Conferência proferida na APAMAGIS – Associação Paulista dos Magistrados, em evento organizado pelo GAJ- Grupo de Apoio à Justiça, no dia 12 de fevereiro de 2019
Pinheiro Pedro analisa a tragédia ambiental com a Barragem de Brumadinho para os Desembargadores na APAMAGIS
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Bom dia!
Preliminarmente, quero agradecer o honroso convite do Grupo de Apoio à Justiça – GAJ, formado pelos bravos Desembargadores e Juízes de Direito paulistas aposentados, que permanecem voluntariamente ativos e úteis à causa da sociedade, dedicando-se, com a aprovação do E. Tribunal de Justiça, a cooperar com os serviços do Poder Judiciário.
Honrado pelo convite do Desembargador Renzo Leonardi, para falar a uma plateia tão ilustre, composta exclusivamente de magistrados, vários deles ocupantes de Câmaras que lidam diariamente com questões afetas à matéria a ser tratada neste evento, peço vênia ao Digno Presidente para agradecer também ao amigo, companheiro de lutas pela implementação do Direito Ambiental, Desembargador Gilberto Passos de Freitas, pelo desafio ora proposto: extrair da lama do desastre ocorrido em Brumadinho, lições que possam servir à magistratura paulista.
Sabemos que nossa inteligência é medida pela capacidade de aprendermos com a experiência alheia, evitando cometer erros por experiência própria. Assim, aprendemos duplamente. Nesse sentido, analisando os fatos, poderemos evitar que a mesma somatória de equívocos e eventos ocorridos nos desastres ambientais de rompimento das barragens em Minas Gerais, possa vir a ocorrer em solo paulista.
Fundamental, nesse sentido, que a função da Justiça seja resgatada. Embora vivamos numa sociedade profundamente desigual, essa desigualdade não deveria reproduzir-se no tratamento político-jurídico dos cidadãos. No entanto, ela ocorre – e no caso ora tratado o raio da impunidade parece estar caindo duas vezes sobre o mesmo solo: o estado de Minas Gerais, afetado pela tragédia de Mariana e, agora, pelo desastre em Brumadinho.
Isso acontece justamente pela aura de impunidade que parece rondar o setor de extração mineral brasileiro, extensivo ao setor de petróleo e gás. Em verdade, nosso país parece tomado pelo vício dos royalties e compensações provindos desses setores, distribuídos para a União, estados e municípios, provocando narcose na Administração Pública, danos ambientais, morte e destruição – tal qual o narcotráfico.
É preciso, portanto, estabelecer algumas premissas, para então iniciar nossa análise do desastre, que ceifou vidas em Brumadinho.
Três premissas
A primeira premissa é sobre a funcionalidade social da mineração.
A mineração é feita pelo ser humano em prol da humanidade, não em prol da mineradora.
No caso brasileiro, a empresa de mineração não faz favor algum em extrair os minerais, beneficiá-los, gerar emprego, renda e compensar a federação pelos impactos decorrentes da atividade. Afinal, a extração mineral é concessão, a riqueza contida no subsolo pertence à União e é no interesse público e social que a atividade é realizada.
A segunda premissa é alocar o valor onde ele realmente vale. De fato, o grande patrimônio nacional não é a empresa Vale, como também não é a Petrobrás ou qualquer outra organização extrativista e processadora de recursos do subsolo, concebida por via estatal e privatizada às custas dos cofres públicos e fundos de pensão de funcionários de outras empresas estatais.
O grande patrimônio nacional é o recurso do subsolo a ser extraído, o cidadão brasileiro que dele se beneficia e o equilíbrio ambiental sobre o qual se assenta o desenvolvimento sustentável do país.
Assim, é inconcebível que empresas dedicadas a extração de recursos do subsolo, coloquem os custos e o lucro à frente da segurança do ser humano e do meio ambiente – pois estes elementos são indissociáveis de suas atividades. É também inconcebível que o Estado não tenha orçamento, pessoal e capacidade técnica para enquadrar e punir os maus mineradores, e implementar leis que, ao fim e ao cabo, não são cumpridas.
