Por Bárbara Cristina Kruse*
O bloqueio da rodovia BR-376, por conta de um deslizamento de terra na encosta do quilômetro 668,9, em Guaratuba, no litoral do Paraná, no dia 29 de novembro de 2022, dificultou o trânsito de várias pessoas que viajavam pelo trajeto. O motivo dos bloqueios, como amplamente divulgado, se deu por conta das intensas chuvas na região da Serra do Mar. Abruptamente, toneladas de lama e de rochas desabaram na estrada em horário aproximado das 19h, encobrindo quase 80 metros da rodovia. Veículos automotores foram soterrados e vítimas foram atingidas, chegando, inclusive, a ter óbito no local. Para quem acompanhou de perto o desastre, segundo consta nas reportagens, o cenário foi considerado desesperador (ULBRICH, 2022; ZARPELON, 2022).
Desastres naturais, tais como este, representam processos dinâmicos endógenos e exógenos que atuam na estrutura e na dinâmica do planeta Terra. Deste modo, a água pluvial é um dos principais agentes transformadores da paisagem, interagindo nas encostas ora infiltrando no solo, ora escoando superficialmente. Uma das funções das chuvas, portanto, consiste na modelação do relevo da superfície terrestre, fato que acomete na mecânica dos mantos do solo, nas rochas e no domínio das vertentes. Entre o topo e o fundo do vale, por exemplo, transitam sedimentos diversos e elementos detríticos que interagem com os mecanismos associados às águas, ventos, gelos e as forças gravitacionais. Neste sentido, “as curvaturas das vertentes atuam no direcionamento do fluxo hídrico e na concentração do escoamento superficial” (GRYCZAK; KRUSE, 2022).
O comportamento da água no solo depende da velocidade e da duração da chuva. A umidade, a estrutura e a textura do solo influenciam também o comportamento da água subsuperficial. Ademais, outros fatores são importantes como a permeabilidade da superfície, a cobertura vegetal, a inclinação do terreno, o tipo de chuva e a temperatura. Por isso, a compreensão desses processos nas encostas faz-se fundamental, enquanto os mesmos evoluem para riscos e desastres que envolvem seres humanos como os movimentos de massa responsáveis por escorregamentos, deslizamentos, rastejo, movimentos de blocos, tombamentos e assim por diante. O planejamento ambiental e a adoção das medidas mitigadoras, neste contexto, são importantes e tendem a prevenir e corrigir eventos adversos que possuem potencial para causar prejuízos ambientais nos meios físicos, bióticos e antrópicos. Amenizar eventuais danos, como resultado, é mais do que necessário, assim como o monitoramento geológico (TEIXEIRA et al, 2009).
Casos análogos são frequentemente divulgados nos veículos de notícias, sobretudo no que tange a locais com alto índice de pluviosidade. Considerando os dados científicos que preveem o aumento dos desastres ambientais, aduz Délton Winter de Carvalho (2020) que houve um crescimento significativo no que tange a ocorrência de desastres desde 1900, embasando-se também no Atlas Brasileiro de Desastres Naturais de 1991 a 2010, confeccionado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O relatório da Organização das Nações Unidas, Global Environment Outlook 6 (GEO-6), lançado em 2019, também aborda a tendência de crescimento de perdas no que tange aos fenômenos naturais. Esse aumento, com grande probabilidade de certeza (conforme os relatórios recentes da ONU), está correlacionado com as mudanças climáticas.
No ano de 2013 a Conferência das Partes (COP), órgão supremo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC), apontou no documento Alterações Climáticas 2013: a base científica, 95% de certeza que o aquecimento observado desde meados do século XX possui causa antrópica (IPCC, 2013). Os dados e gráficos expostos no GEO-6, evidenciam aumentos nos impactos ambientais e na temperatura média global da superfície. As consequências dessas alterações, se dão, especialmente, no aumento numérico de desastres ambientais, os quais ameaçam a segurança dos seres vivos. Aponta o Geo-6, 2019 (tradução nossa):
“É necessária uma ação urgente em uma escala sem precedentes para deter e reverter essa situação, protegendo a saúde humana e ambiental e mantendo a integridade atual e futura dos ecossistemas globais. As principais ações incluem a redução da degradação da terra, perda de biodiversidade e poluição do ar, terra e água; melhorar a gestão da água e gestão de recursos; mitigação e adaptação às mudanças climáticas; eficiência de recursos; abordar descarbonização, dissociação e desintoxicação e prevenção e gerenciamento de riscos e desastres. Todos eles exigem políticas mais ambiciosas e eficazes, incluindo consumo e produção sustentáveis, maior eficiência de recursos e melhor gerenciamento de recursos, gerenciamento integrado de ecossistemas e gerenciamento e prevenção integrados de resíduos”.
