Por Paulo de Bessa Antunes*
As últimas semanas, na cidade do Rio de Janeiro, têm sido marcadas por uma grave crise no abastecimento de água que é, majoritariamente, fornecida pela CEDAE, empresa estatal cujo principal acionista é o Estado do Rio de Janeiro. A CEDAE tem dado publicidade às suas análises da qualidade da água por ela distribuída[1], entretanto, como se sabe, a poluição não é um conceito meramente físico-químico mas, principalmente, uma percepção da sociedade. Neste aspecto, a empresa ainda tem muito por fazer.
Este artigo não pretende entrar no mérito da questão, pois será basicamente voltado para o esclarecimento de algumas questões de Direito Ambiental que são pouco conhecidas pelo público em geral. Evidentemente que se fará necessária uma contextualização prévia do tema.
Crise da água (ou de confiança?) no Rio de Janeiro
O abastecimento do Rio de Janeiro tem duas fontes principais: o rio Paraíba do Sul e o rio Guandu, que estão intimamente vinculados, haja vista que Guandu é dependente do Paraíba do Sul. Isto, por si só, demonstra que a cidade do Rio de Janeiro e muitos municípios vizinhos estão em constante risco hídrico[2], pois dependem, praticamente, de uma única fonte de abastecimento e, até onde se sabe, não existem campanhas sistemáticas voltadas para a economia de recursos hídricos, melhoria das condições de saneamento e ocupação ordenada do solo urbano. Ao que parece, o problema da segurança hídrica não existe para as nossas autoridades governamentais.
Vejamos, a seguir, algumas informações sobre os rios Paraíba do Sul e Guandu. O rio Paraíba do Sul banha três estados (São Paulo, Rio de Janeiro e Mimas Gerais), sendo resultado da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga, que nascem no estado de São Paulo e seus cursos d’água percorrem a região de Minas Gerais até desaguar no Oceano Atlântico, em São João da Barra. No leito do rio, estão localizados importantes reservatórios de usinas hidrelétricas, como Paraibuna, Santa Branca e Funil[3]. É, portanto, um rio federal (CF, artigo 20, III) e a gestão de suas águas é de responsabilidade do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul – CEIVAP[4], criado pelo Decreto Federal nº 1.842, de 22 de março de 1996, com jurisdição sobre 184 cidades nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
As águas do rio são utilizadas principalmente para (a) o abastecimento de 14,2 milhões de pessoas, (b) a irrigação, (c) a geração de energia hidrelétrica e (d) a diluição de esgotos. Esse último uso é uma das principais fontes de sua poluição que pode ser considerada como preocupante, especialmente nos trechos que cruzam ou tangenciam áreas urbanas. É importante que se observe que, no que diz respeito à diluição de esgotos, o nível de saneamento básico nos municípios banhados pelo Paraíba do Sul é sofrível. Tal condição se agrava pelo crescimento urbano desordenado e pelas ocupações ilegais de suas margens.
As águas do Paraíba do Sul chegam à cidade do Rio de Janeiro e região por intermédio do rio Guandu, que drena uma bacia com área de 1.385 Km² e é formado pelo rio Ribeirão das Lages, passando a se chamar rio Guandu a partir da confluência com o rio Santana. Seus principais afluentes são os rios dos Macacos, Santana, São Pedro, Poços/Queimados e Ipiranga. O seu curso final retificado leva o nome de canal do São Francisco. Todo seu percurso, até a foz, totaliza 48 Km². As águas do Guandu são, em boa medida, originadas do rio Paraíba do Sul que, por meio de uma transposição (realizada na usina hidrelétrica da Light, a jusante de Santa Cecília), cede aproximadamente 60% de suas águas para o Guandu, através das canalizações forçadas das usinas. Na transposição do Paraíba do Sul se dá o encontro com o Ribeirão das Lajes, gerando o volume de água que abastece o Rio de Janeiro.
Existe um Comitê de Bacia Hidrográfica, criado pelo Decreto Estadual nº 31.178, de 3 de abril de 2002, englobando, além do rio Guandu, os rios da Guarda e Guandu-Mirim. Tal Comitê tem jurisdição sobre as bacias dos rios Guandu (1.385 km²), da Guarda (346 km²) e Guandu Mirim (190 km²), abarcando 15 municípios do estado do Rio de Janeiro, sendo que Itaguaí, Seropédica, Queimados, Japeri, Paracambi, Engenheiro Paulo de Frontin, em sua totalidade e Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Miguel Pereira, Vassouras, Piraí, Rio Claro, Mangaratiba, Mendes e Barra do Piraí apenas parcialmente.
