Por Aline Melo – Do Diário do Grande ABC
David Uip é reitor da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC) e coordenador do Centro de Contingência do coronavírus em São Paulo. Um dos maiores infectologistas do Brasil, Uip tem auxiliado o governo estadual a tomar as decisões no combate à pandemia de Covid-19 e explica que o fato de já terem sido dadas diferentes previsões para uma possível data de pico da doença é um bom sinal. “O que estamos tentando fazer desde o início é achatar a curva e tornar o pico menos intenso. Seguramente, com as medidas de isolamento, nós diminuímos o número de infectados, de doentes e de mortes”, afirmou. O Estado já tem 14.267 casos e 1.015 mortes em decorrência da doença.
De que forma uma pandemia como essa que o País enfrenta afeta o ensino da medicina?
Afeta como todos os outros cursos, mas o que tem de diferente é que muitos alunos seguem tendo atividades ambulatoriais e hospitalares. É extremamente interessante e um ensinamento do qual jamais vão esquecer. Viver uma pandemia dessas é algo que marca para o resto da vida. Isso aconteceu comigo em 1973, 1974, quando enfrentamos a meningite. Quando surgiu a vacina, tudo melhorou. Acho que é um aprendizado incrível para esses estudantes.
Como a FMABC e a FUABC podem contribuir nesse momento?
Tivemos uma reunião no início da semana com os secretários de Saúde do Grande ABC e a presidência da UFABC justamente para isso. Nossa missão é ajudar. Esse encontro foi para esclarecer todos os prefeitos. Os laboratórios da faculdade estão ajudando na realização dos exames e nós, enquanto centro universitário, fundação, participamos ajudando nas decisões das políticas públicas dos municípios do Grande ABC. Essa é a missão do centro universitário, ajudar as prefeituras a qualquer momento, neste, então, mais ainda.
Como o senhor avalia a capacidade do sistema de saúde da região em dar respostas nesse momento?
Estamos bastante preocupados. São Bernardo está no limite. Tem um hospital pronto para aumentar os leitos de UTI para atendimento de Covid-19 e o que está estrangulando é a falta de respiradores. Existe uma disputa mundial pela compra de respiradores. Estamos tentando ajudar para que São Bernardo abra rapidamente. São Caetano tem posições já bem estabelecidas, acho que os municípios do Grande ABC vão estar muito pressionados por conta da doença, já estão, mas terão uma resposta competente, qualificada, porque têm medicina de bom nível.
A pandemia de Covid 19 é o maior desafio profissional que o senhor já enfrentou?
Tenho uma história longa. Começa com a doença meningocócica, depois a Aids. As pessoas talvez não lembrem, mas nós fizemos no meu consultório o primeiro diagnóstico de um paciente com Aids no Brasil, isso em 1982, e nós publicamos em 1983. Naquele momento não sabíamos que era vírus, não tínhamos como diagnosticar e não sabíamos as formas de transmissão. Os medicamentos, para valer, surgiram em 1996. O isolamento do vírus foi em 1983 e não temos vacina até hoje. Depois veio H1N1 (Influenza), febre amarela, dengue, zika e Chikungunya (doenças transmitidas pelo Aedes aegypti) e eu estava em posições diferentes. Diretor do (Instituto) Emílio Ribas uma época, secretário de Estado (da Saúde) em outra, então tenho cicatrizes nessa história toda. Fiquei com uma casca grossa, dura, tanto que fiquei doente e consegui superar.
O senhor conhece o novo ministro da Saúde? Espera mudanças nas orientações sobre o combate à pandemia?
Não o conheço. Desejo muita sorte e que a equipe seja iluminada. O que eu sei, o que vi pelas entrevistas, é que ele tem um ótimo currículo, então, tomara que dê certo.
Por que tem havido mudança nas datas inicialmente previstas para o pico da doença?
Isso é uma boa notícia. O que estamos tentando fazer desde o início é achatar a curva e tornar o pico menos intenso. Ninguém está mentindo, estamos atuando com transparência e efetividade. Seguramente, com as medidas de isolamento, nós diminuímos muito o número de infectados, de doentes e de mortes. Então, o fato de você alargar, tentar não ter um pico agudo muito alto, é tudo o que a gente deseja. Não é que a previsão foi errada, a missão é que foi conseguida, ao menos em partes, graças à população, à imprensa, que soube informar. Tem que ser visto como uma boa notícia.
O Brasil e o Estado de São Paulo não estão fazendo testes em massa. Isso prejudica na avaliação mais precisa do avanço da pandemia?
Temos que aumentar os testes, mas fazer em massa é difícil, com 210 milhões de pessoas. Tem coisas que são desejáveis, o ideal, mas são difíceis de fazer na prática. Temos inquérito epidemiológico, vigilância, controle das infecções por outros vírus, mas não dá para imaginar que vamos fazer como a Coreia, que fez testes por amostragem. Aqui, precisaríamos de mais de 2 milhões de testes e teríamos dois problemas: insumos e capacidade de resposta dos laboratórios.
Qual estimativa de tempo o senhor faz para que a Covid-19 seja controlada?
Não dá para saber. Não será nada imediato. Vamos ter aí os meses de abril e maio complexos e vamos ver como as coisas se encaminham.