O Princípio 16 da Declaração da ONU Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, denominado “poluidor-pagador”, já determina que aquele que contamina deve arcar com os custos da contaminação, internalizando-os na sua atividade. Este princípio encontra-se inserido no ordenamento constitucional brasileiro e direcionado à atividade de exploração mineral, no art. 225, §2º da nossa Carta.
Assim, a terceira premissa é sobre o ciclo completo da extração e beneficiamento minerário. A mineração começa na lavra e só terminará quando os trabalhos de recuperação da área degradada estiverem totalmente finalizados, conforme um plano de reabilitação aprovado, algo intrínseco à licença da atividade.
A desarticulação institucional
Não faltam normas para prevenir e reprimir infrações, bem como resolver conflitos e disfunções decorrentes da atividade minerária. O que ocorre é uma desarticulação crônica entre as instituições encarregadas de implementar as normas.
O recurso mineral é bem da União, conforme reza o art. 20, IX da Constituição, que também estabelece a forma de concessão para sua exploração (art. 176), e determina a recomposição do ambiente degradado pela atividade de extração (art. 225, §2º).
O regime de extração é estatuído pelo Código de Mineração, de 1967, emendado e remendado várias vezes, em especial pela lei 13.575 de 2017, que alterou o departamento encarregado de autorizar e monitorar a atividade, instituindo a Agência Nacional de Mineração – ANM, a Lei 8001 de 1990 que instituiu a Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEM e a Política Nacional de Segurança de Barragens, estabelecida na Lei 12.334 de 2010. Esse complexo de normas foi regulado recentemente pelo Decreto 9.406 de 2018.
O ambiente de tutela da atividade, portanto, é centralizado na esfera federal.
No entanto, o licenciamento e a fiscalização ambiental seguem descentralizados, a cargo dos estados federados, seguindo a regra geral determinada pelo art. 225 da Constituição Federal, a regra de competência da Lei Complementar 140 de 2012, as normas de licenciamento e responsabilidade civil da Política Nacional de Meio Ambiente – Lei 6.938 de 1981, a tutela penal e de fiscalização administrativa instituída na Lei 9.605 de 1998 e a Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos – 12.305 de 2010.
O regime assimétrico federativo submete o licenciamento e a fiscalização ambiental a idêntica assimetria. Isso distorce a aplicação das normas de segurança ambiental e fragiliza sobremaneira a tutela do meio.
Não seria exagero atribuir parte considerável do desastre de Brumadinho a esse descompasso. Soma-se a isso o sucateamento da estrutura de fiscalização minerária federal e a pesada pressão sofrida pelos organismos de proteção ambiental estaduais.
Ouso dizer que foi um somatório de falhas – e a espiral da arrogância, no campo público e na administração da empresa, que acarretaram o rompimento espetacular da barragem 1 da Vale em Brumadinho, no seu ponto mais baixo, atingindo duas outras barragens sem que nenhum alerta houvesse sido ativado ou disparado.
A enorme massa de detritos – 12 milhões de metros cúbicos, encobriu as edificações da empresa, absurdamente dispostas á jusante das barragens, matando centenas de funcionários, seguindo pelo vale do Córrego do Feijão até atingir o rio Paraopeba, tragando equipamentos, infraestrutura, edificações, plantações, vidas humanas, culturas, granjas e pastos, toda a fauna aquática, em uma extensão ainda a ser medida, danificando a flora nativa e o solo.
Compreendendo o descarte do resíduo minerário
Importante explicar o que é o sistema impactante de disposição dos rejeitos minerários da Cia. Vale, e que critérios há para alternar o sistema que ora ruiu.
Como toda atividade humana, a mineração produz resíduos. No caso da extração de minério de ferro, a destinação dos resíduos é fase decorrente do beneficiamento do material extraído, cujo descarte no meio ambiente deve seguir regime próprio, legalmente autorizado e tecnicamente consentâneo.
