Coronavírus chega como mais um adversário aos povos que não contam com socorro governamental para enfrentar ataques constantes às suas terras, florestas e modos de viver
Por Alice Pataxó*
O colapso da covid-19 ameaça um grupo de risco que resiste no Brasil há 520 anos: os povos indígenas, com suas lutas que vêm de longe, contra o genocídio, a perda de seus territórios e as ameaças de um governo que estimula o ódio a comunidades tradicionais e pessoas LGBTQIA+. Em 2020, surgiu mais um inimigo, desta vez “comum a toda humanidade, independentemente de cor, poder ou dinheiro”, segundo o discurso do Estado sobre o enfrentamento da pandemia. O coronavírus se abateu sem condições de proteção, assistência pública ou a mínima dignidade. A falta de informação e acesso a itens básicos, como água, remédios e equipamentos em hospitais públicos forma o retrato real das diferenças na sociedade brasileira.
A primeira onda de crescimento da covid-19 no Brasil levou com ela muitas crianças, jovens, líderes e anciões de diversas etnias. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), até 22 de novembro último, 161 povos foram afetados, com 880 indígenas mortos e mais de 39.800 casos confirmados. A luta pela vida não permitiu o isolamento total em alguns territórios, com as comunidades ainda precisando se mobilizar contra reintegrações de posse arbitrárias, como aconteceu com os Pataxó na Aldeia Novos Guerreiros, na Bahia; contra a exploração ilegal de madeira e minerais, como os Kayapó e Munduruku no Sudoeste do Pará; ou contra os incêndios no Pantanal que chegaram a aldeias Boe Bororo.
Em meio à violência contra os povos, resistem a força e a vontade pela luta territorial, e ainda mais, da proteção às florestas brasileiras.
O maior grupo de risco há 520 anos
O genocídio chegou para os povos indígenas na colonização de Pindorama. De lá até hoje a luta contra vírus epidemias não cessou, vitimando principalmente povos isolados. Grande parte dos povos afetados enfrenta grandes índices de contaminação, que atingem especialmente os isolados ou de pouco contato. Nomes emblemáticos da nossa luta morreram esse ano atingidos pelo coronavírus, provocando sofrimento, o luto e o desaparecimento de parte da memória indígena. Perdemos Bernaldina Macuki, Bekwyjká Mektutire, Paulinho Paiakan, Antonio Bolívar e tantos outros parentes.
Tudo isso se agrava com a falta de assistência a saúde, e até mesmo do não acolhimento pelo governo, que limita a ação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em comunidades distantes e sucateia sua estrutura. A saúde de nossos povos que hoje está fragilizada também pela falta de atendimento e de equipamentos, além da superlotação nos serviços de atendimento.
Muitas comunidades se socorrem do conhecimento e, por ele, lutar contra os sintomas e o sofrimento dos parentes infectados pelo coronavírus. A sabedoria das florestas torna-se instrumento da luta pela vida. Impossível pensar na sobrevivência sem nosso lar e a força da cura que ela guarda. O maracá também soa em nossas aldeias pelo chamado da cura, do acalento da floresta, dos que guardamos, e agora são nossos guardiões.
A força que se levanta na floresta
Ainda é preciso manter viva e forte a luta pela floresta em pé e a demarcação de todos os nossos territórios. Comunidades indígenas se mobilizam cada vez mais pela defesa dos seus lugares, de seus biomas e de sua cultura, pilares da resistência. O nosso bem estar é de onde descendemos, precisamos proteger nossas raízes, e elas estão abraçadas junto às árvores que nos cercam, proteção de nossas gerações e protegidas por nós.
O desmatamento tem se acentuado de maneira dramática no Brasil, sobretudo na Amazônia Legal. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), a Amazônia perdeu, nas últimas quatro décadas, 20% de suas florestas – e aqui surge o valor dos territórios indígenas, onde apenas 2% da vegetação original desapareceram. Apesar da devastação inclemente, política de Estado, e da ação de fazendeiros, grileiros e garimpeiros, as comunidades indígenas sustentam baixo percentual de destruição ambiental graças à práticas ancestrais de sobrevivência, baseadas na harmonia com o meio em que se vive.
“A destruição nos deixa infelizes, conturbados, porque a floresta está ligada a nosso corpo, nosso espírito, nossa mente, é nossa mãe, é quem nos dá e tira a vida, o fruto”, ensina Rayhata Pataxó, estudante de comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e diretor da União da Juventude Socialista (UJS-BA). Ele ressalta a forte relação da juventude com as matas e a missão que o futuro reserva. “Temos grande responsabilidade com o que nos sustenta, com que nos faz feliz”.
A preservação ambiental será a luta eterna dos movimentos indígenas no Brasil, as aldeias não só cuidam como reflorestam seus territórios com plantas nativas, como na Aldeia Indígena Pataxó Boca Mata. A preservação ambiental carrega a esperança dos povos tradicionais de manter vida, costumes, espírito, sonhos e conquistas. Nada disso existe sem a mata, proteção contra as muitas pandemias que espreitam os indígenas. “As pessoas deveriam ficar abismadas em derrubar uma árvore, mas só ficam quando cai um prédio”, constata Rayhata, pronto, como todos os seus, para a luta que não cessa.
*Alice Pataxó – Comunicadora e ativista indígena, da etnia Pataxó, fundadora do canal Nuhé, estudante de Bacharelato Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal do Sul da Bahia.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 04/12/2020
Edição: Ana A. Alencar