Por Carlos Sérgio Gurgel da Silva, Inês Virgínia Soares, Ivan Lira de Carvalho, José Irivaldo Alves Oliveira Silva e Talden Farias
O bioma caatinga está inserido no Semiárido brasileiro, região delimitada pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) considerando condições climáticas dominantes de semiaridez, em especial a precipitação pluviométrica. Como reflexo das condições climáticas, a hidrografia é frágil, em seus amplos aspectos, sendo insuficiente para sustentar rios caudalosos que se mantenham perenes nos longos períodos de ausência de precipitações. Constitui-se exceção o Rio São Francisco. Devido às características hidrológicas, as quais permitem a sua sustentação durante o ano todo, o Rio São Francisco adquire uma significação especial para as populações ribeirinhas e da zona do Sertão.
Essa região é marcada por um dos biomas mais característicos do cenário nacional, especialmente por ser o único genuinamente nacional. A palavra caatinga advém do tupi guarani e significa “mata branca”, ou “floresta branca”. Formada a partir dos elementos ca-a (floresta), tî (branco) e o sufixo ngá, (que lembra) [1]. São quase 900 mil km² de vegetação rasteira, com galhos retorcidos e que é marcada pela resistência ao clima impiedoso e abriga uma fauna e flora diversa, que para muitos causa espanto [2]. Desse modo, a caatinga se destaca por sua vegetação com aparência inóspita, muitas aves, répteis, entre outras espécies que marcam um bioma que deveria ser cuidado, tendo o destaque que merece.
Convém citar que a Constituição de 1988 cometeu grave omissão ao não elevar a catinga e o cerrado à condição de Patrimônio Nacional (§4º do artigo 225). Tal omissão, infelizmente, revela um descaso que precisa ser corrigido o mais rápido possível, até porque o bioma caatinga, não obstante a sua capacidade de regeneração diante de impactos diretos ao seu ambiente, não deixa de ter a sua grande fragilidade ecológica, isso porque não há área mais propícia no Brasil à manifestação do fenômeno da desertificação, que pode ser definido como a degradação de terras em áreas de clima semiárido ou subúmico seco, trazendo como principais consequências a perda do potencial produtivo dos solos, o agravamento do déficit hídrico e a redução da biodiversidade.
Sobre a redução da biodiversidade, Faria (1980, página 212) destaca que o canto lamuriento de Nicandro Nunes da Costa (1829-1918), anotado por Rodrigues de Carvalho no Cancioneiro do Norte, já dizia:
“O mocó, o caitetu
Com grande abundância havia
Tamanduá, preá, cutia,
Veado, paca tatu,
Queixada, muito jacu;
Mas hoje quem for caçá
Só a raposa há de encontrar
E também a desumana,
Da tigre sussuarana,
Que ainda não quis se mudar”.
Ferri (1980), lembrando Euclides da Cunha, em seu clássico livro “Os Sertões”, assim se refere à caatinga: “…A caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na rama espinescente e não o atrai; repulsa-o com folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; desdobra-se-lhes na frente, léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosamente pelo solo, lembrando um bracejar imenso de tortura da floresta agonizante…”.
Em síntese, o ambiente do semiárido brasileiro apresenta-se com uma área plenamente adaptada aos rigores climáticos a que está submetido, uma vez que as plantas e animais criaram mecanismos instintivos e inteligentes para o convívio com as secas cíclicas que ali ocorrem. O homem precisa, e com urgência, aprender com essas outras espécies vivas como melhor interagir com as adversidades naturais presentes na região. Para isso, o conjunto normativo pode contribuir para a indução de ações e medidas de combate a degradações significativas no ecossistema semiárido, seja no domínio das caatingas, seja no domínio dos cerrados ou de qualquer outra formação florestal presentes na área em questão.
Cerca de 80% do território desse bioma já sofreu algum tipo de interferência, e atualmente apenas 1% de sua extensão está protegido como Unidade de Conservação de Proteção Integral, e 36% em unidades de conservação de outras modalidades menos rígidas, previstas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) [3]. Observando-se a extensão do semiárido, e as unidades de conservação incluindo as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), é muito claro que há uma baixa proteção da caatinga brasileira. No que se refere às unidades federais tem-se muito poucas, sendo a maioria de regime de uso sustentável que permite um manejo que permite exploração e interferência do homem. Destaquem-se as palavras de Freire et al (2018, página 11) que asseveram a necessidade de um cuidado especial com esse bioma:
“Desse modo, o Bioma Caatinga, sendo o único exclusivamente brasileiro e, ainda hoje, o menos estudado, revela um quadro social composto por um mosaico diferenciado e complexo. Além disso, a região vem sofrendo um contínuo e sistemático processo de degradação ambiental. O consumo de seus ativos ambientais ao longo do período da ocupação europeia e, mais recentemente, dos variados processos econômicos e sociais que se instalaram na região, e que de alguma forma e intensidade vêm explorando de maneira não sustentável seus limitados recursos naturais, indicam que o Bioma Caatinga está sob forte ameaça quanto à conservação de sua biodiversidade”.
