Parcerias entre instituições de pesquisa e a esfera pública procuram entender a judicialização da saúde e propor estratégias para lidar com o fenômeno
Da redação*
No quinto andar do prédio da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, na capital paulista, a advogada Renata Santos e uma equipe de 35 pessoas lidam diariamente com os benefícios e os percalços decorrentes de um dos grandes desafios da gestão pública atual: o fornecimento de medicamentos imposto por decisões judiciais. Nos últimos cinco anos, a quantidade de processos movidos por pacientes para obrigar o Estado a fornecer fármacos e tratamentos que ainda não são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou ainda não foram registrados no país aumentou 92%. Apenas em 2015, o governo paulista gastou R$ 1,2 bilhão em remédios e insumos para 57 mil pacientes que recorreram aos tribunais. “Esse valor é quase o necessário para sustentar por um ano o Hospital das Clínicas [da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP)], onde são atendidos 35 mil pacientes por dia”, compara Renata.
O fenômeno conhecido como judicialização da saúde é multifacetado. Por um lado, as ações judiciais comprometem uma parcela significativa do orçamento para atender demandas específicas de alguns pacientes; por outro, podem significar o único caminho para salvar ou prolongar a vida de pacientes, especialmente de pessoas com doenças raras ou crônicas, como diabetes e câncer, que dependem de medicamentos de alto custo. Há também o uso desse recurso extremo para medicamentos equivalentes aos disponíveis no sistema público de saúde, e até mesmo para compra de produtos como fraldas ou água de coco – sempre com receita médica. Nos últimos anos, a equipe da secretaria estadual da saúde tem trabalhado com pesquisadores de universidades paulistas para criar sistemas de informação que possam subsidiar as decisões de gestores do setor e juízes de modo a favorecer a incorporação de medicamentos mais solicitados ao sistema público.
As parcerias entre as equipes da secretaria e das instituições de pesquisa se apoiam em um programa de computador chamado S-Codes, criado em 2010 pela Coordenação das Demandas Estratégicas do SUS (Codes), pertencente à secretaria paulista e que gerencia os processos judiciais movidos contra o estado de São Paulo. O S-Codes mostrou que 60% das decisões judiciais resultam de prescrições de médicos do sistema privado de saúde, isto é, de consultórios, clínicas e hospitais particulares. Uma hipótese defendida por Renata para explicar esse dado é a de que, em geral, os médicos da rede privada desconhecem a legislação de saúde e a lista de fármacos incorporados pela rede pública, a Relação Nacional de Medicamentos (Rename) do Ministério da Saúde (MS). “Por essa razão”, diz ela, “alternativas terapêuticas já disponíveis no SUS e similares às solicitadas acabam sendo desconsideradas pelos médicos”.
O S-Codes tornou-se uma peça-chave em estudo realizados no âmbito do Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS), financiado pelo MS em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e conduzido, em São Paulo, pela FAPESP e pela Secretaria de Estado da Saúde. O programa apoia pesquisas voltadas para problemas prioritários da saúde e para o fortalecimento da gestão do SUS em São Paulo. Nos últimos anos, o tema da judicialização da saúde ganhou destaque entre os projetos de pesquisa apresentados ao programa. Em um deles, o contabilista Carlos Alberto Grespan Bonacim, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP em Ribeirão Preto, examinou o perfil socioeconômico de pacientes com base em uma amostra de aproximadamente 900 ações judiciais registradas de 2013 a junho de 2015, inferindo sobre a liberação de cerca de 8 mil medicamentos em 27 municípios da região de Ribeirão Preto. A cidade é uma das três com maior índice de ações judiciais em saúde no estado – as outras são Barretos e São José do Rio Preto.
Com base no S-Codes, Bonacim verificou que 66% dos medicamentos obtidos por via judicial não constavam na lista do SUS. Os 34% restantes já eram fornecidos pela rede pública, mas os pacientes solicitaram versões produzidas por outras empresas ou que continham algum incremento tecnológico. Também o antropólogo brasileiro João Biehl, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, em um estudo publicado no ano passado no Health and Human Rights Journal, constatou que, de um total de 3.468 medicamentos solicitados por ações judiciais contra o estado do Rio Grande do Sul em 2008, mais da metade (56%) era fornecida pelo SUS.
