Por Marco Aurélio Arrais
Tinha onze anos de idade em 1959 . Como estava em férias da escola, a chácara de minha avó era minha segunda casa. Lá era uma maravilha. Frutas à vontade, num pomar enorme e variado com muita goiaba, laranja, cajá-manga, abacate, abacaxi, maracujá, tamarindo, coquinho de guariroba e coquinho catarro, caju, ingá, diversas qualidades de manga, e um pequeno canavial.
No cerrado ainda vazio de construções, era uma farra de gabiroba, cagaita, jatobá, além de outras frutas existentes nas matas do Rio Meia Ponte, onde ia somente acompanhado de meu pai, pois havia muitos animais selvagens, como caititu, cutia, paca, capivara, veado campeiro, macacos-prego, micos, bugios e, no rio, uma enorme quantidade de jacarés, que ficavam tomando sol sobre os barrancos e em algumas pequenas praias de uma areia grossa e escura.
Das árvores enormes pendiam cipós, que nos serviam de balanço, e nos ajudavam a escalar árvores, numa altura danada. A meninada, naquele tempo era ágil, curtida de sol, e não se importava com tombos, arranhões e esfolamentos causados por quedas no cascalho grosso.
Quando dávamos uma topada em uma pedra com o dedão do pé – já que estávamos sempre descalços – a ponta do dito dedão era arrancado, ficando uma ferida em carne viva. Para parar o sangramento, o melhor remédio era urinar na terra, fazer uma bola de lama e colocar sobre a ferida. Parava de sangrar na hora. Na hora do banho, com uma bucha de palha de milho desfiada e com sabão de bola, a ferida era bem esfregada até ficar limpinha da terra, e depois de lavada com iodo, uma tira de pano era enrolada em volta do dedo, bem apertada.
Tinha um amigo, o Bié, filho de seu Zé Carpinteiro, parceiro em tramas e mal feitos, comparsa no extermínio de passarinhos, lagartixas e até de uma ou outra jararaca que cruzasse nosso caminho, além de espantar urubus ocupados na limpeza das muitas carniças de cavalos e cachorros, que o povo largava lá pelos meios do mato.
Um dia, num domingo, encontramos uma égua, de propriedade de um carroceiro morador nas redondezas. Todo sábado depois do almoço, o animal era solto, com as patas dianteiras peadas, para pastar no fim de semana. Resolvemos que iríamos furtar a égua para passear. Nos dois fins de semana seguintes, cometemos o delito, e soltávamos o bicho em outro local. Claro que, na segunda-feira, o carroceiro perdia a metade do dia campeando o animal, não podendo trabalhar. Mas alguém nos viu praticando o delito, contou para minha avó, que contou para o meu pai. Ele foi buscar a mim e a meu irmão mais novo, Gersinho – que por azar, esse dia me acompanhava nos matos onde estávamos a caçar passarinho e nos tangeu para casa, tocados por doloridas lambadas nas costas, dadas com um corrião de couro curtido, dobrado ao meio. Êle montado na sua bicicleta, nós dois a pé, adiante dele, apanhando pela rua, à vista de todos. Percorremos uma distância de mais ou menos uns mil metros, apanhando sem chorar, como era o regulamento da época. Meus dias de ladrão de cavalo foram encerrados debaixo de muita taca e muita vergonha. Depois do banho, salmoura nas nossas costas, além de todos na família bradarem muito com os dois safados, que ficaram umas duas semanas sem sair de casa, de enxada na mão, fazendo um aceiro junto à cerca da propriedade, numa extensão enorme, o que nos custou muitas bolhas nas palmas das mãos.
De outra feita, o Bié veio com uma história sobre um feitiço. Devíamos matar um anu-preto, numa sexta-feira, torrar o coração dele, até virar carvão. Depois, rezar o Creio em Deus Pai sete vezes. Após várias sextas-feiras em campo, conseguimos matar o pássaro.
