Por Marco Aurélio Arrais
Era o mais novo de seis irmãos, todos filhos de pais diferentes. A mãe, de vida miserável e sem razão, há muito fazia morada nos cantos escuros de imóveis abandonados, debaixo das pontes e viadutos, ou no gramado quase inexistente de alguma praça mal cuidada, até que fosse expulsa pelos proprietários ou pelos zelosos fiscais da prefeitura.
A cambada a acompanhava, sobrevivendo dum jeito que nem Deus sabia. Com o tempo, o grupo foi diminuindo. Dois morreram depois de uma diarréia e vomitório que durou quatro dias, ao comerem as sobras encontradas na lixeira de um restaurante. Disseram alguns outros miseráveis, companheiros de desgraça, que aqueles restos de comida estavam envenenados para matar os gatos vadios que rasgavam os sacos do lixo.
Ninguém se preocupou em apurar nada. Para toda gente, esse povinho invisível das sarjetas não tem existência nem serventia. Outro morreu atropelado por um carro bonito e grande, quando estava no meio da rua, num sinaleiro, pedindo esmola. Tinha só tres anos, e era bem pequeno.
Não foi visto pela motorista, uma moça bonita que gritava e ameaçava desmaiar, ao ver o defuntinho com a cabeça esmagada debaixo do pneu do seu automóvel. Os dois mais velhos sumiram no mundo, sem qualquer aviso ou despedida.
Sobrou o caçula. Teve a mãe até os doze anos, quando ela morreu vomitando sangue, deitada na calçada, debaixo de uma marquise, numa noite de chuva com muito vento. Êle ficou ao lado dela até que chegou o carro da polícia e levou-a embora, dentro de um caixão de metal. Foi entregue à Fundação, onde deveria ficar até atingir os dezoito anos.
Lá conheceu a violência, a humilhação e o abandono, sendo mais um dentre os muitos sem importância, sem dignidade e sem esperança.
Assim que chegou, fizeram o registro civil dele. Perguntado qual seria sua idade, disse ter doze anos, mas não acreditaram. Pela pequena estatura e extrema magreza, colocaram no documento que tinha a idade que condizia com seu corpo mirrado. Passou a ter, então, nove anos.
Lá iniciou seu aprendizado de como sobreviver no mundo ao qual estava destinado. Primeiro, aprendeu a obedecer e a se submeter aos garotos maiores e mais fortes. Com o tempo, mais crescido, fez-se respeitado depois de furar o olho de um outro que queria fazê-lo de mulher.
Aprendeu a usar a ameaça e a brutalidade quando necessário. Entendeu que podia, sempre que lhe convinha, usar sua condição para escapar de qualquer responsabilidade. Repetia sempre que não podiam fazer nada contra ele, pois era “de menor”. Acabou tornando-se o “Dimenor”, como passou a ser chamado por todos aqueles com os quais convivia.
Em pouco tempo, devido à sua esperteza e liderança, assumiu a venda da maconha, introduzida na instituição por um funcionário que era parente de um traficante. Isso fez dele uma pessoa diferenciada e temida. Agora dava ordens e administrava seu pedaço. Tinha quinze anos na certidão de nascimento. Dezoito, na realidade.
Gostava de frequentar os escritórios da instituição. Lá podia ficar junto das assistentes sociais, algumas bonitas e gostosas. Elas o tratavam com carinho, procurando dar-lhe bons conselhos. Mas o que ele gostava mesmo era de estar no meio delas, sentindo o cheiro e o calor que emanava de seus corpos. Uma delas, com uma bunda empinada, peitos grandes e coxas grossas era sua paixão. Sonhava com ela peladinha, deitada no colchão sujo do seu beliche. E se satisfazia numa punheta furiosa, frustrado na sua solidão. Sonhava no dia que sairia livre. Iria foder todas as gostosas que encontrasse.
Com a ajuda do funcionário que intermediava a venda da maconha, fugiu na ocasião de uma revolta, quando puseram fogo nos colchões e nos escritórios, quebrando tudo o que encontraram pela frente.
Apresentado ao tráfico, trabalhava na segurança das bocas. Mas não estava satisfeito, pois apesar de usar tenis bonito, roupas caras, usar brinco e corrente de ouro, sentia-se incomodado quando ia passear nos shoppings da cidade. Percebia a insatisfação que causava ao andar pelos corredores, e continuamente era acompanhado por seguranças. Não raras vezes era convidado a retirar-se.
