Por Marcelo Bedoni, José Irivaldo Alves Oliveira Silva e Talden Farias*
A Conferência das Partes (COP) nº 27, realizada em Sharm El-Sheik, no Egito, chegou ao fim após duas semanas (8 a16 de novembro) de negociações em torno da agenda climática, e com decisão publicada no último dia 20. Para o regime internacional, alicerçado na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, em inglês), de 1992, a conferência inaugurou a fase da implementação.
Na COP-21, os Estados-Partes da Convenção aprovaram, em um clima de otimismo, o Acordo de Paris. O então secretário-geral da ONU, Ban Kin-Moon, classificou o acordo como “um sucesso monumental para o planeta e sua população”. A literatura especializada também compartilha desse sentimento, quando afirma, por exemplo, que Paris representa o início de uma nova era na política climática internacional[1].
O otimismo por trás do Acordo, porém, não pode obscurecer seus pontos fracos nem a necessidade de ser testado na prática[2]. A negociação internacional envolve um conjunto diverso de interesses e, desse modo, a saída escolhida resultou em um texto com disposições obrigatórias, voluntárias e não-obrigatórias (ou declaratórias). A maioria das obrigações rígidas, por exemplo, relacionam-se apenas com a mitigação e a transparência[3]. Além disso, nos pontos principais, o tratado é vago e impreciso[4].
De modo geral, Paris apenas esboçou a política climática internacional[5]. A própria decisão da COP-21, que é um importante instrumento na interpretação do tratado internacional[6], aponta para a necessidade de futuras complementações, no que ficou convencionado de “Livro de Regras de Paris”. A decisão da COP-21 trata principalmente de negociações posteriores nos temas de metas individuais de mitigação (NDC), de instrumentos econômicos e de transferência[7].
Depois de Paris, os objetivos das próximas reuniões se concentraram em escrever as regras. Na COP-24, realizada em Katowice, na Polônia, o livro quase restou concluído. Essa conferência alcançou importantes avanços na instrumentalização das NDC’s e da transferência, porém, a escrita completa só se alcançou dois anos mais tarde, na COP-26, em Glasgow, na Escócia, sendo uma reunião muito marcada pela pandemia da Covid-19.
O Pacto Climático de Glasgow consolidou o consenso sobre um compromisso global para acelerar a ação climática na próxima década, visando principalmente a meta de 1,5º C, e trouxe avanços inovadores sobre a redução do carvão, o controle do metano e a interrupção do desmatamento[8].
Com as regras desenhadas, o próximo passo só poderia ser a implementação, sendo essa a principal missão repassada à COP-27. A implementação significa uma tomada de ações concretas para alcançar a meta de 1,5 ºC, bem como avanços no financiamento, transferência de tecnologia, adaptação e colaboração internacional[9].
Alguns temas ficaram em alta antes e durante a conferência no Egito, como a indispensável necessidade de evitar a escalada de conflitos internacionais (iniciada com o conflito entre Rússia e Ucrânia), a segurança energética (principalmente dos países europeus) e os esforços para facilitar a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)[10].
O objetivo deste texto, então, é analisar os impactos da COP-27 na implementação do Acordo de Paris e do Pacto Climático de Glasgow, com foco em três discussões: a) a implementação de políticas condizentes com a meta de 1,5º C; b) as implicações da decisão para o net-zero; e c) os avanços iniciais e históricos em perdas e danos. De modo geral, o intuito é demonstrar quais as implicações da mais nova decisão tomada através de uma COP ao Direito das Mudanças Climáticas[11].
Metas de mitigação: a implementação não acompanhou a ambição
Um dos pontos ambíguos do Acordo de Paris diz respeito à meta de mitigação. O tratado trabalha com a meta em graus celsius, indicando um limite máximo (“bem abaixo de 2º C”) e um indicativo (“envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5º C”), até o ano de 2100. A meta de 1,5º C, porém, é tratada como a mais segura para reduzir significativamente os riscos e os impactos climáticos, tanto pelo Acordo de Paris[12] como pelo IPCC[13].
Diante da dificuldade de cumprir a meta mais ambiciosa[14], parcela da literatura compreende que 1,5º C sempre foi uma aspiração[15]. Assim, uma forma de interpretar as duas metas distintas do Acordo de Paris é encarar a meta de “bem abaixo de 2º C” como o “objetivo real”, porém, alcançá-lo só será possível se cada Estado-Parte implementar o nível de mitigação consistente com o “alvo” de 1,5º C[16].
