro de observação de onças-pintadas (Panthera onca) do Brasil, está preocupando ambientalistas e profissionais do turismo. A iniciativa foi anunciada oficialmente em 12 de novembro, justamente no Dia do Pantanal.
A proposta prevê a construção de uma ponte de concreto, com cerca de 300 metros de extensão e custo previsto de R$ 60 milhões, que integrará a estrada-parque Transpantaneira (MT) à rodovia MS-214 (MS), conectando o município de Corumbá (MS) ao Porto Jofre, em Poconé (MT).
As secretarias de infraestrutura de ambos os Estados (Seinf, de Mato Grosso do Sul, e Sinfra, de Mato Grosso) afirmam que a obra garantirá um acesso mais prático e otimizado aos visitantes da região, impulsionando o ecoturismo.
Região conhecida pelo turismo de observação de onças-pintadas
Porto Jofre, no município de Poconé (MT), é onde termina a Estrada Parque Transpantaneira. A região atrai turistas do mundo inteiro interessados no ecoturismo, principalmente pela facilidade de observação de animais icônicos da fauna silvestre brasileira, como a onça-pintada. Na localidade está situado o Parque Estadual Encontro das Águas, unidade de conservação com a maior concentração de onças habituadas à presença humana do mundo. O turismo de observação do felino naquela área movimenta, anualmente, mais de sete milhões de dólares.
De acordo com a fundadora do Jaguar Identification Project (Jaguar ID Project), Abigail Martin, o projeto já identificou 407 indivíduos de onça-pintada desde 2013 somente em Porto Jofre. Ela se mostrou preocupada com a permanência da população de onças na região com a construção da ponte, visto que a obra pode fragmentar hábitats críticos e interromper corredores de movimento desses animais.
“Historicamente, sabemos que, quando o desenvolvimento humano se expande para áreas naturais, as populações de onças-pintadas tendem a declinar. Essa ponte pode aumentar a presença humana em áreas que, até agora, permaneceram relativamente intocadas”, disse Abigail.
Nos últimos 12 anos, pesquisas do Jaguar Identification Project (Jaguar ID Project) mostram que o sistema fluvial do rio São Lourenço é importante para a saúde e resiliência das onças-pintadas durante desastres ambientais extremos, como incêndios florestais. Segundo Abigail, o rio é um refúgio ecológico para a espécie e a ponte mudará completamente essa zona de amortecimento.
Além desse ponto, Martin destacou que a perda e a fragmentação do hábitat com a construção de uma ponte podem restringir o alcance das onças a presas. Isso tem potencial para gerar mudanças comportamentais, forçando as onças a evitarem algumas áreas, aumentando o estresse e diminuindo o sucesso reprodutivo. Há também o risco de intensificar o conflito entre humanos e onças, o que inclui a caça por retaliação.
Tais mudanças ameaçariam não apenas as onças, mas também toda a comunidade que depende do ecoturismo de avistamento dos felinos para subsistência. Um declínio no número de onças ou o deslocamento desses animais de áreas acessíveis para observação pode impactar diretamente a receita do turismo, afetando famílias, guias e empresas locais.
Um dos pioneiros na prática do ecoturismo no Brasil, o proprietário da Araras Pantanal Ecolodge, André Thuronyi, disse que o trade turístico da região ainda não foi acionado pelo poder público para discussão sobre o projeto. Ele teme que a obra coloque em risco não só o ecoturismo, mas todo o patrimônio natural da região. “Se formos falar sobre a imagem desses dois Estados, líderes do agro, é o ecoturismo que salta aos olhos, de longe, com as ‘boas notícias’ dessa região. Portanto, pôr em risco tal patrimônio, em nome de um desenvolvimento pouco sustentável, me parece precipitado”, lamentou.
O governo de Mato Grosso confirmou que está em andamento uma articulação para escutar as organizações da sociedade civil voltadas à conservação da fauna e do meio ambiente, representantes do trade turístico, além de populações ribeirinhas e outros atores diretamente impactados. “O projeto encontra-se em uma fase inicial, na qual os estudos ambientais e o diálogo com os setores envolvidos são fundamentais”, informou por meio de nota.