O pó do coração, jogado sobre uma menina, faria com que ela se apaixonasse. Tinha lá uma vizinha do Bié, uma menina bonitinha, da minha idade. Sempre bem vestidinha, com fita no cabelo, por quem eu suspirava. Com o coração aos pulos, tendo nas mãos uma caixa de fósforo contendo minha parte do coração pulverizado, aproximei-me por trás dela, que trajava um vestido branco. Já érea de tardezinha, ela já havia tomado banho, e estava toda vaidosa junto com as amiguinhas. Quando joguei uma pitada do pó sobre ela, assustou-se, e levou a mão, esfregando a manga esquerda do vestido, onde o pó havia caído. Ela deu um grito de raiva, ao ver a mancha escura que se formara sobre o tecido. Olhou sua mão, e estava suja também. O pior, é que ela pensou que eu, um moleque vadio, safado e porco, na sua avaliação, havia jogado nela cocô de cachorro. Abriu a boca num choro danado, me xingando e rogando praga. O encantamento não fez qualquer efeito em meu favor. Pelo contrário, passou a odiar-me, e eu aprendi que não se arranja namorada através de feitiços e encantamentos. Pensando bem, isso deve servir para terminar namoro.
Parte da chácara de minha avó consistia de um pequeno pasto, que ela alugava eventualmente. Como a chácara ficava às margens do córrego Botafogo, não havia sequer uma pinguela para atravessar. Num trecho, o córrego estreitava, ficando com pouco mais de um metro na largura. Ali foi colocada, bem no meio do córrego, uma pedra chata e lisa, com sua parte superior acima da lâmina da água, onde as pessoas pisavam para atravessar, num pulo bem medido. Os moradores do outro lado do córrego, então denominado Cascalho, forçosamente tinham que atravessar esse pequeno pasto, como passagem para chegar à casa.
Tínhamos uma rivalidade com a molecada do Cascalho, e vivíamos em constante estado de beligerância. Um dia, quando estávamos tomando banho numa bica, instalada em uma nascente, num barranco nos fundos da chácara, a molecada inimiga nos botou para correr, sob uma chuva de pedras atiradas com estilingues. Seus parentes mais velhos riam e assoviavam, mangando de nós.
No sábado seguinte, de noitinha, preparamos nossa vingança, só que contra os pais, tios e outros adultos parentes do inimigo. Sábado era o dia dos adultos passearem na vila, fazerem as visitas e visitarem as namoradas. A cerca de arame, por onde passavam à noite, era por eles enrolada, facilitando a passagem e evitando de rasgar a roupa. Lá pelas nove da noite, munidos com uma lata de bosta e um pincel velho, desembaraçamos o arame e, com cuidado, todos quatro fios da cerca foram caprichosamente besuntados de merda. Quem passasse por ali, forçosamente teria que pegar nos arames, para embaraça-los, facilitando assim a passagem. A tal pedra, no meio do córrego, na dita travessia, também foi totalmente embostada na sua parte superior, onde despejamos todo o conteúdo da lata, deixando-a escorregadia. Preparadas as armadilhas, fomos para casa, aguardando com ansiedade a manhã seguinte.
Bem cedinho, fomos verificar o resultado. Os fios de arame estavam mais ou menos limpos. Toda a porcaria fora transferida das muitas mãos para os mourões da cerca, ou para as moitas de capim. A pedra, no meio do córrego, apresentava o sinal de inúmeros escorregões e prováveis quedas na água. A batalha fora vencida, e o fato tornou-se motivo de gozação, com toda a vila comentando o ocorrido.
Os serviços mais pesados na chácara, como capina e roçagem eram feitos por trabalhadores contratados por temporada. Quando tinha uns treze anos, veio a curiosidade e o interesse pelos assuntos relativos a sexo. Vivia escondido em meio às moitas de capim, à beira do córrego, para ver as meninas da vizinhança tomarem banho de bica nas nascentes.