Os rejeitos produzidos pelo processo de beneficiamento são geralmente descartados de duas formas: líquida (polpas), sendo o seu transporte feito em tubulações através de bombas ou por gravidade; ou sólida (pasta ou granel), com o transporte feito por caminhões ou correias transportadoras.
O método menos custoso e tecnicamente favorável para a deposição dos rejeitos granulares é o de barragens por aterro hidráulico, sendo o próprio rejeito utilizado para a construção dos alteamentos.
Sabe-se, desde o início, que essa técnica de disposição embute a formação potencial de focos de liquefação por vibrações no terreno, ocasionados entre outros fatores pelo desmonte com explosivos próximo das barragens, alteamentos muito rápidos, etc. Esse fenômeno amplia o risco de ruptura, principalmente em função dos alteamentos, necessários à medida que a exploração minerária avança.
São empregados três métodos de alteamento para barragens, construídas com o próprio rejeito:
· Método de alteamento à montante
· Método de alteamento à jusante
· Método de alteamento da linha de centro
No alteamento à montante, o corpo da barragem é construído com o uso de rejeito através de alteamentos sucessivos sobre o anteriormente depositado. Os alteamentos são realizados no sentido contrário ao fluxo de água (montante).
A barragem necessita de rejeito grosso para que o maciço possa ser construído.
No alteamento a jusante, o maciço da barragem é construído em solo compactado, independente do tipo de rejeito depositado na mesma. Os alteamentos são realizados no sentido do fluxo de água (jusante)- um método considerado mais seguro, e também de construção mais custosa.
Já o sistema de disposição de linha de centro é similar ao método à montante. Os rejeitos são lançados a partir da crista do dique de partida. A construção segue de modo similar, com alteamentos com diques sucessivos, mas mantendo o eixo de simetria da barragem constante. Este é o método mais seguro para construção de barragens de rejeito.
Por óbvio que o alteamento à montante implica em menor custo e maior risco. No entanto, tem sido utilizado largamente com aprovação das autoridades.
O problema é que o sistema de barragens sempre ocupa o talvegue de um vale, conspurcando nascentes – pois a água é essencial à decantação do material. Sempre estará à montante de aglomerações urbanas, fazendas, etc.
Ao contrário de qualquer disposição de inertes, a estrutura de barramento dos rejeitos exigirá eterna atenção e monitoramento, pois o risco de rompimento será permanente e aumentará com o tempo, devido ao “piping”.
O “piping” constitui-se na erosão interna por remoção de partículas do interior do solo, formando “tubos” vazios que provocam colapsos e escorregamentos laterais do terreno. Tal fato proporciona uma maior porosidade, facilitando a movimentação da água subsuperficial. Quando essa percolação consegue um caminho, a velocidade do fluxo aumenta, erodindo o solo até ultrapassar a capacidade limite de suporte do maciço de terra, provocando colapso e ruína estrutural.
Foi o caso de Mariana e quase certo ter ocorrido em Brumadinho.
Assim, tal qual nosso corpo e nossa estrutura óssea, o tempo de vida das barragens de rejeitos -ativas ou não, é limitado, fazendo com que elas funcionem como uma espécie de bomba-relógio. Romperão se não forem desativadas, drenadas e desmontadas – ou seja, descomissionadas.
Descomissionamento é um complexo processo de encerramento definitivo, visando descaracterizar estruturalmente o barramento, sendo o maciço reincorporado ao relevo e ao meio ambiente.
A alternativa ao descarte por barramento é o descarte sólido do rejeito, chamado descarte a seco.
Mais caro, por exigir maquinário específico, incluso plantas de flotação, filtragem, espessamento, recuperação de água e transporte, é o sistema exigido como única alternativa admissível em vários países do mundo, de forma a evitar o risco óbvio das barragens.
Porém, somente após os desastres ocorridos nas duas últimas décadas em Minas Gerais, incluso a tragédia de Mariana, é que as grandes mineradoras brasileiras, em especial a Vale, passaram a “considerar” a alternativa.
Em Brumadinho, todavia, parece que o descomissionamento da Barragem havia mudado de rumo.