A administração dos recursos hídricos por bacias hidrográficas é uma determinação da Lei n° 9.433/1997 (Política Nacional de Recursos Hídricos), e a ideia do ponto de vista da gestão faz sentido. Entretanto, não se deve esquecer que o modelo por nós adotado tem origem no modelo francês de gestão hídrica; ocorre que a França é um Estado unitário, o que significa dizer que o poder político e administrativo está centralizado no Estado nacional que delega autoridade para os entes locais.
Logo, ainda que existentes, os conflitos administrativos são mais facilmente solucionados. No caso brasileiro, o modelo é federativo, ou seja, existe a União Federal com competências próprias assim como os entes federados (a) Estados e (b) Municípios[5] que, igualmente, possuem competências próprias. A gestão do uso do solo, por exemplo, é uma competência típica dos Municípios, não parecendo politicamente realista que prefeitos e governadores outorguem aos comitês de bacia hidrográficas atribuições que lhes são deferidas pela própria Constituição. A crise hídrica passada pela Região sudeste[6] em 2013/2014 demonstrou que os Comitês foram incapazes de solucioná-la, tendo a matéria sido levada ao Supremo Tribunal Federal que acabou gerindo o conflito inter-federativo. “Os governadores de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB); do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB); e de Minas Gerais, Alberto Pinto Coelho (PP), fecharam um acordo nesta quinta-feira (27) no Supremo Tribunal Federal (STF) para dar início a obras de infraestrutura a fim de reduzir os efeitos da crise hídrica que atinge atualmente a Região Sudeste.”[7]
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Não é difícil perceber que a qualidade das águas depende, fundamentalmente, de três fatores: (1) ocupação e uso do solo, (2) saneamento básico e (3) investimentos. Valendo lembrar que há uma relação inversamente proporcional entre os fatores (1) + (2) e o fator (3). Assim, quanto melhor for a ocupação e uso do solo e o saneamento, menores serão as necessidades de investimento para o tratamento da água. Esta é exatamente a situação que estamos vivendo no momento.
Segundo informações da imprensa, a água que tem chegado às casas dos clientes da CEDAE apresenta mau cheiro e, muitas vezes, terra. A empresa, em nota de esclarecimento, informa que as alterações na água se devem a presença da Geosmina, que é “uma substância orgânica produzida por algas e que não representa nenhum risco à saúde dos consumidores. Desta forma, a água fornecida pode ser consumida pela população”.[8]
As algas, na medida certa, são importantes no ambiente aquático, sendo responsáveis pela produção de grande parte do oxigênio dissolvido do meio; todavia, quando presentes em grandes quantidades, como resultado do excesso de nutrientes (eutrofização), trazem alguns inconvenientes: sabor e odor; toxidez, turbidez e cor; formação de massas de matéria orgânica que, ao serem decompostas, provocam a redução do oxigênio dissolvido; corrosão; interferência nos processos de tratamento da água: aspecto estético desagradável[9]. O lançamento de esgoto, não tratado, nos corpos hídricos é um indutor do aumento do número de algas, gerando os problemas que estamos analisando.
A Gesomina, ofereça ou não risco para a saúde humana, se transformou em um problema político. Como aliás, costumam ser os problemas gerados pela poluição. Aqui vale o ditado: “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Estamos acostumados a raciocinar sobre a água considerando que ela é uma fórmula simples: H2O. Contudo, tal fórmula é quase que inexistente, pois outras substâncias (parâmetros) podem legalmente estar presentes nas águas, sem que isto implique em proibição de potabilidade.
As águas podem ter diversos usos e, portanto, os padrões de qualidade são definidos em função dos usos que se pretenda. Assim, para cada uso é admitido um limite máximo de impureza. As águas (1) potáveis ostentam padrões de qualidade diferentes daqueles exigidos para as águas (2) destinadas à recreação de contato primário (balneabilidade), por sua vez, as águas voltadas para (3) a irrigação ou uso industrial são regidas por outros padrões. Com vistas a tornar as coisas mais simples, são estabelecidas classificações para os diferentes cursos d’água, conforme os limites fixados para os parâmetros permissíveis.
Os parâmetros físicos são: (1) Temperatura, (2) Sabor e odor, (3) Cor, (4) Turbidez, (5) Sólidos, (a) em suspensão, (i) sedimentáveis, (ii) não sedimentáveis e (iii) dissolvidos e (6) Condutividade Elétrica.
