Por Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos
A cada novo período chuvoso voltam às manchetes as mortes e sinistros associados a deslizamentos de encostas e enchentes. Tragédias insistentemente anunciadas, mas anualmente recorrentes dado ao descompromisso com que a administração pública em seus três níveis tem lidado com a questão.
Todos estão fartos de saber que esses fenômenos decorrem diretamente das formas equivocadas com que se expandem nossas cidades, impermeabilizando seus territórios, canalizando e retificando seus rios, ocupando terrenos, como encostas de alta declividade e margens de córrego, que não poderiam nunca ser ocupados dada sua já altíssima suscetibilidade natural a riscos, mas também ocupando terrenos de média declividade, onde a ocupação urbana seria aceitável, com a utilização de técnicas construtivas e urbanísticas totalmente inadequadas, que acabam transformando mesmo essas áreas em um verdadeiro canteiro de situações de risco.
E com toda essa realidade, escancarada anualmente pelo meio técnico e repercutida pelos meios de comunicação, a pungente verdade é que nossas autoridades sequer tomaram a providência mínima e cristalina de parar de errar, ou seja, parar de cometer os erros que estão na exata origem causal dessas tragédias de cunho geológico, geotécnico e hidrológico. Por conseqüência, o que se vê é, ao invés da redução do número de áreas de risco, a sua contínua multiplicação.
Como resultado, uma perspectiva de futuro assustadora: as tragédias em áreas de risco tendem a crescer em frequência e letalidade, na exata proporção do crescimento de nossas cidades.
Dentro desse panorama é preciso que se compreenda que do ponto de vista técnico não há lacuna alguma nos conhecimentos básicos de geologia, geotecnia e hidrologia necessários para a boa solução desses problemas. Os fenômenos de enchentes e deslizamentos nos mais variados contextos geológicos do país são já bastante estudados e conhecidos. Os instrumentos que permitirão um correto planejamento do uso e ocupação do solo urbano são dominados, como a essencial Carta Geotécnica, um mapa municipal que informa sobre os locais que não poderão nunca ser ocupados e as áreas que poderão ser ocupadas caso sejam utilizadas as técnicas adequadas para tanto. Por paradoxal que possa parecer, o Brasil é liderança internacional nesse campo tecnológico.
Vale registrar apenas que não possuímos no país uma cultura técnica arquitetônica e urbanística especialmente adequada à ocupação de terrenos com maior declividade. Isso se verifica tanto nas formas espontâneas utilizadas pela própria população de baixa renda na auto-construção de suas moradias, como também em projetos privados ou públicos de maior porte que contam com o suporte técnico de arquitetos e urbanistas e têm, apesar do erro básico e grave de concepção, sua implantação autorizada pelos órgãos municipais responsáveis para tanto.
Em ambos os casos, ou seja, no empirismo popular e nos projetos mais elaborados, prevalece infelizmente a cultura técnica da área plana. Isto é, através de cortes e aterros obtidos por operações de terraplenagem nas encostas obsessivamente se procura produzir platôs planos sobre os quais irá ser edificado o empreendimento. Um fatal erro técnico de concepção. Esse tem sido o cacoete técnico que está invariavelmente presente na maciça produção de áreas de risco nas cidades brasileiras que, de alguma forma, crescem sobre relevos mais acidentados.
Vale insistir, no entanto, a maior dificuldade para a boa solução desses problemas continua a residir na falta de vontade e no descompromisso das administrações públicas em finalmente decidir ordenar corretamente a expansão urbana de suas cidades. Nesse mister é fundamental perceber que as populações mais pobres somente deixarão de optar por áreas de risco para instalar suas moradias quando o poder público, através de ousados Programas
Habitacionais, lhes oferecer alternativas dignas e seguras de moradia na mesma faixa de custos que ela hoje só encontra na ocupação das áreas de risco. Essa é a verdade nua e crua da questão. Ou essa equação básica é resolvida ou a instalação de novas situações de risco sempre superarão em muito o esforço em desarmar as já instaladas.
Em resumo, é preciso que as autoridades públicas deixem de irresponsavelmente ver a questão das áreas de risco como um problema de Defesa Civil e Corpo de Bombeiros, por mais heróicas que sejam essas corporações, e passem a entendê-la como um elemento próprio do campo das Políticas Habitacionais e de Planejamento Urbano. Somente sob essa ótica a administração pública passará ao comando ativo da situação, deixando de agir apenas a reboque das tragédias, situação em que lhes sobra apenas a descompostura esperta de, como sempre, culpar as chuvas pelos infortúnios.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
• Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
• Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”.
• Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia
Matéria originalmente publicada em Revista Época
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