Médicos e pesquisadores afirmam que nem sempre o medicamento de última geração será mais efetivo do que os já adotados pelo SUS. Um exemplo está no A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, no qual são realizados atendimentos pelo SUS e por consultas particulares. As pacientes atendidas pela via privada podem ter acesso a dois novos remédios utilizados para tratar o câncer de mama, o trastuzumabe entansina e o pertuzumabe. Quando associados à quimioterapia, podem prolongar a sobrevida das mulheres de três para cinco anos. Embora tenham sido aprovados em 2014 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal que regula o registro de medicamentos e alimentos, e estejam liberados para comercialização no país, os dois fármacos não foram aprovados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), órgão criado em 2011 ligado ao MS, portanto, ainda não estão disponíveis na rede pública. “O tratamento com esses medicamentos custa cerca de R$ 30 mil ao mês por paciente. O custo total de sua incorporação no SUS seria inviável para o governo, já que a cada ano surgem 50 mil novos casos de câncer de mama no país”, diz Helano Freitas, coordenador de pesquisa clínica do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo. Mesmo sem acesso a essas drogas de última geração, as usuárias do SUS tratadas no hospital não são prejudicadas. “Outros medicamentos fornecidos pelo sistema de saúde são igualmente eficientes e podem aumentar a sobrevida das pacientes”, afirma. De acordo com Freitas, a maioria dos pacientes do A.C.Camargo que recorrem a ações judiciais para receber medicamentos geralmente tem mais acesso à informação e gozam de melhores condições socioeconômicas.
Nem sempre essa é a regra. A renda média dos pacientes que entraram na Justiça na região de Ribeirão Preto é de pouco mais de R$ 1 mil, de acordo com o estudo de Bonacim, da USP. Segundo ele, esse dado ajuda a mostrar que a judicialização não é um fenômeno relativo a pessoas de maior renda. “Os pacientes com menos recursos recorrem à Defensoria Pública do Estado, que presta assistência jurídica gratuita.” Mesmo assim, 60% dos pacientes analisados da região de Ribeirão Preto contrataram um advogado particular.
Nos últimos seis anos, o MS desembolsou R$ 3,2 bilhões na compra de medicamentos, equipamentos, suplementos alimentares e na cobertura de cirurgias e internações a partir de determinações judiciais . A maior parte das ações federais é oriunda de Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Incluindo os gastos municipais e estaduais, o governo federal calcula que a despesa com a compra de medicamentos por decisão judicial tenha chegado a R$ 7 bilhões no ano passado. Parte significativa desse valor foi utilizada para bancar medicamentos de alto custo. Em 2016, o MS gastou R$ 654,9 milhões na compra de apenas 10 medicamentos para atender 1.213 pessoas. Em São Paulo, 4% dos fármacos consomem mais de 90% dos gastos com ações judiciais no estado.
Registros na Anvisa
Da lista dos medicamentos mais caros comprados pelo governo federal, seis não estão registrados na Anvisa. Um deles é a lomitapida, aprovado nos Estados Unidos para uso por portadores de uma doença genética rara, a hipercolesterolemia familiar homozigótica. O tratamento com esse medicamento custa cerca de US$ 1 mil por dia. O fato de um medicamento não estar registrado na Anvisa significa que não tem autorização oficial para ser comercializado em ampla escala no Brasil porque, mesmo em seus países de origem, ainda não passou por todos os testes pré-clínicos (em modelos animais) e clínicos (em seres humanos) necessários para evidenciar sua segurança de uso e eficácia.