Para se ter uma noção da rapidez das transformações climáticas, enquanto o GEO-5, divulgou no ano de 2012 o aumento de 0,85ºC, o GEO-6, em 2019, apontou um aumento de até 1,2ºC na temperatura. Esse cenário, portanto, exterioriza que a força da natureza tem o condão de modificar e asseverar desastres ambientais, dadas as modificações bruscas de temperaturas e, em casos regionais, afetando a mudança no padrão de chuvas. Segundo o IPCC, as chuvas no mundo já estão mais frequentes e intensas. O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), documento foi produzido por mais de 300 cientistas brasileiros, demonstra que o Sul e o Sudeste terão chuvas mais fortes e frequentes, o que tende a causar mais enchentes e deslizamentos e ainda:
“Os impactos negativos sobre a saúde na Região Sul do Brasil poderão surgir com o favorecimento a doenças infecciosas endêmicas sensíveis às variações do clima. Desastres como deslizamentos de terra, morte por afogamento e desabamentos poderão ser mais frequentes. A agropecuária na região é vulnerável às mudanças climáticas. (…) Somam-se à condição meteorológica já afetada pelo Enos registros de aumento da temperatura do ar, nos mais diversos municípios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que inevitavelmente exercem influência não só na agricultura, pecuária e segurança alimentar, mas em questões ambientais como o ciclo hidrológico e de saúde da população. Aumentos de precipitação e vazão de rios, apesar das incertezas, poderão se intensificar, conforme cenários projetados pelo IPCC. As temperaturas seguiram o padrão de aumento nos valores médios, com redução dos episódios de geadas e dias frios (PBMC, 2013, p. 26-27)”.
Nesta nova configuração da sociedade contemporânea é que Ulrich Beck (2010) cunha o termo “sociedade de riscos”, sobretudo porque o risco pressupõe o perigo. A instabilidade social, para Beck, decorre da própria modernidade e da industrialização, pugnando por outra dinâmica social e política. Toda essa nova reconfiguração socioespacial conduziu a sociedade para novas ameaças globais e riscos de acidentes. Para tanto, a sociedade de riscos imprescindivelmente dever-se-á calcular seus riscos para sua própria condução, quantificando suas possibilidades e calculando as probabilidades de acidentes e desastres. O potencial de catástrofes, por isso, deve ser o centro da questão dos riscos e da nova configuração da sociedade, centralizando medidas de mitigação e prevenção. A crise ambiental, portanto, perfaz-se como consequência do padrão de vida desenvolvido na modernidade.
Ora, neste cenário de incertezas, qual seria o papel do Estado? E o mais, como a proliferação dos riscos interconecta com uma nova postura do Direito? Tais situações podem-se dizer que são novas para a ciência jurídica, na medida que a própria filosofia do Direito tem uma dificuldade de dialogar com as questões ecológicas. Se perpassarmos pelos clássicos contratualistas, positivistas, pós-positivistas e até mesmo neocontratualistas, dificilmente encontraremos na ciência jurídica um embasamento teórico que de substância à crise ambiental contemporânea. Talvez, a proposição mais ecológica que se aproxime da ciência jurídica seja a que propõe a adesão da sociedade a um novo pacto de convívio social, qual seja o Contrato Natural, conceito cunhado pelo filósofo francês Michel Serres (1994). Porém, tal pensamento [infortunadamente] ainda não é difundido academicamente nos cursos de graduação. Enquanto isso, o cenário científico ambiental urge por uma postura ativa do Estado, no entanto, apenas no plano internacional pode-se dizer que há contundência na discussão que tange as demandas ambientais contemporâneas. Pode-se dizer, neste sentido, que a escala nacional ainda é insuficiente para conter as projeções pessimistas que lhe são expostas.
Trata-se, quiçá, de reformular o pensamento do Direito enquanto instrumento legítimo regulador das relações sociais, ou seja, colocando-o fulcralmente como ente capaz de reduzir a vulnerabilidade e promover a resiliência. Ou melhor, o papel do Direito, no século XXI, deve ser, enquanto instrumento que acompanha as transformações sociais contemporâneas, o ente legítimo para “fornecer capacidade para decisão em cenários extremos, fornecendo estabilidade e segurança jurídica ao caos instituído” (CARVALHO, 2020, p. 18). A sociedade contemporânea, à vista disso, clama por um novo Direito que consiga articular medidas preventivas, de monitoramento e de avaliação quanto aos riscos, bem como na instrumentação das encostas e das chuvas (principalmente no Sul e no Sudeste). Na prática, pois, é preciso um Estado gerenciador das questões ambientais, capaz de articular ações que conduzam a um monitoramento permanente. As mudanças climáticas, portanto, demandam de um Estado “protagonista na imposição de deveres e atribuições as instituições competentes” (KRUSE, 2022, p. 105). Assim sendo:
“Cabe aos pesquisadores, aos cientistas e aos intelectuais (especialmente), antever danos, prevenir riscos e projetar melhores condições de vida no Planeta. De outro lado, a regulação da vida humana em um mundo obstinado a desastres, demanda da ciência jurídica novas configurações, as quais, por seu turno, demandam do Estado o papel assecuratório quanto aos riscos. Nesse contexto, o Direito, desta vez, precisa ser o impulsionador dessa mudança socioambiental” (KRUSE, 2022, p. 105).
