Por Alfredo Attié Jr.
A REGRA CLARA
O juiz de futebol é personagem do cotidiano e do imaginário popular. Incompreendido, fonte de erros infindáveis, de honestidade duvidosa para a maioria. Sua função parece ser a de impor disciplina e jogo limpo, mantendo a energia voltada à competição. Mas, em verdade, o que ele faz é aplicar a tal “regra” do futebol, um esporte de muitas histórias, mas de poucos princípios.
Para quem vive do futebol, a malandragem e o erro fazem parte do jogo. Para quem vê de boa fé, porém, torcedor ou não, não há como explicar a clareza da regra. Com certeza, percebe que entre a tal regra e sua aplicação há um intervalo, o espaço da interpretação do juiz. A regra não é clara nem escura e sua aplicação não é neutra. Pode favorecer um ou outro lado. E a torcida reclama, com razão, da interferência do juiz no resultado do jogo. Ao aplicar a regra, o juiz favorece um e desfavorece outro.
Mas ele faz isso porque é “ladrão”, como afirma o mote popular?
Aí é que está o nó da questão. É claro que o juiz tem sua formação, suas informações, seus interesses, suas preocupações e emoções. Ele sofre pressão da torcida local, da torcida mais poderosa, da imprensa, dos jogadores, dos dirigentes do time mais forte, dos membros de sua corporação.
Existem a regra e os modos de aplicá-la, outras influências, também teorias, comentaristas. Tudo isso estabelece mais um intervalo entre a regra e a aplicação. Fatos, ideias, valores enfrentam-se na mente do juiz. No final, o apito silva. Uns vibram, outros protestam. Depois da decisão, porém, há a aplicação da decisão. E antes da aplicação da decisão, há o recurso contra a decisão. Assim é o futebol. Sobretudo o futebol brasileiro. Da malandragem à regra clara.
Mas vamos pensar isso tudo como metáfora. Pelas manifestações nas redes sociais, já deu pra perceber o que entendem as torcidas: para alguns, o Supremo quis condenar, a qualquer custo, representou a reação da direita, sucumbiu à pressão da imprensa, a mídia conservadora, reacionária. Para outros, o Supremo finalmente ouviu o clamor popular, engajou-se na luta contra a corrupção, condenou os poderosos da hora. Para os primeiros, covarde; para os últimos, corajoso.
Mas as torcidas permaneceram desconfiadas. Será que a condenação era pra valer, definitiva? Voltaram-se aos embargos. Os embargos são obstáculo, barreira à aplicação da decisão. Que barreira é essa?
Os declaratórios são uma invenção portuguesa, com certeza. Dizem que nenhuma decisão pode ser definitiva enquanto não for perfeita. Hoje, são usados a torto e a direito, como mecanismo de ampliar o prazo para outros recursos. Isto porque suspendem o andar dos processos, mesmo que absurdos, mesmo que rejeitados.
E os infringentes? São mais uma chance. Uma decisão não tomada por unanimidade nunca é definitiva, pois quem perdeu pode pedir que seja proferida uma nova decisão. Nos tribunais inferiores, acrescenta-se um número de juízes aos que já julgaram, e a parte em que houve divergência é julgada de novo. No Supremo, porém, não há como se acrescentar mais juízes, se a decisão foi tomada pelo seu plenário. Ora, se todos os juízes já julgaram e decidiram por maioria, por que seria necessário julgar de novo? Não há resposta lógica. A resposta vem da história de nossa justiça, de nosso direito. O Século XX foi o século dos regimes totalitários. Para se legitimarem, buscaram proclamar-se populares, democráticos, alterando a interpretação e aplicação das leis que já existiam, quando da chegada dos ditadores ao poder. Também buscaram alterar as leis, retirando delas o que não convinha colorindo os regimes de leis e contextos favoráveis à opressão dos povos dominados.
Foi o caso da Alemanha, sob o nacional-socialismo, que pretendeu fazer um novo Código Civil (Zivilgesetzbuch, ZGB), para substituir o monumental BGB (Bürgeliches Gesetzbuch). Mas, entre metódicos e temerosos de mexer com um símbolo de suas conquistas culturais, os alemães mal conseguiram revisar uns dos livros do BGB e o regime ditatorial acabou. O Código Civil não foi alterado.