A COP-26 colocou um ponto final nesta dúvida, pois os Estados-Partes resolveram prosseguir os esforços para limitar o aumento da temperatura em 1,5º C. Além disso, a decisão reconhece a necessidade de uma rápida, profunda e sustentada redução nas emissões globais de efeito estufa, incluindo a redução de dióxido de carbono em 45% até 2030 em relação ao nível de 2010, bem como reduções profundas em outros gases de efeito estufa. Também ficou acertado que até 2030 é um momento crítico para que essa meta seja cumprida[17].
Porém, o mundo ainda está aquém das metas climáticas do Acordo de Paris, sem um caminho confiável para a meta de 1,5º C. Nem mesmo o apelo em Glasgow foi suficiente para que os países atualizassem suas metas adequadamente. Com as políticas atualmente em vigor, sem maior fortalecimento, a temperatura global aumentará cerca de 2,8º C[18].
A sinalização de ambição climática na COP-26 foi extremamente importante, no entanto, na COP-27, a implementação de uma agenda climática mais ambiciosa não aconteceu. A ambição ficou restrita ao campo teórico e das promessas, tendo em vista que os Estados-Partes não chegaram em um consenso sobre as políticas de mitigação.
O Plano de Implementação de Sharm El-Sheikn apenas repetiu os enunciados do Plano Climático de Glasgow a respeito da meta de 1,5º C[19]. Assim, a COP-27 deixou a desejar na pauta de mitigação. Em Glasgow, o ato simbólico de buscar a meta mais ambiciosa fez sentido, mas em Sharm El-Sheikn, não havia mais tempo para promessas. Esse é o ponto grave nesse processo: são muitas idas e vindas e falta de definições e de consistência nas ações dos países.
Net-zero: uma brecha que pode custar caro
A partir do Acordo de Paris, e com o fechamento do seu livro de regras na COP-26, não restam suspeitas de que a política climática tem um foco completamente novo: emissões líquidas zero, também chamadas de net-zero[20]. No Pacto Climático de Glasgow, reconheceu-se que a meta de 1,5º C exige um net-zero para o carbono em meados do século, bem como reduções profundas em outros gases de efeito estufa[21].
O net-zero “[…] é intrinsecamente um conceito científico”. “Se o objetivo é manter o aumento das temperaturas médias globais dentro de certos limites, a física implica que existe um orçamento finito de dióxido de carbono que é permitido na atmosfera, juntamente com outros gases de efeito estufa. Além desse orçamento, qualquer liberação posterior deve ser compensada pela remoção para sumidouros[22].”
Alcançar a meta de 1,5º C com 50% de probabilidade exige um orçamento de carbono remanescente de 400-800 GtCO2, e permanecer dentro desse orçamento requer que as emissões atinjam o pico antes de 2030 e se reduzam para zero líquido por volta de 2050[23].
Para entender o net-zero é preciso destacar a sua abrangência na redução das emissões de gases de efeito estufa. Não existe saída: todas as fontes de emissões precisam ser eliminadas, até mesmo as mais difíceis, como indústrias pesadas, edifícios, alimentos, agricultura, aviação, mineração[24].
A COP-27, no tema de net-zero, não demonstrou a mesma força da sua antecessora, pois em vez de buscar uma implementação de metas de mitigação para longo prazo, reconheceu a importância de se reforçar um mix de energias limpas, incluindo baixas emissões e energias renováveis a todos os níveis[25], o que abre espaço para o protagonismo do gás natural na transição energética, apenas para citar um exemplo. Nessa articulação, o mercado constitui-se em um obstáculo, pois nem todos os países estão dispostos a enfrentar, incentivar e estabelecer mudanças urgentes, afinal isso tem um custo.
Perdas e danos: antes tarde do que nunca
A COP-27 ficará conhecida pelo avanço na agenda de perdas e danos. A ideia de um instrumento específico para esse tema remonta ao início do regime interacional, já que em 1991, a Aliança dos Pequenos Estados Insulares levantou a discussão com demandas propositivas nas negociações da Convenção-Quadro, porém elas não foram aprovadas no texto final[26]. Plantou-se a semente, e depois de três décadas, ela finalmente germinou.
O Plano de Implementação de Sharm El-Sheikn reconhece com grande preocupação a crescente gravidade, alcance e frequência em todas as regiões de perdas e danos climáticos. Além disso, a decisão demonstra profunda preocupação com os custos financeiros para os países em desenvolvimento[27].
