O maior sucesso da banda U2 é também um impressionante diálogo com Jesus, para além do tema romântico
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
O U2 e o Album “The Joshua Tree”
No século XIX, um grupo de Mórmons atravessou o Rio Colorado em direção ao Mojave, pelo Vale da Morte – território inóspito, leito seco de um extenso lago que evaporou na pré-história, resultando numa acidentada depressão a 86 metros abaixo do nível do mar, com montanhas que chegam a 3.600 metros. Ali, os missionários se encantaram com as árvores que se destacavam no deserto, dando-lhes o nome de Josué – o grande líder bíblico que conduziu o povo hebreu no deserto, em direção à Terra Prometida, após a morte de Moisés.
Um século depois, a mesma paisagem inóspita do Vale da Morte, com um exemplar da Árvore de Josué, formou a icônica série de fotos que ilustraram o álbum mais importante da carreira do U2 – conjunto responsável por uma composição, With or Without You, parte integrante dos meus momentos bons e tristes – e de milhões de outros amantes da música contemporânea. Uma composição musical cuja letra nos convida a uma viagem interior, nos remete a impressões, reminiscências e sensações tão profundas quanto abstratas, de juventude e maturidade.
Nos anos 1980, o U2 quis “mergulhar fundo na América mítica e real”. Seus componentes chegaram a bolar para o grande album dois títulos provisórios: “The Two Americas” e “The Desert Songs”.
O título “Desert Songs” foi o mote para que o fantástico fotógrafo Anton Corbijn e o designer Steve Averill saíssem à procura de desertos americanos para desenvolver a arte gráfica do album. Daí surgiram as fotos icônicas da Árvore de Josué, no Deserto de Mojave inspirando o título “The Joshua Tree”, definitivo para o album, que hospeda os acordes de With Or Without You.
With or Without You (Com ou sem você), portanto, está inserida nesse “mergulho mítico e real”. De forma alguma trata de um romance unidimensional.
Compreendendo U2 e Bono Vox
With or Without You não é qualquer obra musical. Aliás, o U2 não é um conjunto qualquer – Reflete a mais viva melancolia de um povo destacado por sua forte personalidade e verve republicana – antagonista à monarquia britânica. Ao contrário dos frios britânicos, os irlandeses possuem sentidos à flor da pele. Talvez por isso haja tamanha identidade dos sentimentos e aspirações do U2 com os povos “de sangue quente”, mundo afora.
Para compreender With or Without You, é preciso compreender Bono Vox, o líder do grupo.
O grupo foi formado a partir de um anúncio pregado em um mural de escola pelo baterista Larry Mullen Jr.; Bono Vox leu e atendeu ao anúncio. Ele ganhou esse apelido por sua voz pequena e meio desafinada. “Bona Vox” era uma loja de equipamentos auditivos de Dublin – e o apelido acabou assumido positivamente pelo “alvo” do bullying dos amigos. Bono não era um músico brilhante, não tocava bem guitarra e não se destacava no piano. Porém, era e é um letrista de primeira linha.
Sua família foi “pacificada” pelo amor: pai protestante e mãe católica, decidiram que o primeiro filho seria protestante e o segundo católico… e assim seguiriam ecumenicamente batizando.
Bono foi marcado pela guerra civil na vizinha Irlanda do Norte – cujo trágico “domingo sangrento” tratou de relatar em um dos primeiros sucessos da banda, e pela morte prematura da mãe, de aneurisma, quando ele ainda tinha 14 anos. Essa “sensação de perda” é transmitida pelo U2 na dimensão religiosa, maternal e política – e integra várias passagens nas letras do grupo.
O furacão musical não contaminou a calmaria no campo amoroso – Bono casou aos vinte anos com quem namorava desde os quinze, e assim permanece casado. É um impressionante exemplo de estabilidade em um meio nitidamente marcado pela instabilidade nas relações conjugais.
Compreendendo With or Without You
A composição – música e letra – percorre com impressionante competência e simultaneamente, os planos espiritual e sentimental – o amor cristão, a paixão pelo outro e a relação destes com a vida.
A vida, na letra, é uma terceira pessoa. A letra firma um gênero feminino – a vida é “ela” (she). Importante observar que a narrativa, em primeira pessoa, faz interlocução com uma segunda pessoa: “você” (you).
Mas… e quem é “você”, em “com ou sem você”?
A resposta ocorre em dois planos.
No plano espiritual, você é Jesus. O diálogo exprimido pela letra é uma oração. Revela a grande verve religiosa incrustrada em Bono e em todo o grupo. No plano terreno, por sua vez, “você” dirige-se a quem se ama e não se quer perder, ainda que a perda seja inevitável.
A simultaneidade dos planos, de toda forma nos enleva e eleva.
