Por Marcia Hirota e Diego Igawa Martinez*
A compreensão sobre os bens e serviços fornecidos pelos ambientes marinhos e costeiros vem sendo bastante aperfeiçoada durante as últimas décadas. Atualmente, reconhecemos que o litoral brasileiro e o mar, quando saudáveis, fornecem valores que podem ser utilizados diretamente por nós, como as oportunidades recreativas.
As atividades recreativas na Zona Costeira abrangem desde uma simples caminhada na praia ao desporto náutico, um mercado em franca ascensão em modalidades como o remo, canoagem, vela, surf e suas variantes. Apenas o mercado do surf, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Surf (IBRASURF), movimenta cerca de R$ 2 bilhões ao ano.
Porém, essas oportunidades encontram-se comprometidas em várias regiões costeiras brasileiras devido à um longo histórico de falta de atenção com a integridade e saúde desses ambientes, com destaque para os severos problemas de coleta, tratamento e destinação correta de esgotos.
Atualmente, o Rio de Janeiro é a região que mais chama atenção nesse contraponto entre a existência de um ambiente natural perfeito para a prática de esportes e as oportunidades perdidas devido às más condições da água e falta de saneamento.
Com a proximidade das Olimpíadas, o caso da Baía de Guanabara já foi bastante explorado pela mídia e é um grande problema de saneamento para o governo estadual. Cerca de 42% das moradias no entorno da Baía ainda não contam com coleta de esgoto. Monitoramento realizado pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA) aponta alto nível de contaminação, especialmente na porção oeste da Baía, onde os níveis de coliformes fecais estão assustadoramente até 20.000% superiores aos limites estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA).
Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, a poluição da Baía impacta a saúde pública dos municípios do entorno, que no ano de 2013 registraram por volta de 2,7 mil internações e 22 mortes por doenças associadas à falta de saneamento.
O ritmo lento da melhoria nos índices de saneamento compromete a meta para os Jogos Olímpicos, que é de coletar e tratar 80% do esgoto que ainda é despejado na Baía. Hoje, as opiniões de especialistas expressas na imprensa são bastante desanimadoras, alegando que o “legado das Olimpíadas” pode ser praticamente nulo para a saúde ambiental da Baía de Guanabara.
Não obstante, representantes internacionais dos Jogos Olímpicos continuam a pressionar por melhorias até 2016. As declarações dos atletas também demonstram apreensão com o possível comprometimento da performance por conta do lixo e também, obviamente, com a própria saúde.
Além dos eventos olímpicos na Baía de Guanabara, a etapa brasileira do campeonato mundial de surf, que terminou com vitória do paulista radicado na Califórnia Filipe Toledo, também chamou a atenção da opinião pública para os problemas de saneamento no país.
Além de Filipinho, o Brasil conta atualmente com sete homens e uma mulher na divisão de elite do surf mundial, incluindo o atual campeão Gabriel Medina. Na etapa brasileira, que é a única do calendário do tour da elite na América do Sul, os locais para a realização da prova seriam a já tradicional Barra da Tijuca e as famosas ondas tubulares da praia de São Conrado. Porém, o evento em São Conrado foi mais uma vez cancelado para, segundo os organizadores, não colocar a saúde dos atletas em risco.
Infelizmente, temos que concordar que a decisão da Liga Mundial de Surf foi bem acertada. Apesar da praia de São Conrado ser considerada por muitos como uma das mais bonitas da cidade do Rio de Janeiro, bem como uma das com maior potencial para o surf de alta performance, a poluição do mar na região por esgoto doméstico é tão grave que já gerou cenas estarrecedoras do esgoto in natura literalmente escorrendo pelo costão rochoso direto para o mar.
Segundo o monitoramento da balneabilidade da água do mar realizado pelo INEA, a situação de São Conrado é crítica. O histórico dos boletins de balneabilidade de 2015 mostram que desde o início do ano São Conrado não teve sequer uma semana com águas que pudessem ser consideradas apropriadas para o banho. O risco de contrair doenças pelo contato com a água contaminada é grande e as patologias envolvem micoses, dermatites, conjuntivite, gastroenterites e até hepatite.
