Por Inês Virgínia Soares e Talden Farias*
A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, além travar discussões sobre os impactos das mudanças climáticas nos biomas, ecossistemas e na vida dos seres no planeta, teve um significado especial para o Brasil porque, ao receber o presidente recém-eleito Lula da Silva como convidado, trouxe novamente o país para a arena dos atores mais comprometidos com a proteção dos recursos ecológicos e culturais essenciais à vida das presente e futuras gerações.
A COP27 lançou luzes para a percepção coletiva acerca da urgência de um engajamento global em torno de uma justiça da cultura climática, com aporte de recursos e assunção de compromissos pelos Estados mais ricos e uma compensação aos mais afetados pelo aquecimento global, já que na maioria das vezes os países mais pobres pouco ou sequer contribuíram para as mudanças climáticas e muito menos se beneficiam de riquezas e confortos que provocam desequilíbrios ecológicos ou que decorrem da exploração de recursos naturais.
Em sua fala, o presidente eleito pediu a criação urgente de fundo para cobrir danos climáticos e destacou que voltava à COP para “ajudar a construir uma ordem mundial pacífica, assentada no diálogo, no multilateralismo e na multipolaridade” e também “para propor uma nova governança global. O mundo de hoje não é o mesmo de 1945. É preciso incluir mais países no Conselho de Segurança da ONU e acabar com o privilégio do veto, hoje restrito a alguns poucos, para a efetiva promoção do equilíbrio e da paz”.
A referência ao ano de 1945 indica a estreita relação entre a paz e a proteção ambiental e do patrimônio cultural. Logo após a segunda grande Guerra Mundial, a atenção a novos valores — para o bem estar coletivo e para a transmissão de um mundo melhor para as próximas gerações — teve, como uma das consequências, a reformulação de instituições e institutos, com a valorização não apenas da memória e de laços identitários, mas também de paisagens, espaços, naturais ou construídos, e edificações que simbolizavam e davam vida às relações cívicas e políticas.
Naquele momento, a devastação das cidades, bem como a perda de bens únicos e insubstituíveis, foi determinante para a construção, pela comunidade internacional, de um arranjo normativo e institucional que pudesse defender os bens representativos de identidade cultural da comunidade local e da humanidade, numa perspectiva intergeracional. A Unesco passou a trabalhar para buscar um consenso global e produzir normas destinadas à preservação, à promoção, à proteção e à manutenção da qualidade de vida em um cenário de desenvolvimento e de sustentabilidade.
A criação da Unesco, em 1946, e a edição, por esse organismo, em 1954, da Convenção para Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, conhecida como Convenção de Haia de 1954, foram marcos no sistema protetivo do patrimônio cultural. Esta Convenção de 1954 e seu Protocolo I, do mesmo ano, consagraram a necessidade de proteção dos bens culturais considerados relevantes, ampliando a noção de patrimônio e identidade coletivos. Em 1999, seu conteúdo foi atualizado (Protocolo II). E, a partir das experiências de conflitos armados e guerras a partir dos anos 1980, o documento destacou o dever dos Estados, por meio de leis e decisões judiciais adequadas, de punição às graves violações também aos bens móveis relevantes para a humanidade, como furtos, roubos, pilhagens, ataques ou atos de vandalismo.
Ainda na década de 1950, os temas do patrimônio cultural e do meio ambiente começam a ser percebidos como temas afins. A mobilização internacional, após o Egito anunciar, em 1954, o projeto de construção da Barragem do Alto de Assuão, que criaria um enorme lago artificial e inundaria o Vale do Alto Nilo (desde Assuão, no Egito, até Dal Cataract, no Sudão), que abrigava patrimônio arqueológico da área conhecida como Núbia, de três mil anos de idade, foi um acontecimento que chamou atenção para o impacto dos grandes empreendimentos no meio ambiente e seus componentes (paisagem, sítios arqueológicos, fauna etc). Este projeto, que visava a construção de uma hidrelétrica através da exploração dos recursos do Rio Nilo, estampou a intrínseca ligação entre meio ambiente e patrimônio cultural, em tempos de guerra ou paz, indicando a insuficiência da Convenção de Haia de 1954 e provocando a continuidade dos debates para efetiva tutela do patrimônio cultural de valor universal.
A Campanha de Núbia, liderada pela Unesco, foi lançada em 1960 e tinha por finalidade salvar os Monumentos da Núbia, relocalizando e remontando seis grupos de monumentos ameaçados pelo empreendimento, com destaque para o templo de Abu-Simbel, que foi remanejado para as margens do lago Nasser, o Templo de Debode para Madrid e desde 2008 é bem de interesse cultural espanhol e o Templo de Dendur para Nova York e integrante do acervo do Museu Metropolitan. No entanto, muitos sítios arqueológicos, conhecidos e estudados, foram inundados pelo lago Nasser.