A barragem que se rompeu fora desativada em 2015, segundo a Vale. Porém, não mais estava nesse estado quando da tragédia.
A Vale havia obtido licença ambiental para ampliar a atividade de mineração á montante da barragem, bem como autorização para extrair dela o material fino ali depositado. Portanto, vários técnicos e funcionários encontravam-se em franca atividade no local, instalando equipamentos de medição e preparando a atividade de extração, quando ocorreu o rompimento.
Para todos nós, que lidamos com toda espécie de conflitos humanos envolvendo questões técnicas de toda ordem, a contextualização e o estudo das circunstâncias materiais da tragédia sobre a qual ora nos debruçamos, exige compreendermos os detalhes, para entender que desde o início a pirâmide da arrogância se fez presente, já no planejamento da atividade da mineração, desconsiderando o risco humano e ambiental em nome da redução de custos.
A pirâmide da arrogância
Raskólnikov é o personagem principal do grande romance “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski. Pobre e atormentado com sonhos de grandeza, Raskólnikov divide o mundo em pessoas que ele entende importarem à humanidade, e a gente ordinária, que ele julga sem qualquer importância. Amparado por essa justificativa moral, o arrogante personagem assassina uma velha agiota visando apropriar-se de seus pertences, e termina matando também a irmã da vítima, que aparece na cena do crime inadvertidamente.
Consumido pela culpa, no entanto, termina confessando o delito e encontrando a redenção na pena a ele aplicada.
No mar de gente arrogante e desprezível, até agora apresentado no desenrolar da tragédia de Brumadinho, e da lama sinistra do rejeito de minério, infelizmente não apareceu um único Raskólnikov arrependido.
O mundo real mostrou-se pior que o imaginado na ficção. De toda a tragédia, até agora remanesce um profundo sentimento de segregação entre “pessoas que importam” e “a gente ordinária”, que não importa nas análises de risco gerencial, nos investimentos corporativos ou nas decisões pela contenção de gastos que afetam a segurança de atividades poluentes.
A pirâmide da arrogância está no cerne do desastre ocorrido em Brumadinho. Ela superou a Síndrome de Raskólnikov, pois não deixa rastro de arrependimento.
Essa pirâmide está presente em quase todas as tragédias experimentadas nesse período de “transe nacional” e revela-se no desprezo pelos semelhantes, sejam funcionários engenhosamente alojados em edificações postadas na linha de inundação da barragem em Brumadinho, sejam crianças alojadas em contêineres precários, que incendiaram no clube de Regatas do Flamengo, no Rio – vítimas afogadas e incineradas pelo desprezo de direções que não hesitam em gastar milhões numa campanha publicitária ou na contratação de “craques”…
Importante, como operadores do direito que somos, atentarmos para o fenômeno da “pirâmide da arrogância” e suas sinergias. Ela contamina o ambiente corporativo, empresarial e público, estimula vaidades, desumaniza procedimentos, desfoca o respeito aos seres humanos e substitui valores morais por interesses corporativistas, ideológicos ou de lucro.
O caráter da pirâmide é marcado pelo egocentrismo corporativo. O egocentrismo provoca a substituição dos valores morais e causa entropia cultural. Nessa espiral, o vértice da pirâmide só lê e ouve o que quer ler e ouvir. A pirâmide desenvolve relações ou contrata apenas quem reafirma o que seu vértice já pensa. Ela substitui o talento pela bajulação.
A governança é fictícia, mantida pela insensibilidade à realidade humana, social e ambiental – seja interna, seja no entorno. Esse “autismo social” produz a miragem da impunidade.
Embalado pela sensação de impunidade, o vértice da pirâmide segue a lógica do “penso, quero, posso, mando, não sou punido e, por isso, reincido”. Um desastre de governança – com efeitos perversos.
Assim, de forma arrogante, uma empresa do nível da Cia. Vale, manteve escritórios e um refeitório em área de impacto plotada certamente no mapa de risco de acidentes de trabalho, no mapa dos laudos de avaliação e de risco ambiental, nos planos de contingência e emergência de segurança de Barragem.