O desastre ambiental na BR-376 longe de ser um caso isolado, demonstra que é preciso priorizar as questões ambientais contemporâneas. Não apenas no Paraná, mas como outros casos dramáticos de intempéries ambientais assombram o território nacional, como, por exemplo, as enchentes e os deslizamentos de Petrópolis (RJ), também no ano de 2022. Ao nível internacional, a pandemia do Covid-19 traz lições importantes de como as questões ambientais estão interligadas em um mundo em redes e globalizado. Longe de idealizar uma utopia, portanto, discorre Boff (2004) é preciso retomar o elo de fraternidade, afeição e união, que nos foi desligado na (pós)modernidade.
Um novo Direito e um novo modelo civilizacional devem repensar situações insustentáveis com a capacidade do Planeta Terra, como é o caso da cultura do descarte e da obsolescência programada. Consequentemente, “a mola propulsora ecológica deve caminhar com o Direito e a mudança deve também ser de percepção política e ideológica” (KRUSE, 2022, p. 271). A mudança da civilização contemporânea, longe de se propor um ideal radical revolucionário, necessita ser feita “dentro das instituições e da ciência jurídica, eis que o Direito também é um dos instrumentos de transformação social” (KRUSE, 2022, p. 271).
A transformação social do século XXI, portanto, tem de ocorrer em prol das futuras gerações e da sobrevivência humana na Terra, a partir da reconstrução dos padrões e dos instrumentos jurídicos, os quais devem conseguir transformar a hermenêutica jurídica em um aliado ambiental. O Direito, portanto, não pode mais ser um passo atrás das transformações sociais, mas sim, deve ser o impulsionador de posturas em prol da ecologia. É preciso, contudo, superar a contradição utilitarista da lógica do capital que utiliza a natureza primariamente de forma econômica. Ora, a transposição dessa visão amálgama condições ideais dos recursos naturais com a capacidade de suporte da Terra. A urgência, dessarte, caminha contra o tempo presente.
Referências
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: 34, 2010. 383 p.
BOFF, Leonardo. Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua regulamentação jurídica. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
GRYCZAK, Luciane; KRUSE, Bárbara Cristina. Paisagem e Apontamentos sobre a Contaminação Química de Sistemas Morfopedológicos. In: KRUSE, Bárbara Cristina; ANTUNES, Dinameres Aparecida; CLARINDO, Maximillian Ferreira. A questão ambiental sob o prisma interdisciplinar. Campo Grande: Inovar, 2022. Cap. 13. p. 206-220. Disponível em: https://www.editorainovar.com.br/omp/index.php/inovar/catalog/view/69/71/207. Acesso em: 15 dez. 2022.
IPCC. Alterações Climáticas 2013: a base científica. Genebra: Unep, 2013. 210 p. (5). Parte da Contribuição do Grupo de Trabalho I para o Quinto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas. Disponível em: https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/03/ar5_wg1_spmportuguese.pdf. Acesso em: 25 ago. 2020. ONU, 2020.
KRUSE, Bárbara Cristina. Desastres ambientais e a incapacidade de enfrentamento jurídico à dinâmica ambiental do capital no contexto brasileiro. 2022. 338 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas) — Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, 2022.
PBMC. Impactos, Vulnerabilidade e Adaptação: Contribuição do Grupo de Trabalho 2 ao Primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Sumário Executivo do GT2. PBMC, Rio de Janeiro, 2013, 28 p.
PBMC. No Brasil, aquecimento global significará mudança no padrão de chuvas. Disponível em: http://pbmc.coppe.ufrj.br/index.php/en/news/363-no-brasil-aquecimento-global-significara-mudanca-no-padrao-de-chuvas.
SERRES, Michel. O contrato natural. Tradução de Serafim Ferreira. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
TEIXEIRA, Wilson et al (org.). Decifrando a Terra. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.
ULBRICH, Giselle. BR-376: tela na encosta deverá evitar bloqueio total durante chuva intensa. Disponível em: https://ricmais.com.br/transito/br-376-tela-na-encosta-devera-evitar-bloqueio-total-durante-chuva-intensa/. Acesso em 23 de dezembro de 2022.
UNITED NATIONS ENVIRONMENT ASSEMBLY (Cambridge). United Nations Environment Programme (Unep). Global Environment Outlook – GEO-6: summary for policymakers. Cambridge University Press, Cambridge, v. 1, nº 1, p. 1-28, 31 maio 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1017/9781108639217. Acesso em: 3 fev. 2021.
ZARPELON, Cecília. Deslizamento na BR-376 foi “acidente”, mas falta fiscalização prévia de encostas. Disponível em: https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/deslizamento-na-br-376-foi-acidente-mas-falta-fiscalizacao-previa-de-encostas/. Acesso em 10 de dezembro de 2022.
*Bárbara Cristina Kruse é doutora em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Mestre em Gestão do Território pela UEPG, especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (Emap-PR), advogada, acadêmica do mestrado profissional em Direito pela UEPG e integrante da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário/Agronegócio da subseção de Ponta Grossa (OAB-PR).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 12/01/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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