Já a praia da Barra da Tijuca, que recebeu o palco principal do campeonato nas proximidades do “postinho”, na Avenida do Pepê, também não é nenhum primor em termos de saneamento, pelo contrário. Apesar de contar com estação de tratamento e emissário submarino, a Barra da Tijuca ainda apresenta sérios problemas de poluição nos seus cursos d’água, lagoas e na saída do quebra-mar.
O monitoramento da balneabilidade feito pelo INEA indica que, de janeiro a maio de 2015, os pontos de coleta mais próximos à área do campeonato mostraram-se impróprios em mais de 70% do tempo. Na semana do campeonato, não foi diferente. Mais uma vez a qualidade da água estava imprópria e vários atletas reclamaram de mal estar, dor de cabeça e vômitos, além do cheiro da água e lixo na praia.
Motivados por esse preocupante cenário, diversos movimentos e instituições, entre eles Uma Gota do Oceano, Instituto-E, Fundação SOS Mata Atlântica, Salvemos São Conrado, Associação de Surfistas e Amigos da Prainha e do Leblon e Arpoador Surf Club realizaram, durante o campeonato, coleta de assinaturas para um manifesto pela melhoria nas condições de saneamento e qualidade da água das praias cariocas, tendo inclusive adesão de vários atletas e personalidades da cena do surf no Brasil, como os já citados campeões Filipe Toledo e Gabriel Medina, além de Carlos Burle, surfista de ondas grandes, e a surfista Andrea Lopes, dentre outros.
Soluções e recursos existem. Um programa para a despoluição de praias cariocas foi lançado em 2012, batizado de Sena Limpa, com o objetivo de melhorar a qualidade das principais praias. No entanto, apesar da pressão e do ativismo de movimentos locais, o cronograma das intervenções e obras tem sido adiado continuamente e o esgoto continua caindo diretamente na área utilizada por surfistas e banhistas.
Há de se reconhecer que o atendimento da rede de esgoto na cidade do Rio de Janeiro vem melhorando. Segundo o Ranking do Saneamento, publicado em 2015 pelo Instituto Trata Brasil, a rede de esgoto que atendia apenas 68% das residências em 2009 passou para cerca de 81% em 2013. Porém, a universalização do serviço no município ainda é uma realidade distante, principalmente nas áreas das favelas. Ainda segundo essa mesma publicação, apesar do aumento da rede coletora, o nível de tratamento de esgoto na realidade diminuiu, uma vez que boa parte do esgoto captado ainda é lançado sem tratamento no mar pelos emissários submarinos.
Um dos objetivos do manifesto e do abaixo assinado propostos pelas organizações é justamente lutar por um plano efetivo de despoluição, com processos transparentes e diálogo com a sociedade civil. Não só na cidade, mas em todo o Estado do Rio de Janeiro, que serve de inspiração e exemplo para mobilização em todos os municípios do litoral brasileiro.
A despeito das situações vergonhosas que estamos passando frente aos eventos e à opinião pública internacional, o descaso com os esgotos domésticos e com o saneamento ambiental se arrasta e continua a fazer vítimas.
Até quando iremos assistir pessoas adoecerem e nossas praias condenadas por falta de investimentos adequados e responsáveis da gestão pública? Diversos estudos econômicos, ambientais e de saúde pública já provaram que o saneamento é um bom negócio. O desenvolvimento sustentável da zona costeira e marinha não pode mais continuar a correr esgoto abaixo. “Água limpa é a Onda”, saneamento já!
*Marcia Hirota é diretora executiva da Fundação SOS Mata Atlântica;
Diego Igawa Martinez é biólogo do Programa Costa Atlântica da organização.
A SOS Mata Atlântica é uma ONG brasileira que desenvolve projetos e campanhas em defesa das Florestas, do Mar e da qualidade de vida nas Cidades.
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