Como admitir que o sistema de alerta fosse “tragado” pelo mar de lama? Como perdoar a emissão de uma licença ambiental para extração de material fino depositado no local, sem que uma vistoria prévia atestasse justamente a fragilidade da barragem?
Só a arrogância criminosa e o desprezo à vida humana explicam…
Dumping ambiental?
Tão somente pelo exame das alternativas postas à disposição do setor de mineração, percebe-se que a opção pelo barateamento de custos na disposição dos rejeitos é diretamente proporcional à assunção de riscos de dano ambiental, e possibilidade de ocorrência de tragédias humanitárias.
Em economia, quando se analisa o direito de concorrência no mercado, o nome conferido a essa estratégia é dumping.
O dumping é prática comercial condenável. Consiste no barateamento de produtos visando atacar a concorrência de forma desleal, reduzindo custos extraordinariamente ou subsidiando a produção de forma a precificar abaixo do valor considerado justo.
O descumprimento de normas trabalhistas, condutas fiscais e encargos sociais, bem como a desconsideração de medidas de prevenção da segurança do trabalho e ambiental, caracterizam o dumping. A opção pela disposição barata dos rejeitos, com alto custo para a sociedade e o meio ambiente, parece seguir o tipo.
A responsabilidade civil da mineradora
Seja pelo disposto no §1º do art. 14 da Lei 6.938 de 1981, seja pelo estatuído no Código Civil, art. 927, parágrafo único, a responsabilidade civil da mineradora Vale é inescapável e objetiva – independe de culpa contratual e extracontratual. Vale no caso a relação de causalidade entre a atividade e a tragédia.
O Poder Público não deveria encontrar obstáculos para agir prontamente, buscar resguardar o direito dos lesados, coletivamente, bem como obrigar a mineradora a uma série infinita de obrigações de fazer e de indenizar, seja pelo dano às pessoas, seja pelos danos ambientais.
O Poder Judiciário, porém, não possui estrutura e condições para agir na mesma velocidade da premência de tutela. Assim, uma apólice de seguro condicionada à licença da atividade da empresa, de forma a acionar a seguradora e o resseguro, aplacaria sensivelmente a demanda de reclamações e indenizações solicitadas, e reduziria a judicialização.
A responsabilidade civil açambarca soluções modernas, como o seguro, e também admitiria intervenções extrajudiciais diversas, como uma convenção coletiva nos moldes previstos no Código de Defesa do Consumidor, que se prestaria também para organizar entendimentos com comunidades afetadas, Quilombolas, pescadores e índios.
O Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta, por sua vez, envolve o Ministério Público, que deveria ter fracionado o rol de entendimentos, produzindo um arranjo emergencial, outro intermediário e, por fim, outro mais complexo, evitando longas e intermináveis negociações, que terminam por servir de meio para ganho financeiro friamente planejado (tal como parece ter ocorrido em Mariana).
Há de se atentar para outro fenômeno, que não me pareceu contudo ocorrer no caso de Brumadinho: a utilização do sinistro como forma de reduzir custo com passivos ambientais.
No campo do gigantismo econômico, como é o caso da mineradora, Termos de Compromisso terminam facilitando o planejamento dos ressarcimentos, valendo o “custo-benefício” na relação tempo-espaço-despesa.
No entanto, o caso de Mariana é uma lição a ser aprendida, para não se repetir em Brumadinho. Ao criarem a Fundação Renova, visando administrar por si próprios o valor ajustado com o Poder Público para o ressarcimento dos danos, as mineradoras SAMARCO, Vale e BHP construíram um “muro” institucional que tem servido de anteparo à onda de ações judiciais – quase todas desde então paralisadas, à espera de definição de critérios pela fundação, para ressarcimento às vítimas.
Desmoralizou-se uma solução criativa pela forma com que impunemente foi utilizada. A instituição da Fundação, afastou os litígios promovidos pelos seguimentos mais pobres e sofridos. Tornou a entidade uma construção “cítrica”, financeiramente vantajosa apenas para os infratores.
A responsabilidade criminal da empresa
No campo penal, cumpre ao judiciário enxergar a natureza econômica do delito ambiental.
A Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605 de 1998, definiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica e das pessoas naturais (diretores e funcionários daquela). Diz a lei, no seu artigo 3º, que a pessoa jurídica responde criminalmente quando a infração for cometida “por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.
A hipótese de imputação é bastante estreita e segue a escola do jurista Otto Gierke, mestre do direito corporativo alemão. Gierke desenvolveu a Teoria da Realidade ou da Personalidade Real. Nela, a pessoa jurídica possui personalidade e vontade própria. É capaz para agir e, também, incorrer em ilicitude penal.
Essa manifestação da vontade, do ente jurídico por meio do seu órgão, é denominada PRESENTAÇÃO, como leciona nosso saudoso jurista Pontes de Miranda.
A aferição da responsabilidade da empresa encontra-se moldada à sua estrutura de gestão e envolve o juízo de valor nela praticado, fisiologicamente.
A presentação é pouco debatida no direito brasileiro. Talvez por isso haja tanta dificuldade para evoluirmos na apuração de responsabilidades nos ambientes corporativos – especialmente na formação do juízo de culpa.
Daí a importância fulcral da aferição inquisitorial e judicial da governança, do compliance e das normas de qualidade e segurança usuais da empresa infratora.
Nossa legislação possui todos os dispositivos necessários para a aplicação articulada desses métodos. A aplicação não ocorre isolada. As leis de improbidade administrativa, de combate à corrupção, de proteção contra a livre concorrência, incluso acordos de leniência, devem ser igualmente aplicadas, pari passu com a lei ambiental, na apuração de delitos complexos, como é o caso do desastre criminoso de Brumadinho.
Crimes complexos geram distorções econômicas graves para o comércio e investimentos sociais. O fenômeno criminológico ocasionado por esses delitos externa dumpings socioambientais, fraudes na relação de consumo, fraudes fiscais, geração de bolhas especulativas no mercado de ações e outras infrações sinérgicas – não raro omitidas das vistas especializadas dos agentes públicos encarregados de sua apuração.
A responsabilidade penal dos dirigentes
Outro tormentoso assunto é o da responsabilidade penal dos representantes da direção da empresa.
No caso em tela, por mais que se tenha testemunhado a estratégia do Presidente da Companhia Vale, de conferir transparência à gestão da crise instalada após a tragédia, a necessidade de haver um procedimento apuratório da responsabilidade criminal torna-se premente.
Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos na lei ambiental, incide nas penas cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la. É que diz o artigo 2º da Lei 9.605 de 1998.
A dificuldade é compreender onde termina a mera ciência de uma inconformidade e começa a grave consciência de haver um delito em curso, e que poderia ser evitado.
Como enxergar a figura de um criminoso, nos dirigentes públicos e privados envolvidos na questão?
O infrator ambiental à testa de uma grande organização econômica não é um marginal abestado; não é um celerado com chinelo nos pés, munido de um revólver de cano raspado – cuja periculosidade exige pronta e imediata ação repressiva do aparato policial.
O infrator ambiental executivo de grande empresa, é bom pai de família, provedor, formador de opinião, empresário contribuinte e gerador de empregos; tem formação acadêmica e experiência executiva invejável. Porém, em determinado momento, em um processo decisório qualquer, se omite ante ou determina ação poluidora, cujos efeitos resultam em morte e tragédia, afetando populações, gerações e ecossistemas.
O dirigente pode avaliar mal ou não avaliar, ou então deixar de adotar medidas relevantes atendendo a interesses políticos ou econômicos vários, no vértice da pirâmide de arrogância, cujo risco assumiu burocrática e friamente.
Nelson Hungria leciona que “assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer.”
Vem daí a dúvida homérica a respeito da caracterização do dolo eventual ou da culpa consciente, mesmo estando diante de fatos certos que induzem a ocorrência dessa última hipótese, partindo-se do pior cenário traçado.
Porém, o dilema não resiste ao gigantismo da corporação infratora.