Vale destacar que não existe um conceito normativo para perdas e danos, porém, a literatura adota três concepções: i) medidas residuais à mitigação e a adaptação, ou seja, a “mitigação insuficiente” e a “adaptação inadequada” somadas resultam nas perdas e danos; ii) respostas aos riscos intoleráveis, enquanto a adaptação, por outro lado, busca manter os riscos dentro de uma faixa do tolerável; e iii) a última define perdas e danos ao distinguir entre os impactos que são “inevitáveis”, “evitados” e “evitáveis”[28].
Se for impossível adaptar-se a um impacto de modo que se torne inevitável, ele será perdas e danos; porém, aos impactos evitáveis, sendo possível adaptar ao impacto para que ele seja evitado, trata-se de adaptação; porém, se um impacto evitável não for evitado, ainda não está claro na literatura se deve ser considerado como (não) adaptação ou como perdas e danos[29]. Definir perdas e danos, assim como distingui-la da adaptação, não são tarefas simples.
A COP-27 não trouxe avanços conceituais, mas sim na operacionalização de um fundo de financiamento destinado para os países em desenvolvimento. Os Estados-Partes concordaram com a criação de um fundo específico, preenchendo uma lacuna no financiamento climático, a ser concluído e apresentado na COP-28, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos[30].
O tema de perdas e danos finalmente apareceu no regime internacional, mesmo que tardiamente. Na “declaração de emergência climática” desde ano, cientistas destacam que 2022 está sendo marcado por inúmeros desastres climáticos: no verão, um terço do Paquistão foi inundado, deslocando cerca de 33 milhões de pessoas, sendo que 16 milhões eram crianças; terríveis incêndios florestais na Europa e Estados Unidos; consecutivos ciclones e subsequentes inundações no leste da Austrália; inúmeros rios secando na China e na Europa; fortes tempestades e extensas inundações em Bangladesh e Índia; e ondas de calor excepcionalmente severas em muitas partes do Hemisfério Norte[31].
E o Brasil não ficou de fora. As enchentes nos Estados do Nordeste ao longo deste ano foram intensificadas pelas mudanças climáticas[32] e causaram, por exemplo, a maior tragédia do século em Pernambuco, quando mais de 100 pessoas morreram vítimas de deslizamentos e enxurradas na região metropolitana de Recife[33].
Conclusão
A COP-27 não conseguiu implementar a ambição prometida na COP-26 e, com isso, perdeu a oportunidade de oferecer esforços para que o planeta não ultrapasse o limite de 1,5º C. A decisão final da conferência também abriu uma brecha perigosa, que pode colocar em risco o cumprimento do net-zero no momento adequado para a meta mais ambiciosa.
Os principais avanços ficaram por conta da promessa de criação de um fundo para perdas e danos. Apesar dessa conquista histórica, não se pode perder de vista que a demanda remonta à criação do regime internacional e que no momento atual já não mais é possível ignorar as consequências práticas das mudanças climáticas.
O tempo exige ações efetivas e urgentes, com políticas públicas climáticas concretas nos governos nacionais e subnacionais. O Plano de Implementação de Sharm El-Sheikn falhou em temas sensíveis, reacendendo, assim, a preocupação de que “[…] as tentativas do direito de lidar com as mudanças climáticas antropocêntricas podem ser caracterizadas de várias formas — inovadoras, complexas, tortuosas — mas não, infelizmente, bem-sucedidas”[34].
[1] FALKNER, R. The Paris Agreement and the new logic of international climate politics. International Affairs, v. 92, n. 5, p. 1.107-1.125, 2016.
[2] SUN, R. S.; GAO, X.; DENG, L. C.; WANG, C. Is the Paris Rulebook suficiente for effective implementation of Paris Agreement? Advances in Climate Change Research, n. 13, p. 600-611, 2022.
[3] RAJAMANI, L. The 2015 Paris Agreement: interplay between hard, soft and non-obligations. Journal of Environmental Law, v. 28, p. 337-358, 2016.
[4] KEOHANE, R. O.; OPPENHEIMER, M. Paris: beyond the climate dead end through pledge and review? Politics and governance, v. 4, n. 3, p. 142-151, 2016.
[5] RAJAMANI, L.; BODANSKY, D. The Paris Rulebook: balancing international prescriptiveness with national discretion. International and Comparative Law Quarterly, v. 68, p. 1.023-1.040, oct. 2019.