Os parâmetros químicos são: (1) pH (potencial hidrogeniônico), (2) Alcalinidade, (3) Dureza, (4) Cloretos, (5) Ferro e manganês, (6) Nitrogênio (7) Fósforo, (8) Fluoretos, (9) Oxignio Dissolvido (OD), (10) Matéria Orgânica, (11) Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), (12) Demanda Química de Oxigênio (DQO). (11) Componentes Inorgânicos e (12) Componentes orgânicos.
Os parâmetros biológicos são: (1) Coliformes e (2) Algas.
Vários dos parâmetros acima não são permitidos nas águas potáveis, como é o caso dos coliformes.
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Os rios são tão importantes no contexto do estado do Rio de Janeiro que os seus naturais são conhecidos como fluminenses, palavra que tem origem no latim flumine (rio) acrescida do sufixo ense (natural). Por sua vez, o gentílico carioca que em Tupi significa casa de branco é também um rio que corre na cidade do Rio de Janeiro (Cosme Velho e Laranjeiras) e deságua na Praia do Flamengo. O seu nome deriva do fato que em 1503 foi construída uma casa na foz do rio onde os portugueses habitavam[10]. O rio foi desviado e canalizado nos séculos XVII e XVIII no período em que se construía o Aqueduto da Carioca (término em 1750) que abastecia fontes e chafarizes da Cidade. Em 1905, devido a intervenções urbanísticas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, o rio Carioca foi canalizado e, desde então, está sob a rua das Laranjeiras. Pereira Passos promoveu reformas tão radicais na cidade que o “furor das picaretas regeneradoras” – para usar a expressão de Olavo Bilac – recebeu da população o apelido de “Bota-Abaixo”.[11]
As questões relacionadas aos recursos hídricos são das mais relevantes e, infelizmente, ainda não lograram obter a atenção necessária por parte de nossas autoridades. E, cada vez com maior frequência, os problemas hídricos se agravam. Por fim, cabe observar que se perguntarmos a um cidadão:
– Qual a quantidade de Gesomina que você admite na água que bebe?
A resposta será, provavelmente: Zero.
[1] Disponível em: < https://www.cedae.com.br/relatoriosguandu > Acesso em: 23/01/2020
[2] A organização Não Governamental – WWF lançou uma ferramenta destinada a medir os riscs hídricos. Disponível em: < https://www.juntospelaagua.com.br/2017/12/12/wwf-ferramenta-de-risco-hidrico/ > Acesso em: 23/01/2020.
[3] Disponível em: < https://www.ana.gov.br/sala-de-situacao/paraiba-do-sul/paraiba-do-sul-saiba-mais > Acesso em: 21/01/2020.
[4] Disponível em: < https://www.ceivap.org.br/apresentacao.php > Acesso em: 23/01/2020.
[5] O Distrito Federal, membro da Federação, possui um somatório das competências estaduais e municipais.
[6] Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/15977/VIVIANE%20KLOSS%20-%20DISSERTAC%CC%A7A%CC%83O.pdf?sequence=1&isAllowed=y > Acesso em: 23/01/2020
[7] Disponível em: < http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/11/sp-rj-e-mg-fecham-acordo-no-stf-para-iniciar-obras-contra-crise-hidrica.html > Acesso em: 23/01/2020
[8]Disponível em: < https://www.cedae.com.br/Noticias/detalhe/nota-de-esclarecimento/id/433> acesso em: 23/01/2020
[9] Disponível em: < https://www.tratamentodeagua.com.br/artigo/qualidade-da-agua/ > Acesso em: 23/01/2020
[10] Disponível em: < https://diariodorio.com/historia-do-rio-carioca-2/ > Acesso em: 24/01/2020
[11] Disponível em: < http://oswaldocruz.fiocruz.br/index.php/biografia/trajetoria-cientifica/na-diretoria-geral-de-saude-publica/reforma-pereira-passos > Acesso em: 24/01/2020
*Paulo de Bessa Antunes – Mestre e Doutor em Direito. Líder de Pesquisa Acadêmica cadastrada no CNPq. Visiting Scholar de Lewis and Clark College, Portland, Oregon. Professor adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Procurador regional da República (aposentado). Foi Presidente da Comissão Permanente de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ex-chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. Sócio da prática de Direito Ambiental do Tauil & Chequer Advogados, advogado e parecerista em Direito Ambiental. Autor de diversos livros e artigos sobre Direito Ambiental.
Fonte: http://genjuridico.com.br/2020/01/24/crise-da-agua-rio-de-janeiro/?fbclid=IwAR31hiUs5K7NS5hHFQtb0CSPOYjI74FCt60LQZkOQ7jT5p5CW5csI6-shRM