Com efeito, os processos decisórios no ambiente corporativo, partem justamente de análise acurada, baseada em informações profissionais, cuja avaliação de risco incluiu obrigatoriamente o pior cenário traçado. Esta acuidade decisória só se amplia na proporção direta do tamanho da organização.
Não por outro motivo, a investigação sobre o desastre da Vale em Brumadinho abrange objetivamente os indícios de participação das instâncias decisórias da empresa no evento danoso. Algo como uma investigação de auditoria – um exame cuidadoso e sistemático das atividades desenvolvidas pela empresa, com o objetivo de averiguar se estão de acordo com o planejado estabelecido previamente – se procedimentos e normas foram implementados com eficácia e encontram-se adequados (em conformidade) à consecução dos objetivos.
Atas, protocolos, memorandos, circulares, manuais técnicos, planos de emergência e treinamento, tornaram-se objeto de investigação criminal, na busca de elementos de culpa da empresa e seus dirigentes pelo desastre que ceifou centenas de vidas. Prisões temporárias para obtenção de depoimentos e informações cruzadas, de técnicos e gerentes, devem conduzir o fio da meada até quem efetivamente decidiu.
O que até aqui foi levantado pela investigação, expõe um somatório de cinismos, friezas, desumanidades, contidas em planejamentos friamente calculados, com desprezo absoluto pelas vidas humanas e recursos ambientais caros ao País. Não estamos diante de uma empresa que possa ser chamada de “patrimônio nacional” – estamos lidando com um monstro em forma de corporação.
O rol de infrações penais por óbvio transcende o delito de poluição, na forma qualificada, previsto no artigo 54 cc art. 58, I, II e III, em concurso material, da Lei Federal 9.605 de 1998. Há de se analisar a aplicação concomitante do Código Penal – incluso homicídio qualificado. A ciência da instabilidade da barragem somada à conduta omissiva-comissiva (nada fazer ou dissimular o risco), forma um rastilho de culpas, que mancha a conduta de prestadores de serviços, técnicos, coordenadores, gerentes e diretores, chegando ao conselho da corporação. O Ministério Público e a Justiça mineira terão trabalho nos próximos dias, semanas e meses.
Da mesma forma que se processa a investigação criminal, deveria o Poder Executivo agir por meio de fiscalização administrativa – visando apurar a fundo o rol de infrações ambientais – cujo elemento subjetivo é razão integrante da autuação.
No caso aqui tratado, externo minha inconformidade para com o procedimento do órgão ambiental federal. Simplesmente ignorou a gama de possibilidades – como encetar uma fiscalização integrada, com agendamento, dentro da diretoria da empresa, solicitando toda a documentação relativa às autorizações, relatórios e licenças.
Ignorou o IBAMA as diversas medidas sancionadoras postas á sua disposição no art. 72 da Lei Federal 9.605 de 1998, limitando-se timidamente a… lavrar multas.
Por sua vez, o órgão estadual tem se mostrado intimidado por um governo estadual que parece agir como refém da empresa infratora.
Conclusão
Para Brumadinho vale a experiência acumulada pelo Ministério Público Federal e Estadual acumulado com o caso de Mariana.
Diz a denúncia criminal por homicídio, formulada contra a SAMARCO, Vale e BHP, bem como dirigentes e membros do conselho administrativo das companhias:
“reduzir custos é estratégia legítima de toda empresa e de seus gestores, mas à custa da segurança e dos sabidos riscos de que poderia levar a gravíssimas consequências, é uma atitude reprovável e criminosa”.
Assim, é perda de tempo o Estado imiscuir-se no lamaçal, onde equipes de resgate tentam retirar os corpos das vítimas do desastre criminoso, para apurar responsabilidade criminal.
O núcleo da investigação, de fato, não está na barragem. Provavelmente encontra-se nas sedes da VALE, em Minas e no Rio de Janeiro.
Que fique bem claro:
A sensação de impunidade e a repetição de tragédias só cessará quando o Estado punir eficazmente o vértice da pirâmide de arrogância.
Obrigado!
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Diretor da AICA- Inteligência Corporativa, Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB. e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View