[6] BORN, R. H. Mudanças climáticas. In: FARIAS, T.; TRENNEPOHL, T. (Coord.). Direito ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 444-505.
[7] UNFCCC. Decision 1/CP n. 21: adoption of the Paris Agreement. United Nations, 2015.
[8] WANG, Y.; LIU, Y.; GU, B. COP-26: progress, challenges and outlook. Advances in atmospheric sciences, v. 39, p. 1.209-1.216, aug. 2022.
[9] Ibid.
[10] Ibid.
[11] Não é intenção deste texto abordar a autonomia científica do Direito das Mudanças Climáticas, principalmente frente ao Direito Ambiental. Para o presente trabalho, importa apenas destacar que essa disciplina jurídica deve “[…] traduzir em regulações concretas o entendimento científico consolidado sobre as mudanças climáticas antrópicas, e estruturar um regime legal protetivo que seja confessionário de todas as especificidades do objeto a ser tutelado (o sistema climático), e que seja capaz, acima de tudo, de acompanhar a contínua evolução dos conhecimentos científicos sobre o tema” (p. 321) (CARVALHO, D. W. de.; ROSA, R. S. M. da. Premissas para a configuração do sistema climático como bem jurídico. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 104, p. 299-323, out./dez. 2021).
[12] BRASIL. Decreto n. 9.073, de 5 de junho de 2017. Brasília: Presidência da República, 2017.
[13] IPCC. Summary for policymakers. In: Global Warming of 1.5 ºC. Cambridge: New York, Cambridge University Press, 2018.
[14] A temperatura global da Terra já aumentou cerca de 1,1 ºC desde a Revolução Industrial (IPCC. Summary for Policymakers. In: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2021).
[15] FALKNER, 2016.
[16] MAYER, B. Temperature targets and state obligations on the mitigation of climate change. Journal of Environmental Law, v. 33, p. 585-610, 2021.
[17] UNFCCC. Decision CP. 26: Glasgow Climate Pact. United Nations, 2021.
[18] UN ENVIRONMENT PROGRAMME. Emission Gap Repor 2022: Report. United Nations, 2022.
[19] UNFCCC. Decision CP. 27: Sharm el-Sheikn Implementation Plan. United Nations, 2022a.
[20] FANKHAUSER, S. et al. The meaning of net zero and how to get in right. Nature Climate Change, v. 12, p. 15-21, jan. 2022.
[21] UNFCCC, 2021.
[22] FANKHAUSER et al., op. cit., p. 15.
[23] IPCC, 2018.
[24] FANKHAUSER et al., op. cit.
[25] UNFCCC, 2022a.
[26] BROBERG, M.; ROMERA, B. M. Loss and damage after Paris: more bark than bite? Climate Policy, v. 20, n. 6, p. 661-668, 2020.
[27] UNFCCC, op. cit.
[28] BROBERG; ROMERA, op. cit.
[29] Ibid.
[30] UNFCCC. Decision CP. 27: funding arrangements for responding to loss and damage associated with the adverse effects of climate change, including a focus on addressing loss and damage. United Nations, 2022b.
[31] RIPPLE, W. et al. World scientist’s warning of a climate emergency 2022. BioScience, p. 1-7, 2022.
[32] GODINHO, I. Mudança climática aumentou intensidade de chuvas no Nordeste, dizem cientistas. Folha de São Paulo, 5 jul. 2022.
[33] NÓBREGA, F. Maior tragédia do século em Pernambuco, mortes pelas chuvas de 2022 superam total da cheia de 1975. Folha de Pernambuco, 2 jun. 2022.
[34] GHALEIGH, N. S. The what, how and where of climate law. In: LITTLE, G.; HEFFRON, R. (Eds.). Delivering Energy Policy in the EU and US: a multi-disciplinary reader. Edinburgh: EUP, 2015, p. 1.
*Marcelo Bedoni é mestrando em Ciências Jurídicas pela UFPB e bacharel em Direito pela UFRR. Membro da Laclima e do FFF/PB.
José Irivaldo Alves Oliveira Silva é professor da UFCG (Campina Grande), UFPB e da UEPB. Pós-doutor em Direito pela UFSC e doutor em Direito pela UFPB com doutorado sanduíche na Universidade de Alicante (ESP).
Talden Farias é doutor e pós-doutor em Direito da Cidade pela Uerj, advogado e professor da UFPB e da UFPE e autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Direito Urbanístico.
Fonte: CONJUR
Publicação Ambiente Legal, 12/12/2022
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.