“Em geral os juízes não têm embasamento tecnocientífico sobre todos os aspectos que são inerentes a um medicamento, como sua regulamentação, e também a estrutura do SUS, que disponibiliza os fármacos dentro de critérios estabelecidos com base científica”, diz Maria Aparecida Nicoletti, pesquisadora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. A farmacêutica integra um projeto do PPSUS para adaptar o método espanhol Dáder, de acompanhamento farmacoterapêutico de pacientes, na Farmácia Universitária da USP (Farmusp), com vistas a ser aplicado em Unidades Básicas de Saúde paulistas e gerar informações para subsidiar as decisões judiciais. Nesse estudo, um grupo de pacientes com câncer de próstata, tratados no Hospital Universitário da USP inicialmente com medicamentos já disponíveis no SUS, passa por consultas farmacêuticas, nas quais se avalia a efetividade dos fármacos e as possíveis interações entre eles. “Estamos lidando com pacientes que não apenas sofrem de câncer, mas podem também ter depressão, hipercolesterolemia, hipertensão e problemas cardiovasculares, tomando medicamentos para essas doenças”, explica Maria Aparecida.
De acordo com a pesquisadora, esse método vem sendo aplicado em outras partes do Brasil, mas de maneira ainda insuficiente. “É necessário intensificar a prática do acompanhamento farmacoterapêutico, especialmente de medicamentos de custo elevado, compilar e divulgar os resultados”, diz Maria Aparecida. Segundo ela, o método também pode ajudar no acompanhamento de medicamentos utilizados off-label, algo comum entre as ações judiciais. A expressão é usada em situações em que o médico prescreve um remédio para tratar uma condição para a qual o produto não foi originalmente desenvolvido. Há casos em que o uso off-label acaba caracterizando erro médico. Em outros, pode funcionar.
Em municípios
Na Universidade de Sorocaba (Uniso), um grupo de pesquisa trabalha dentro do PPSUS com o acompanhamento farmacoterapêutico de pacientes e no desenvolvimento de um sistema informatizado semelhante ao da secretaria estadual. A diferença é que o JudSys, como foi batizado o programa, volta-se a demandas dos municípios e conta com um módulo clínico que permite organizar dados técnicos sobre o uso de medicamentos levantados em consultas farmacêuticas. “Fizemos testes-piloto em municípios da região de Sorocaba, como Votorantim e São Roque, para avaliar a viabilidade e funcionalidade do JudSys e agora estamos fazendo ajustes para oferecer a outros municípios interessados”, explica o farmacêutico Silvio Barberato Filho, professor da Uniso e coordenador do projeto.
No ano passado, o grupo de Barberato iniciou uma parceria com a Farmácia Escola da Universidade de Brasília (UnB), no Distrito Federal, para testar o módulo clínico do JudSys. Lá, é feito o acompanhamento de 15 pacientes portadores de diabetes que utilizam insulinas análogas, um dos medicamentos mais solicitados por via judicial. Assim como na USP, os pacientes na UnB são atendidos por farmacêuticos, que registram dados sobre a utilização do fármaco e dão orientações aos pacientes. Os resultados do acompanhamento devem ser organizados nos próximos meses, e novos dados sobre o uso da insulina análoga serão divulgados. “A insulina análoga não foi incorporada pelo SUS, mas alguns estados e municípios definiram protocolos clínicos e incluíram o medicamento em suas listas locais”, informa Barberato.
A preocupação com o impacto da judicialização nos municípios é justificável. Há casos em que uma única ação pode comprometer todo o orçamento da saúde de uma cidade de pequeno porte. Algumas iniciativas buscam contornar esse obstáculo por meio de arranjos institucionais. Um dos exemplos mais lembrados é o de Santa Catarina. Em 1997, 25 municípios do entorno da cidade de Lages, a 200 quilômetros de Florianópolis, uniram-se para encontrar melhores formas de administrar os recursos para a saúde, frequentemente afetados pela judicialização. Os prefeitos e gestores dos municípios perceberam que, isoladamente, era mais complicado enfrentar as decisões judiciais. Por meio do consórcio intermunicipal, criou-se um padrão comum de atuação, que evitou sobreposições de pedidos e racionalizou gastos e investimentos, segundo relatam Roseni Pinheiro e Felipe Asensi, professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em artigo publicado em julho de 2016 na Revista de Direito Sanitário. O trabalho é oriundo de uma pesquisa coordenada por ambos em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em 2012, o consórcio lançou o Núcleo de Conciliação de Medicamentos para atender solicitações de fármacos que ainda não foram pedidos por via judicial. Em um espaço cedido pela prefeitura de Lages, uma equipe multidisciplinar conversa com pacientes interessados em mover ações judiciais, sugere o uso da versão genérica dos medicamentos que solicitaram e propõe a substituição ao médico que fez a prescrição, antes do pedido seguir pelos caminhos judiciais. Segundo os pesquisadores, “a integração entre os órgãos da saúde (municipal e estadual), pacientes, Defensoria Pública, advocacia pública e Ministério Público levou a uma redução dos conflitos judiciais”.