Era obcecado pelas meninas ricas e bonitas que via, vestidas com shortinhos e minissaias, perfumadas e distantes. Mal podia sufocar a atração e o desejo imenso que sentia, somados a um ódio irracional. Cada vez mais sentia-se diminuído, desvalorizado e insignificante. Não entendia o que elas conversavam. Parecia que falavam uma outra língua. Ficava imaginando como seria trepar com uma delas. Com o tempo essa idéia foi amadurecendo, e começou a imaginar o que teria de fazer para conseguir isso.
Escolheu uma, que era a coisa mais linda que já tinha visto. Calculou para ela uns dezesseis anos. Com cabelos compridos castanhos, corpo bem feito, os peitinhos furando a blusa de tecido fino, vestida com uma saia curtinha que mostrava as perninhas bronzeadas.
Junto com alguns comparsas planejou raptar a menina. Percebeu que ela sempre estava acompanhada por com um garoto pouca coisa mais velho. Ele não seria empecilho, pois podia ser facilmente dominado. Verificou que sempre saíam do shopping num carro e sózinhos.
Certa noite, seguiram o carro do casal em duas motos. Num sinaleiro, em uma rua vazia, os supreenderam. Êle e um outro se apossaram do carro, depois de trancar o rapaz no porta-malas. A menina foi forçada a ir para o banco de trás com ele, que começou a beijá-la a força, correndo a mão pelo seu corpo e forçando-a a abrir as pernas.
Fora da cidade, longe de tudo, pôde soltar a besta que trazia dentro de si. Durante toda a noite a menina foi estuprada atá a exaustão. Depois dele, que foi o primeiro, chegou a vez dos outros. Foi abusada de todas as maneiras imagináveis, até não ter mais forças para gritar ou chorar. O menino que estava com ela foi espancado, teve os dentes quebrados e no final foi morto com chutes na cabeça.
Abandonaram os dois e fugiram, levando o carro além das jóias, dinheiro e telefones das vítimas. Quando amanheceu o dia, encontraram o cadáver do rapaz e a menina, ainda viva. Rastreando os sinais dos celulares roubados, a polícia chegou até eles. Ao resistirem à prisão, dois foram mortos, e Dimenor e o outro apreendidos e encaminhados de volta à instituição, para que pudessem cumprir o restante do tempo de confinamento.
Depois disso ficaram famosos, pois a notícia do crime ocupou as páginas dos principais jornais. Apareceram na televisão. Toda a cidade citava o nome do chefe da turma, o agora famoso “Dimenor”, promovido a bandido temido e cruel. No meio dos internos era tratado de maneira diferente.
Até os funcionários responsáveis pela disciplina e vigilância pareciam ter medo . Sentia-se importante e poderoso, já que não era mais um moleque qualquer. Quando saísse dali tinha a intenção de se tornar um dos grandes. Quem sabe um chefe do tráfico ou até um destemido assaltante de banco.
Até que um dia, aquele mesmo funcionário que havia facilitado sua fuga o procurou. Tinha uma proposta de serviço para ele, juntamente com o outro amigo, comparsa do crime. Mas tinham de fugir. A grana seria alta, e a pessoa que encomendara o serviço havia dito que só serviam os dois, devido à coragem e à competência deles. Afirmou que já recebera uma grana alta como comissão, só para entrar em contato com eles. O dinheiro que receberiam seria suficiente até para comprar um carro e sumir no mundo. Ia dar para viverem no paraíso.
Ajudados pelo funcionário, fugiram numa madrugada, durante o plantão do amigo. Conforme o combinado, um carro os esperava a poucas quadras de distância, tendo como condutor um homem que disse ser empregado do contratante. Tiraram o uniforme da Fundação, vestindo roupas que haviam sido trazidas para êles, e seguiram numa viagem que durou até o fim da tarde. Durante todo o trajeto, não cansaram de narrar ao motorista tudo o que já tinham feito. Este os ouvia demonstrando interesse e admiração. Dizia que os dois eram exatamente o que o patrão procurava.
Já anoitecendo, chegaram a uma casa grande, que parecia ser a sede de uma fazenda. Antes, atravessaram várias porteiras, guardadas por homens armados. Até parecia que os esperavam, pois foram apresentados a todos, dizendo que eram as pessoas aguardadas pelo patrão. E mais, que a partir de então, a segurança deles estaria sob suas responsabilidades.
O contratante ainda não havia chegado, mas tinha dado ordens para servir a eles o jantar, com bebida à vontade. Aos poucos, aqueles mesmos homens que guardavam as saídas da fazenda foram chegando, em silêncio.