Alterações na Transpantaneira preocupam ambientalistas
Em carta assinada por um grupo de representantes da sociedade civil (pousadeiros, guias, motoristas, instituições ambientalistas e comunidade pantaneira), foi divulgada a preocupação com construção da ponte, que poderá representar avanço em um processo de pavimentação na estrada-parque Transpantaneira, futuramente.
Em trechos da carta, destaca-se:
“Não somos contra o desenvolvimento do Pantanal Mato-grossense, mas nos opomos fortemente à ponte, bem como ao asfaltamento da Transpantaneira, pois ambas as obras prejudicarão o ecoturismo, o meio ambiente e a economia local, visto que:
- Estradas são os principais vetores de desmatamento e degradação ambiental em diversos biomas brasileiros.
- No ano passado, o município de Corumbá foi o quinto município que mais desmatou no Brasil, fato que denota um modelo econômico de desenvolvimento antagônico ao praticado no Pantanal Poconeano, no qual a população se orgulha e ganha, financeiramente, com a proteção do Pantanal e com o ecoturismo praticado na região.
- A intensificação do uso da Estrada Parque Transpantaneira por conta do tráfego interestadual trará consigo a pressão por pavimentação dessa via, o que representaria, por si só, o fim de um atrativo turístico importante da região para todos que visitam o local pela sua beleza cênica e realizam safáris em carros semiabertos para observação de fauna”.
O governo de Mato Grosso do Sul, quando questionado sobre a previsão de asfaltamento, informou que “conforme informações recentes, não há planos para o asfaltamento da Estrada Parque Transpantaneira no momento, mantendo a estrada com seu caráter original e ecológico. Da mesma forma, a rodovia MS-214, que se conectará à ponte, não tem previsão de ser pavimentada. Essas decisões buscam equilibrar o desenvolvimento de infraestrutura com a conservação das características naturais do Pantanal. Reafirmamos que a preservação do Pantanal é uma prioridade e que o diálogo com especialistas, comunidades locais e organizações ambientais será contínuo para assegurar que o projeto respeite as peculiaridades da região e contribua para um desenvolvimento sustentável”.
O governo também destacou que medidas mitigadoras de impactos negativos serão detalhadas no processo de licenciamento ambiental, conforme os estudos técnicos recomendarem. “No entanto, como a região possui uma fauna rica e vulnerável, já há discussões sobre a adoção de ações como passagens de fauna (superiores ou subterrâneas), sinalização específica e a implementação de barreiras e cercas em áreas estratégicas para reduzir o risco de colisões com animais. Essas medidas serão avaliadas e monitoradas de forma contínua após a implantação”.
Estradas são risco para a fauna silvestre
Em outras unidades de conservação cortadas por estradas como o Parque Estadual Morro do Diabo, no município de Teodoro Sampaio (SP), o impacto sobre a fauna, em especial sobre as onças-pintadas, é bastante sentido.
A unidade de conservação é cortada pela rodovia estadual Arlindo Béttio (SP-613), que precisou receber o aporte de R$ 23 milhões no ano passado para instalação de medidas para redução de atropelamentos de animais silvestres devido à falta dessas estruturas na época de sua construção e pavimentação.
Em abril de 2023, duas onças-pintadas morreram atropeladas na rodovia, o que pressionou pelo investimento em medidas de segurança para a fauna, como a instalação de quatro novos radares de controle de velocidade, construção de três novas passagens de fauna subterrâneas no trecho, além da instalação de 30 quilômetros de cercamento.
*Isabella Baroni – Nascida em Jundiaí (SP), é bióloga pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e estudante de Jornalismo pela Universidade Cruzeiro do Sul, o que permite integrar seus trabalhos em educação ambiental com a comunicação. Atuou em projetos voltados à conservação do mocho-dos-banhados no município de Americana (SP), da onça-pintada no Contínuo do Paranapiacaba (SP), da anta em São Miguel Arcanjo (SP), além da relação da sociedade com a natureza na Reserva Biológica Municipal Serra do Japi em Jundiaí e Capão Bonito e região. Atualmente reside em Campo Grande (MS).
Fonte: Fauna News
Publicação Ambiente Legal, 19/12/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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