Em São Paulo, uma iniciativa anunciada em dezembro de 2016 também procura promover a interação entre os atores envolvidos nas solicitações judiciais de medicamentos. A Secretaria da Saúde, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Defensoria Pública estaduais celebraram um termo de cooperação que estabelece um protocolo de fluxos de serviços de triagem e orientação farmacêutica a usuários do SUS. “A ideia é que profissionais capacitados avaliem as prescrições médicas antes que os pacientes tomem a decisão de acionar a Justiça. Trata-se de uma forma de verificar a possibilidade de apresentar ao médico e ao paciente alternativas terapêuticas fornecidas pelo SUS, quando houver essa possibilidade”, explica Sylvio Ribeiro de Souza Neto, juiz assessor do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Para Renata Santos, da secretaria, a iniciativa é uma oportunidade de diálogo entre o poder judiciário e os gestores. “Queremos que os magistrados entendam que a secretaria quer atender os pacientes, dentro das melhores técnicas da medicina, sem se basear numa restrição econômica. Temos uma verba que deve ser aplicada em saúde. O que buscamos são as melhores formas de usar os recursos públicos e atender ao maior número possível de pessoas”, diz ela.
Também no final do ano passado, o CNJ e o Ministério da Saúde, em parceria com o Hospital Sírio-Libanês, anunciaram um projeto para ampliar o uso de informações baseadas em evidências científicas pelos magistrados e aperfeiçoar o julgamento das demandas judiciais. O acordo prevê a expansão dos Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (Nats), cuja tarefa é auxiliar tribunais de todo o país por meio de pareceres e notas técnicas sobre medicamentos. Em novembro, a primeira oficina de capacitação e treinamento dos Nats reuniu representantes de tribunais de 10 estados brasileiros. “Tratamos de temas como a elaboração e a padronização de notas técnicas”, conta Luiz Reis, do Hospital Sírio-Libanês, onde ocorreu a reunião.
De acordo com Arnaldo Hossepian Salles Lima Junior, conselheiro do CNJ e supervisor do Fórum Nacional de Saúde, a parceria com o hospital inclui a criação de um banco de dados com informações técnicas, com base em evidências científicas, que poderá ser acessado por magistrados de todo o país. “A ideia é que, antes de tomar uma decisão, o juiz consulte o banco, que estará disponível no site do CNJ, e acesse informações sobre medicamentos, procedimentos e afins que constem na solicitação do paciente. Com essas informações, ele poderá saber se há, por exemplo, um fármaco similar no SUS e se a droga solicitada é realmente efetiva”, explica Hossepian. O Sírio deverá investir cerca de R$ 15 milhões, ao longo de três anos, para criar a estrutura da plataforma. As informações científicas que a alimentarão serão fornecidas por pareceres emitidos pelos Nats, pela Conitec e pelo Centro Cochrane, organização internacional com sede em Copenhague, na Dinamarca, que analisa conjuntos de estudos clínicos em busca de evidências da eficácia de tratamentos.