A bem sucedida Campanha de Núbia foi concluída há 22 anos, em de 10 março de 1980. Dez anos antes, foi editada a Convenção sobre as Medidas a serem adotadas para proibir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais, Paris, Unesco (1970); e, oito anos antes, a experiência dessa luta se somava à memória das destruições decorrentes das guerras e conflitos armados e influenciava a redação do texto da Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial, ou Convenção de 1972, principalmente na previsão da Lista do Patrimônio Mundial e da inscrição de bens ameaçados por grandes riscos, incluindo conflitos armados, iminentes ou recentemente iniciados na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo.
Já abordamos, em outro texto também publicado no Conjur, que, a partir dos anos de 1970, houve diálogos e reflexões na busca de uma maior proteção dos espaços naturais ou artificiais essenciais ao viver.
Também tivemos a oportunidade de destacar que a Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial, de 1972, decorreu de uma demanda da comunidade internacional por normas e iniciativa de promoção do respeito à diversidade cultural e de contenção à devastação ambiental. Em 1968, em Paris, a Unesco sediou a Conferência Intergovernamental de Especialistas sobre Bases Científicas para o Uso e Conservação Racionais dos Recursos da Biosfera. Em 1972, em Estocolmo, foi realizada a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que enunciou no seu primeiro princípio que “o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e a condições satisfatórias de vida, em um meio ambiente cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar”.
Nos anos de 1970, desde a experiência da guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos lançaram criminosamente produtos químicos na selva e nas plantações vietnamitas, o termo ecocídio passar a ser ventilado e, embora não tenha vingado naquele momento, a destruição do meio ambiente foi incluída como um crime de guerra.
A atenção à destruição de patrimônios culturais e às consequências dessas perdas para a fruição de uma vida sadia pela presente e futuras gerações foram uma das sementes para adoção de iniciativas e confecção do arcabouço normativo ambiental, com atenção aos valores ecológicos e com o fortalecimento da ideia de que o equilíbrio ambiental era um valor jurídico essencial para a coletividade numa perspectiva temporal. A expressão “condições satisfatórias”, de vida, insculpida na Conferência de 1972, indicava a necessidade de preservação, fortalecimento e valorização dos bens naturais e culturais que contribuíssem para o bem-estar da sociedade.
Na 2ª Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, ocorrida em 1992 no Rio de Janeiro, foram enunciados princípios que se consolidaram como base para formação de um rico acervo normativo produzido pela comunidade internacional, aproximando ainda mais meio ambiente e patrimônio cultural, do qual podemos destacar: a Declaração sobre as Responsabilidades das Gerações Atuais para com as Gerações Futuras, Paris, Unesco (1997); a Convenção sobre Diversidade Biológica, ONU (1992); a Convenção Sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, Paris, Unesco (2001); a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Paris, Unesco (2003); a Convenção sobre a Diversidade Cultural, Unesco (2005); e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos, de 2007.
Esse arranjo normativo, no entanto, não foi suficiente para proteger os patrimônios naturais e culturais da humanidade de atos terroristas e de ataques em situações de guerra ou conflitos armados — e, obviamente, toda conflito desse tipo gera danos assim. Nas últimas décadas, os casos de destruição dos Budas de Bamiyan e de patrimônios culturais da humanidade situados no Afeganistão, Líbia, Síria, Mali e Iraque mostraram que o aparato até agora produzido pela comunidade internacional é insuficiente.
É interessante notar que há certo concertamento para tratamento do patrimônio cultural como elemento essencial à paz e segurança dos povos. Nessa perspectiva, as Resoluções do Conselho de Segurança da ONU, de números 2199 e 2347, são marcos por consolidarem, formalmente, o reconhecimento de que a defesa dos valores e bens culturais, por ser essencial à segurança e à paz, está dentro de suas atribuições.
Catherine Fiankan-Bokonga, ao contextualizar historicamente a Resolução 2347 do Conselho de Segurança da ONU, emitida em 2017, no artigo “Uma resolução histórica para proteger o patrimônio cultural”, destaca a construção de “um novo cenário cultural” e o surgimento de “uma nova consciência mundial” como essenciais para a adoção da perspectiva de proteção da cultura para promoção da paz e da segurança.
A destruição de patrimônios culturais e de paisagens em Mali, em 2012, conhecido como “caso Tombuctu” é emblemático, tanto pelo julgamento que tramitou no Tribunal Penal Internacional, como pela constatação de violação a valores e bens ecológicos sem a correspondente punição aos responsáveis por crimes ambientais.