Qual a maior lição que ficará dessa pandemia?
Primeiro que, claramente, o mundo não estava preparado. Segundo, essa falta de insumos, de respiradores, isso vai ter que ser rediscutido. Talvez a produção esteja muito concentrada em poucos países que na hora a resposta foi a possível. A outra lição é que o Sistema Único de Saúde do Brasil vai e já está fazendo a diferença. Um sistema muito interessante, muitas vezes mal financiado, mal entendido, mas capilarizado. Sou um defensor do SUS, fui gestor do SUS por anos e entendo que o SUS faz total diferença nessa hora.
A experiência do Brasil, de ter um Sistema Único de Saúde, pode ser exemplo para outros países no enfrentamento de pandemias?
Acho que sim. A gente está vendo países ricos sofrendo muito. Países de primeiro mundo sofrendo. O SUS é um exemplo para o mundo inteiro.
O senhor tem ideia de como se contaminou com a Covid-19?
É muito pouco provável que tenha sido com pacientes. A clínica está protegida há muito tempo, estávamos atendendo com máscaras, avental, luvas. Tenho um contato social enorme, inclusive de entrevistas, era pouco provável que não me contaminasse. Suspeito de uma pessoa com quem tive uma reunião profissional e cerca de três semanas depois ela veio à clínica como paciente, e no nosso primeiro encontro, uma reunião de trabalho, nem essa pessoa nem eu estávamos de máscara. Pode ter sido isso.
O senhor é um dos principais infectologistas do País. No seu caso particular, chegou a dar opinião sobre o tratamento a ser desenvolvido?
Sem hipótese. Me submeto, já passei por outras situações, tenho três stents (pequena prótese colocada no interior de uma artéria para evitar a obstrução dos vasos sanguíneos), nunca interferi.
O que lhe incomodou mais, os efeitos da doença ou as insinuações feitas pelo presidente da República sobre o medicamento usado no tratamento?
Não quero discutir o presidente da República (Jair Bolsonaro), acho isso uma coisa totalmente ultrapassada. As redes sociais foram muito cruéis. Comigo é uma coisa, mas quando envolve crueldade com irmãos, mulher, filhos e netos, não tem o menor sentido. Não tenho nenhuma responsabilidade nisso. E da minha parte, não tenho cargo, não tenho salário, fui convidado para coordenar esse grupo importantíssimo que está ajudando muito ao governo do Estado e ao Brasil e minha função é essa. Coordenação em um grupo que ajuda. Não dá para entender misturar uma coisa e outra.
O senhor realmente o processou como disse que faria?
Estou processando. Tem um boletim de ocorrência, dado o vazamento da receita (foi publicada na internet, no dia 8 de abril, uma receita da clínica de Uip e em seu nome, com prescrição de cloroquina, medicamento que tem sido testado no combate à Covid-19 e que tem o presidente Jair Bolsonaro como grande entusiasta de seu uso, apesar de ainda não haver indicação definitiva da sua eficácia), existe uma investigação sendo conduzida pelo Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) e aguardo as conclusões.
Sente-se frustrado por tentar conscientizar as pessoas sobre o perigo da doença, a necessidade de isolamento e ver que muitos ignoram ou fazem chacota?
Não é nada novo. Há muitos anos falo de prevenção, por exemplo, de doenças sexualmente transmissíveis e é frustrante ver que os casos continuam aumentando. Mas também é um aprendizado. Talvez a linguagem não seja adequada, o veículo não seja adequado, mas é frustrante sim. Informar, informar, e você ver que a informação não é seguida. Sobre a atual pandemia, quem não acreditar também não vai acreditar no que acontece nos outros países do mundo. É só olhar o que aconteceu na China, na Turquia, na Itália, Estados Unidos, França. É só querer olhar.
Que avaliação o senhor faz de todas as medidas que têm sido tomadas até agora e da adesão da população ao isolamento físico proposto pelo Estado?
O governador, como sempre faz, acatou as decisões do comitê, que são sugestões absolutamente científicas. Acho que 50% não é um índice ruim. Tem cidades no Grande ABC com adesão superior a 60%. Temos que entender, principalmente, que o Estado de São Paulo não está fechado, tem atividades em funcionamento, as essenciais, e dentro desse contexto 50% é bem razoável. Lógico, poderíamos ter mais, 60%, 70%, mas entendo que a população está respondendo de uma forma adequada. As medidas são efetivas, eficientes e o tempo vai dizer se são suficientes.
RAIO X
Nome: David Everson Uip
Estado civil: Casado
Idade: 68 anos
Local de nascimento: nasceu e mora em São Paulo
Formação: Médico infectologista
Hobby: Esportes
Local predileto: Guarujá, São Paulo
Livro que recomenda: Atualmente só leio artigos científicos
Artista que marcou sua vida: Fábio Jr, de quem sou padrinho de casamento
Profissão: Médico
Onde trabalha: Coordenador do Centro de Contingência do coronavírus no Estado de São Paulo e reitor da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC)
Fonte: Diário do Grande ABC
Publicação Ambiente Legal, 20/04/2020
Edição: Ana A. Alencar