Já na Itália, o regime fascista encontrou terreno mais fértil à mudança, juristas, digamos, mais pragmáticos, que conseguiram redigir um novo Codice Civile, em 1942 (que permaneceu vigente, salvo algumas alterações, por muito tempo após o fim do regime de exceção). Juristas progressistas, exilados ou não, foram derrotados. E a ciência do direito processual italiano começou a se desenvolver em oposição à ciência do direito material. Isto é, a lei processual e a doutrina (os juristas comentadores da lei e construtores de teorias) processual se puseram em oposição ao direito civil, de índole autoritária.
Em termos bem práticos, o processo se colocou exatamente para ser um embargo, uma barreira, um obstáculo para a aplicação do direito.
E os mecanismos processuais se tornaram um meio de impedir que o direito material fosse aplicado, para o bem ou para o mal.
E o Brasil?
O Brasil entra nessa história porque o direito processual italiano veio a ter uma influência decisiva no direito processual brasileiro, exatamente por causa da influência dos juristas, da doutrina italiana – alguns até vieram para cá, fundaram uma escola -, a partir do momento em que o processo se tornou um obstáculo à realização do direito.
A ideia de que a ação seria um direito abstrato contribuiu para dizer que o processo não servia para aplicar o direto, mas era um fim em si mesmo.
E os doutrinadores brasileiros adoraram essa ideia, que se casava bem com nossa tradição de não obedecer a direito algum, não obedecer a lei alguma, a não ser pelo critério da conveniência. Os ditos populares, aliás, são muito similares na Itália e no Brasil: “feita a lei, feita a fraude” – “fatta la legge, fatto l’inganno”. Nem foi Getúlio Vargas o primeiro, não será o último, a aplicar a regra do “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”… (a verdadeira expressão teria sido: “para os amigos, tudo; para os indiferentes, a justiça; para os inimigos, o cárcere” – Graciliano Ramos que o diga).
Assim, mesmo sem nenhuma mudança em nosso Código Civil, o processo, a lei processual, a doutrina processual passaram a ser usados apenas para atrasar a aplicação do direito, da lei, dos contratos. E houve uma hipertrofia da ciência processual.
Pior, é que, sem a compreensão disso, as pessoas passaram a entender que esse uso do processo seria democrático, garantista, instrumental.
Enfim, abandonamos o direito e a lei e nos apegamos ao processo.
Parece que, ao usarmos o processo, estamos defendendo réus, aplicando garantias. Mas, em verdade, estamos mesmo é impedindo que a lei se aplique, que os direitos se façam concretos.
O processo põe-se contra a realidade, impede que a encaremos e usemos o direito a nosso favor. Ele significa que a lei e os contratos não serão cumpridos. Que tudo terminará empatado e sem solução, sem decisão.
Quem ganha com isso? O status quo e os beneficiários da ordem atual das coisas. O processualismo “progressista” não está pelas garantias, mas pelos obstáculos, pelas barreiras, pelos embargos.
E o povo: é levado a torcer errado – em vez de torcer pelo seu time, torce pelo tribunal, ele não deseja mais o gol, mas espera que o empate favoreça o seu time, ele não torce pelo ataque, mas pela defesa, a retranca.
O antifutebol é antidemocrático. Na ditadura, vale falta, não o drible. Na democracia, a arte vale mais.
Se soubessem que as garantias estão mais no direito material do que no processo, torceriam certo, para o jogo acabar logo, que a arte superasse a presença do juiz. Bola pra frente, Brasil!”
Alfredo Attié, mestre em direito, doutor em filosofia (USP), é magistrado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP – (alfredoattie.blogspot.com.br).
Observação do autor, interessante:
Este artigo foi publicado em Veja.com, por Ricardo Setti, pouco antes de o Supremo Tribunal Federal ter acolhido a pertinência de embargos infringentes (do ponto de vista da teoria do direito, contra legem), ao final do julgamento da ação penal vulgarmente conhecida como “Mensalão”. Contraditava a falsa ideia de que acolher tantos recursos, perpetuar processos, interpolar embargos, e assim por diante, seriam meios de consecução da democracia. Tratava-se de um equívoco, acolhido, lamentavelmente, por muitos. Demonstra qual o origem de nosso apego ao processo.
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