Em setembro de 2016, o CNJ aprovou uma resolução que dispõe sobre a criação e manutenção dos Comitês Estaduais de Saúde, já estabelecidos em alguns estados, com a função de discutir questões de saúde e auxiliar o trabalho de magistrados. Um dos comitês mais atuantes é o de Minas Gerais, formado por membros do poder judiciário estadual e federal e representantes de planos de saúde, do Ministério Público, das Santas Casas e de universidades, entre elas a Federal de Minas Gerais (UFMG). Osvaldo Firmo, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) e membro do comitê estadual de saúde do CNJ, enfatiza que os juízes valorizem mais as orientações técnicas. “A dificuldade é que ninguém quer correr o risco de ser cúmplice da morte de uma pessoa”, ressalva. No site do comitê há um conjunto de recomendações para os magistrados, além de notas técnicas e links para livros e artigos que abordam a judicialização.
Sylvio Ribeiro, do TJSP, se recorda do tempo em que atuava na linha de frente, julgando casos de saúde. “Por mais que tivéssemos em mãos informações científicas, é angustiante saber que uma negativa nossa pode acarretar a perda de saúde ou até mesmo a morte de alguém”, diz. Renata Santos, da secretaria estadual, afirma que quase sempre a defesa do paciente baseia-se no risco de morte caso o medicamento não seja fornecido. Contudo, o S-Codes indicou que em parte considerável das decisões judiciais não há risco de dano irreparável ao paciente.
Muitas vezes, além dos medicamentos, os pedidos judiciais incluem itens já fornecidos pelo SUS, como fraldas descartáveis, ou que extrapolam o tratamento médico, como lenços umedecidos, filtro solar e água de coco, que os médicos consideram relevantes para seus pacientes. Por essa razão, a secretaria tem de fornecer 69 tipos distintos de fraldas a 4 mil pessoas, ao custo anual de R$ 12,6 milhões. “É cada vez maior o número de pacientes que solicitam a compra de medicamentos e insumos já disponíveis no sistema público. O SUS fornece ácido acetilsalicílico, mas ainda assim há pacientes que entram na Justiça para solicitar um analgésico de outra marca”, conta Renata.
Ela não descarta a influência da indústria farmacêutica como um dos pressupostos da judicialização. Estudos divulgados recentemente mostram que a influência de empresas do setor se estende a grupos e associações de pacientes. Uma pesquisa publicada em janeiro deste ano no Jama Internal Medicine por Susannah Rose, da Universidade Case Western Reserve, dos Estados Unidos, investigou cerca de 300 grupos de defesa de pacientes no país e descobriu que 67% receberam dinheiro de empresas farmacêuticas no ano passado. Segundo gestores públicos, há indícios de que a pressão da indústria é semelhante no Brasil e acaba contribuindo para o aumento da judicialização ao criar novas demandas por medicamentos. As decisões judiciais também têm outros efeitos. “Há casos em que as determinações da Justiça impulsionaram o SUS, na medida em que as sentenças repetidas sobre um mesmo fármaco ou procedimento alertaram sobre a necessidade de incorporação tecnológica e de medicamentos”, pondera Renata.
Doenças raras
Para quem tem alguma doença rara, a via judicial pode ser a única forma de obter medicamentos extremamente caros. Um exemplo são os pacientes que sofrem de hemoglobinúria paroxística noturna, tipo raro de anemia de origem genética que pode causar doença renal crônica, hipertensão pulmonar, entre outros sintomas. O medicamento indicado para esse caso é o eculizumabe, cujo nome comercial é Soliris, ainda sem registro na Anvisa. Em 2016, o Soliris representou o maior gasto do Ministério da Saúde em ações judiciais: R$ 391,8 milhões para atender 336 pacientes.
Um argumento muito utilizado por pacientes que recorrem à Justiça para obter os chamados medicamento excepcionais, de custos muito altos, tem origem na Constituição Federal, segundo a qual a saúde é um direito de todos e dever do Estado. “O problema é que o direito individual está prevalecendo sobre o coletivo”, avalia Luiza Heimann, diretora do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo, instituição vinculada à secretaria estadual da saúde, que desenvolve estudos de avaliação de tecnologias em saúde. “Cuidar da saúde dos cidadãos não significa cuidar da somatória de indivíduos doentes. Trata-se de estipular um planejamento a partir do perfil epidemiológico da população”, explica Luiza. A cada quatro anos, diz ela, é realizada a Conferência Nacional de Saúde, na qual gestores do SUS, trabalhadores e representantes da sociedade civil organizada definem, com base em estudos epidemiológicos, quais serão as prioridades no SUS nos próximos anos. Para o juiz Osvaldo Firmo, do TJMG, isso significa que as políticas em saúde devem garantir a toda a população um tratamento de igual acesso para todos, sem privilégios. “Os procedimentos para incorporação de medicamentos no Brasil obedecem a critérios que privilegiam a compra de grandes volumes de medicamentos para o maior número possível de pessoas”, diz Firmo.