Timbuktu (ou Tombuctu) foi declarada patrimônio da humanidade pela Unesco desde 1988, era apelidada de “pérola no deserto'”. Tinha um comércio regional importante, muitas riquezas culturais e era uma das principais atrações turísticas da África Ocidental. A resposta institucional no caso Timbuktu (em português Tombuctu) foi dada pelo Tribunal Penal Internacional em 2016, com a condenação de Ahmad al-Faqi al-Mahdi a nove anos de prisão, pelas destruições de mausoléus do século 16 e de parte de uma mesquita do século 15; e em 2017, com complemento da condenação de 2016, com o dever de reparação e compensação às vítimas da comunidade, por danos materiais e morais, no valor de 2,7 milhões de euros.
É importante destacar que não houve apreciação, pelo Tribunal Penal Internacional, do crime ambiental cometido, apesar da mesquita e mausoléus destruídos neste leading case integrarem uma paisagem única, de valor também ecológico.
Vale a pena salientar que embora os direitos ambientais já integrem o rol de direitos humanos, os crimes contra o meio ambiente não têm sido considerados delitos que afetam a segurança e paz mundiais, tampouco relacionados no Estatuto de Roma, o que afasta a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Como explica Sylvia Steiner, em texto publicado no Conjur em 2019:
“É preciso repetir sempre — não há crimes contra o meio ambiente no Estatuto de Roma. O que há são condutas de destruição do meio ambiente como meio, como método de comissão de delitos, tais como crimes de guerra — um deles aliás expressamente previsto no artigo 8 b) iv) do Estatuto (lançar intencionalmente um ataque, com o conhecimento de que tal ataque causará perdas incidentais de vidas ou danos a civis ou a objetos civis ou que causarão danos difusos, sérios e duradouros ao meio ambiente, que sejam excessivos em relação à vantagem militar concreta que se pretendia).
Assim, pode-se, sem dúvida, imaginar situações em que determinadas violações às normas de proteção ao meio ambiente sejam perpetradas com o intuito específico de aniquilar um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, configurando assim, em tese, um crime de genocídio. Pode-se também vislumbrar a prática de violações às regras de proteção ambiental, como incêndios desproporcionais, envenenamento de lençóis freáticos, pulverização aérea de agrotóxicos ou inseticidas que ponham em risco a vida e a saúde de populações, de forma sistemática ou generalizada, com conhecimento dessas condutas e com intenção, como meios ou métodos para causar mortes ou o deslocamento forçado de populações. Os crimes, entretanto, serão sempre contra as pessoas, as vítimas, a humanidade, objeto último da proteção legal, e não crimes contra o meio ambiente ou, pior ainda, ecocídio”.
Nota-se que em tempos de paz e de notória emergência climática, é insuficiente tipificar como crime contra a humanidade apenas o uso do meio ambiente (e sua destruição) como “meio” ou “método” para fazer vítimas. A destruição do meio ambiente em tempos de paz — numa situação de normalidade e no legítimo exercício da soberania — pode afetar de tal modo a vida do planeta e o bem estar da humanidade, que precisa ser classificada como crime, com previsão de intitulações e instrumentos legítimos para promoção do julgamento das condutas. Até porque o Direito Ambiental deve se pautar pelo princípio da precaução, de forma que é preciso se antecipar aos riscos. Na Guerra da Ucrânia, além do prejuízo já causado ao patrimônio natural e cultural, há um receio de um dano nuclear, pois lá existem 15 reatores nucleares, o que poderia causar um desastre ainda maior do que o de Chernobyl.
A comunidade internacional está atenta a essa ausência normativa. Em junho de 2021, a ONU divulgou que “especialistas jurídicos definiram e apresentaram uma nova proposta de categoria de crime internacional: ‘ecocídio’. Se adotada pelas Partes do Tribunal Penal Internacional (TPI), se tornará a quinta categoria de crimes a serem processados pelo tribunal, ao lado de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e o crime de agressão”.
Permanece, portanto, a necessidade de construção, no âmbito internacional, de uma abordagem que, de alguma forma, não apenas comprometa os Estados com a proteção dos recursos ambientais essenciais à sadia qualidade de vida, mas que também puna os responsáveis por práticas criminosas contra os bens ecológicos. No entanto, no plano internacional, consolidar caminhos pautados no diálogo e na justiça ambiental tem sido mais importante do que se falar em punição por crimes praticados. O compromisso de líderes e governantes assume relevância ímpar nesse contexto. Isso implica dizer que, além da importantíssima discussão sobre perdas e danos e litigância climática, feita na COP27, o Direito Internacional Ambiental precisa avançar também na construção dessa nova categoria de crime, até porque a crise ambiental e climática exige novas respostas jurídicas.
*Inês Virgínia Soares é desembargadora federal no TRF da 3ª. Região (SP). Doutora em direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Especialista em direito sanitário pela UnB (Universidade de Brasília). Autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).
*Talden Farias é doutor e pós-doutor em Direito da Cidade pela Uerj, advogado e professor da UFPB e da UFPE e autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Direito Urbanístico.
Fonte: CONJUR
Publicação Ambiente Legal, 28/11/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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