Aos sábados minha avó fazia o pagamento dos trabalhadores, e estes, à noitinha, dirigiam-se aos bares da Nova Vila, para tomarem uma cachacinha e se ajeitarem com as prostitutas que faziam ponto por ali. Na segunda-feira, eu ficava por perto deles, tentando ouvir os pormenores de suas proezas sexuais, ardendo de curiosidade. Mas era colocado para correr, pois naquela época, isso não era assunto a ser tratado perto de crianças. Com treze anos, ainda éramos considerados crianças. E éramos mesmo!…
Certa feita, depois de ser enxotado várias vezes, um dos trabalhadores, já com o saco cheio, deu-me com o pé na bunda e fui obrigado a bater bem retirada. Arquitetei a vingança, mas não poderia deixar provas, senão seria castigado.
Dependurados nos arames da cerca, junto ao canavial, vários sabugos de milho, daqueles mais macios, eram utilizados pelos meus agressores para a higienização dos seus respectivos fiofós. Depois de alguns dias, quando se esqueceram do mal que haviam feito comigo, colhi na horta algumas pimentas malagueta e triturei-as dentro de uma lata de massa de tomate. Adicionei sal e água e coei esse caldo num pano. À noite, encoberto pela escuridão fui até à cerca, mergulhando na lata com a mistura, todos os sabugos que usariam na limpeza dos seus respectivos rabos, após a estrumação, dentro das moitas de cana.
Na manhã seguinte, acordei bem mais cedo que de costume. Sem que ninguém me pedisse, fui buscar lenha para ferver água; peguei a vassoura e varri a cozinha e o terreiro, para o encantamento de minha avó, que dizia ser eu um menino muito bom, prestimoso e obediente. Pediu à mãe Nega, que foi minha segunda mãe, para que fizesse biscoito de polvilho frito, para agradar aquele neto tão bonzinho.
Chamou então os três empregados para tomarem café, após o que foram trabalhar. De longe, eu vigiava, atento. Num dado momento um deles, exatamente o que havia me chutado, passou a mão em dois sabugos e entrou no canavial. Esperei com ansiedade o desfecho. Foi nada não. Daí a pouco rompeu no rumo dos companheiros, coçando a bunda desesperadamente. Disse alguma coisa e dirigiu-se rumo à casa. Lá chegando, chamou minha avó, todo nervoso, gaguejando de raiva, sem jeito para começar a reclamação, pois o assunto era um tanto desrespeitoso para com uma senhora viúva. Conseguiu, por fim, desfiar a reclamação, acusando-me do atentado que havia atingido sua retaguarda, afirmando que eu havia passado pimenta nos sabugos de madrugada. Minha avó ficou brava, e retrucou que o menino havia se levantado ao mesmo tempo que ela, e desde cedo havia trabalhado muito, carregando vários baldes de água para a cozinha, além da lenha para preparar o café. Ainda havia varrido a cozinha e o terreiro, não saindo de perto dela nem por um minuto. Não aceitaria tal acusação ao seu neto, um menino muito bom, trabalhador, obediente e religioso, e que dormia no mesmo quarto que ela. Eu na verdade era tudo isso, além de encapetado, safado e sonso. A reclamação não fez efeito, pois eu jurei de pés juntos minha inocência. Minha vó me fez jurar EM NOME DE DEUS, que não era o responsável por aquela arrumação mais desrespeitosa. E eu jurei por todos os santos, e até por Jesus! Diante disso, não poderia haver qualquer dúvida. Juramento desse calibre era coisa séria, impossível de não refletir a mais pura verdade. A coisa tornou-se um mistério, ficando desconhecido o autor dessa malinesa. Nem para o Padre Vitalle confessei isso, na missa do domingo seguinte, pois a penitência por mentir em nome de Deus, de Jesus e dos santos seria das mais graúdas, além dele poder levar ao conhecimento dos céus tal informação, já que era um dos homens de confiança do Criador. Só minha mãe, com toda sua sabedoria e conhecimento, quando soube do ocorrido, sentenciou: “Deus, quando fez as pessoas, criou-as adultas. O capeta que inventou menino”. Concordo com ela.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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