Em países desenvolvidos, especialmente na Europa, o problema da judicialização é praticamente inexistente. “Países como Itália, França e Reino Unido têm sistemas de saúde universalizados que amadureceram ao longo de décadas”, explica José Gomes Temporão, ministro da Saúde entre 2007 e 2011. “A população desses países tem consciência de que o fornecimento de medicamentos pelo Estado tem limitações. Os pacientes aceitam o tratamento disponível pelo sistema e sequer cogitam entrar na Justiça, salvo os casos extremos, como o das doenças raras”, diz Temporão. Na avaliação de Denizar Vianna Araújo, pesquisador da Uerj, a judicialização da saúde tornou-se um fenômeno essencialmente latino-americano. “Diante de uma negativa do Estado, o cidadão é incentivado a procurar salvação no judiciário. Trata-se de um traço cultural forte em países da América Latina”, diz.
Cláudio Cordovil, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, defende a necessidade de mudanças no sistema de incorporação de medicamentos para doenças raras no Brasil. Segundo ele, as avaliações de tecnologias em saúde (ATS), feitas pela Conitec para decidir a incorporação de medicamentos no SUS, foram originalmente criadas para deliberar sobre fármacos voltados a atender um grande número de pessoas. Para Cordovil, o emprego de metodologias convencionais de ATS no contexto das doenças raras, que atingem grupos específicos de pacientes, é um dos fatores que estimulam a judicialização no país. “Se aplicamos metodologias convencionais para decidir sobre medicamentos para doenças raras, na prática não incorporaremos nenhum desses fármacos ao SUS. A literatura internacional tem comprovado isso de forma inequívoca”, diz o pesquisador.
Renata Santos levanta no S-Codes outros dados pouco conhecidos sobre as consequências da compra de medicamentos por via judicial. “De 20% a 30% dos pacientes que entram com ação em São Paulo não aparecem para retirar o medicamento liberado pela Justiça”, afirma. “Tirando casos de pacientes que falecem, os principais motivos de não buscarem o medicamento é que a pessoa muda de ideia, desiste do tratamento e opta por outro.” Quando possível, a secretaria direciona o fármaco para outro paciente, embora mais da metade dos pedidos sejam de uso exclusivo, isto é, cada fármaco é consumido apenas por uma pessoa. “Quando o paciente não vem buscar”, ela conta, “estocamos o medicamento e, quando passa da validade, temos de incinerar”.
Projetos
1. Gestão municipal de demandas judiciais na saúde: modelo de acompanhamento farmacoterapêutico de pacientes (nº 2014/06038-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Silvio Barberato Filho (Uniso); Investimento R$ 103.297,39.
2. Fatores condicionantes dos processos de judicialização na divisão regional de saúde – DRS XII (nº 2014/50040-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – PPSUS; Pesquisador responsável Carlos Alberto Grespan Bonacim (Fearp-USP); Investimento R$ 7.325,37.
3. Seguimento farmacoterapêutico de pacientes na farmácia universitária da USP (nº 2012/51707-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – PPSUS; Pesquisador responsável Silvia Storpirtis (FCF-USP); Investimento R$ 253.692,76.
Artigos científicos
BIEHL, J. et al. The judicialization of health and the quest for accountability: Evidence from 1.262 lawsuits for access to medicines in Southern Brazil. Health and Human Rights Journal. jun. 2016.
ASENSI, F.; PINHEIRP, R. Judicialização da saúde e diálogo institucional: A experiência de Lages (SC). Revista do Direito Sanitário. v. 17, n. 2, 2016.
*Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/02/10/demandas-crescentes/