Já ia a noite alta, quando ao longe, na estrada de acesso à casa, viram os faróis de um carro. Os homens, acocorados na varanda, prestavam atenção na conversa dos dois, que contavam seus malfeitos, embalados pelo álcool consumido. Disseram, então, que era a camioneta do patrão. Olhando o veículo que se aproximava, não perceberam que ficaram no meio de um círculo formado por eles.
A camioneta estacionou frente à casa . Perceberam o ruído do motor de um trator, sendo retirado de um galpão à esquerda da casa.
O homem que parecia ser o patrão, aproximou-se. Parou na frente deles, olhou-os fixamente e fez um leve sinal com a mão esquerda. Só então viram que na mão direita trazia um revólver. Sem tempo para esboçar qualquer reação, foram imobilizados, manietados e jogados no terreiro.
Dimenor, surpreso, tentou falar alguma coisa, o que foi impedido por uma coronhada, que causou-lhe um profundo corte na testa, inundando seus olhos de sangue. No instante seguinte estavam deitados no chão, apanhando com um chicote de couro trançado que rasgava a pele, empapando a terra com o sangue que escorria em grande quantidade.
Aquele que mandava nos outros, depois que os viu quase sem o couro das costas, ordenou que parassem de bater. Com as mãos e pés amarrados, foram jogados na carroceria da camioneta. Os homens embarcaram, e o veículo foi rasgando a escuridão.
Quando chegaram ao destino, bem distante da casa, e na beira de uma pequena mata, ao lado de um casebre abandonado, foram chutados para fora do veículo. O homem então sacou do bolso do paletó um jornal velho e amarrotado. Ele trazia a reportagem da morte do moço e do estupro da menina. Então ele se apresentou como o pai dela. Um outro, que estivera em silêncio, desde que chegaram, afirmou ser o pai do mocinho. Só aí eles entenderam tudo. Tinham sido vendidos pelo desgraçado do funcionário da Fundação, que se dizia amigo deles.
Nesse momento, Dimenor sentiu um medo enorme. O seu comparsa tremia e gemia de pavor. O trator chegou dentro de uns minutos. O motorista da camioneta fez uma manobra e ligou a luz alta dos faróis.
Só então, viu que estavam à beira de um buraco no chão, com cerca de um metro de circunferência. Parecia a boca de uma cisterna velha.
No seu desespero, começou a gritar, dizendo que não podiam fazer nada contra eles, pois eram “de menor”, e tinham o direito a um tratamento especial, e que a lei garantia a proteção deles. Se fizessem com eles alguma coisa de mal, iam ser presos e condenados. Disse também que tudo o que tinham feito de errado, a lei não reconhecia. Eram livres de responsabilidade. Explicou que sempre ouvira isso do povo que trabalhava com os direitos humanos, que de vez em quando ia visitar a Fundação. Tinham também a proteção do Estado, e que ninguém lhes podia fazer coisa alguma.
Um outro carro chegou, e de dentro dele tiraram dois sacos. Levados até a beira do buraco, estes tiveram a boca desamarrada e seu conteúdo foi despejado. Dentro da cisterna velha caíram dezenas de cobras de todos os tamanhos, que haviam sido recolhidas previamente naqueles campos. O som dos silvos das jararacas e das urutus, acompanhados do chocoalhar dos guizos das cascavéis produzia uma música aterradora. As cordas que prendiam seus braços foram cortadas.
Amarrados apenas por um dos pés, foram descidos de cabeça para baixo por aquela garganta escura. À medida que iam sendo baixados, acenderam uma lanterna. Então puderam vislumbrar o movimento coleante das serpentes, incomodadas pela luz.
Viram-se, então, em queda livre. Bateram no fundo, e sentiram no rosto e no pescoço as primeiras picadas. Ao tentarem se levantar, braços, tronco e pernas também foram picados. Urravam de nojo e de pavor. Aos poucos, a dor das picadas que queimava como fogo, foi diminuindo.
Escutaram depois de algum tempo, o ronco do trator sendo ligado. Perceberam a terra sendo raspada pela lâmina da máquina, na superfície.
Dimenor só então percebeu que iriam ser enterrados vivos, e em desespero gritou pela mãe. Pediu socorro para a assistente social gostosona e para o pessoal dos direitos humanos. Ninguém se importou. Numa última tentativa de salvar-se, olhando desesperado para cima, recebendo no rosto a terra que caia, murmurou já sem forças: “-Sou de menor…”
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.