Deus está nos detalhes da letra, no ritmo compassado da música ( o baixo e a bateria nos faz sentir como se estivéssemos em um trem, olhando a paisagem que passa pela janela) e na harmonia tonal recheada de traços sonoros emitidos pela guitarra (reforçando um tom de lembrança, de algo que está no passado, mas insiste em permanecer presente).
Dissecando With or Without You
Me acompanhe nesta dissecação anatômica da letra de Bono:
“See the stone set in your eyes ” –
Pode ser a frieza sentida no olhar do ser amado ou – literalmente, a “pedra” removida da porta do sepulcro por Jesus ressuscitado.
“See the thorn twist in your side” –
Literalmente “vejo os espinhos retorcidos ao seu lado”, remete ao sofrimento sentido pelo ser amado. No entanto, é explícito quando remete à coroa de espinhos suportada pelo filho de Deus.
“I wait for you” –
É a eterna espera. Eu espero por você – nos dois planos. Persistência é amor, espera é fé.
“Sleight of hand and twist of fate” –
O ilusionismo do truque de mãos do mágico, do prestidigitador e a reviravolta do destino, resumem todo o embate de Jesus com os fariseus e seu périplo na conquista da confiança e da fé do seu povo, demonstrando que os milagres não eram “truques”, sofrendo com as mudanças de rumo na sua vida de peregrinação – até o destino por ele sabido em Jerusalém. Também refletem a parábola dos amantes enamorados.
“On a bed of nails she makes me wait” –
Importante notar a mudança de pessoa aposta na narrativa, da segunda para a terceira pessoa. Talvez porque não seja de fato “ela” – a pessoa amada e, sim, “ela”, a vida. A vida fez o narrador aguardar em uma cama de pregos. Ou seja, a espera é um sacrifício, um sofrimento.
O pronome feminino, “she”, sempre foi a chave para a dubiedade proposital contida na letra – remete à figura feminina, subentendendo a mulher amada, mas também confere gênero à vida, que maternalmente nos envolve.
“And I wait… without you” –
E eu espero…sem você. O verso revela a fé, a determinação de quem ama.
“With or without you” –
Com ou sem você… O dilema inconclusivo do amor e da fé. “Não consigo viver, com ou sem você” – é de uma profundidade que trespassa as duas dimensões aqui enfrentadas, cavando fundo em nossa alma.
“Through the storm we reach the shore” –
Atravessando a tempestade, chegamos na costa da praia. Foi assim que, na passagem bíblica, Jesus caminhou sobre as águas, guiando os apóstolos amedrontados no barco durante a tempestade. Da mesma forma, a relação amorosa também coleciona tempestades no caminho.
“You give it all but I want more. And I’m waiting for you” –
Você deu tudo de si, mas eu quero mais! Queremos todos, sempre mais de quem amamos. E como sempre, a espera do amor que virá. Também queremos mais, o tempo todo, a cada vez que rezamos, de quem nos deu tudo de si… e D’Ele ainda sempre esperamos mais.
“And you give yourself away” –
Você se entrega, se doa. Termo usado para designar que se fez por caridade, para entregar a vida ao destino ou porque se resignou. O termo é usado na música de forma alternada – se entrega e, depois, se resigna.
“My hands are tied. My body bruised – she’s got me with nothing to win and nothing left to lose” –
Minhas mãos estão atadas. Meu corpo dolorido – ela me deixou com nada para ganhar e nada mais a perder. O momento da impotência ante a revelação do que já estava decidido pela vida – ou por ela, a amada ( improvável, pois a letra é um diálogo em primeira e segunda pessoa).
O sentido da obra With or Whitout You é existencial
Kierkegaard, precursor do existencialismo, quando escreveu sobre o desespero humano, afirmou que nossa angústia se origina da imaginação de se criar uma relação fantasiosa consigo mesmo, idealizando um sentido para a existência que nunca se cumpre. A angústia existencial está no Genesis bíblico, quando o homem é criado á imagem e semelhança do Divino… mas no entanto é falível, jamais será ele.
Essa angústia está completamente inserida em With or Whitout You – a angústia existencial do amor, da separação, da persistência, da eterna espera, do sofrimento, da fé, da revelação e da revolta ante a necessidade da resignação.
Por isso a obra nos toca tão profundamente. E, como costuma complementar Bono Vox ao cantar a música, “ainda amo você” (love you till and so far again).
Sempre vale a pena assistir a performance de U2 e ouvir a música. Bom entretenimento.
Clique na imagem abaixo ou aqui para assistir ao vídeo da música:
Nota:
Em uma apresentação exclusiva no icônico Abbey Road Studios em Londres, Adam, Bono, Edge e Larry tocam o clássico With Or Without You acompanhado por uma orquestra para o U2 At The BBC – um programa especial para a BBC One.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 31/01/2021
Edição: Ana A. Alencar
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