O “Atlas das Caatingas“, documento pioneiro, apresenta uma robusta pesquisa que acende a “luz vermelha” em relação à proteção da caatinga. Freire et al (2018) percorreram 14 unidades de conservação no semiárido e constataram que, mesmo com certo nível de proteção jurídica, esses territórios estão sofrendo diversos níveis de degradação, apesar de existir uma dinâmica otimista de regeneração da fauna e flora. Porém, verificou-se que as unidades de conservação estão abandonadas, sem infraestrutura, com níveis consideráveis de conflitos socioambientais, além das pressões de dinâmicas produtivas que degradam esse ambiente, que já é extremamente vulnerável (SILVA, 2014; SILVA et al, 2016).
Isso chama atenção para fato de que a legislação por si só não é suficiente. Para além disso, é preciso um pacto com a sociedade, incluindo as comunidades que estão no entorno dessa unidades, bem como inserir a caatinga no roteiro de políticas públicas ambientais. Claro que é condição para isso reparar a injustiça que se fez na Constituição Federal de 1988 que não elencou a caatinga como sendo patrimônio nacional (CF, artigo 225, §4º), o que foi no mínimo estranho, uma que se trata do único bioma totalmente nacional. Para além disso, a legislação infraconstitucional reproduziu essa omissão, tanto que o Código Florestal que traz diverso dispositivos voltados à floresta amazônica e cerrado mas nada sobre a caatinga, sem falar que existe lei específica sobre o cerrado e a Mata Atlântica.
Portanto, é patente a frágil proteção legal que tem o bioma caatinga. Como se não bastasse tem-se grandes outros problemas como a progressiva desertificação e a falta de saneamento básico. Quanto ao saneamento, o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) dá conta que apenas 28% da população do nordeste tem acesso à coleta de esgoto e ao tratamento desse (SNIS, 2019). tem-se aí o prenúncio de uma tragédia ambiental, tendo em vista que a maior parte dos municípios do semiárido não possuem disposição final adequada desses resíduos o que significa dizer que são lançados diretamente no meio ambiente sem o tratamento correspondente mínimo.
Assim, o fato é que não se tem muito a comemora neste 28 de abril de 2021, Dia Nacional da Caatinga [4], pois os dados demonstram que ainda é preciso avançar muito na proteção desse frágil bioma, criando uma estrutura de proteção da sua biodiversidade e dos seus recursos naturais de maneira geral, de modo que a política pública ambiental seja levado a cabo. Isso é urgente, tendo em vista a expansão de atividades que degradam o meio ambiente, como a mineração, o desmatamento, a queimada, somado a isso o processo de mudanças climáticas que atingem essa zona brasileira de forma especial e intensa. Como proposta para mitigar os efeitos desse processo de degradação, seguem as seguintes sugestões:
— Mapear e diagnosticar áreas;
— Definir planos de contingência;
— Criar sistema integrado de informações de alerta precoce para ocorrência de secas;
— Criar centros de pesquisa para o desenvolvimento de tecnologias;
— Promover conservação e uso sustentável dos recursos naturais;
— Fomento de práticas sustentáveis;
— Ecosilvicultura;
— Manejo silvipastoril;
— Agricultura de baixo carbono;
— Produção sustentável de carvão vegetal;
— Manejo extrativista de produtos não madeireiros;
— Capacitar técnicos em extensão rural;
— Disseminar práticas de convívio com as secas;
— Construir sistemas de captação de água das chuvas — cisternas;
— Construção de barragens subterrâneas e superficiais;
— Criar parques, jardins botânicos, hortos florestais e bancos de sementes crioulas;
— Criar sistemas de parques e jardins zoológicos e zoobotânicos e centros de conservação e recria de animais;
— Reintrodução de espécies ameaçadas de extinção;
— Estimular agroindústrias e unidades de beneficiamento artesanais e familiares que promovam:
— Produção regional;
— Extrativismo sustentável;
— Tradições culturais locais;
— Reuso de água;
— Revegetação e reflorestamento;
— Irrigação sustentável em áreas susceptíveis à desertificação;
— Mapear áreas sujeitas à salinização e à alcalização dos solos;
— Recuperar solos salinizados ou alcalinizados;
— Praticar a agricultura familiar em bases ambientalmente sustentáveis;
— Sistemas de saneamento individual familiar para a zona rural do semiárido que conta com 11 milhões de habitantes.
— PSA para a preservação da caatinga, notadamente no que diz respeito aos pequenos e médios proprietários;
— Criar um observatório geral da caatinga;
— Desenvolver um programa de educação ambiental específico para a valorização da caatinga;
— Fazer um levantamento das áreas degradadas da caatinga;
— Efetivar a política de combate à desertificação no bioma caatinga;
— Estabelecer um programa de levantamento dos bens culturais imateriais relacionados à caatinga;
— Estabelecer uma sistemática de criação de UCS e áreas protegidas de maneira geral no âmbito da caatinga;
— Estabelecer uma sistemática de criação de bancos genéticos da caatinga nas principais cidades do semiárido nordestino;
— Inserir a caatinga como patrimônio nacional no artigo 225 da cf/88;
— Zoneamento arqueológico da caatinga; e
— Levantamento do patrimônio cultural imobiliário.
* O presente trabalho foi resultado do grupo de estudos do bioma caatinga no evento “Biomas Nacionais”, ocorrido em 21 de outubro de 2020 sob a coordenação geral da Prof. Dra. Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida (PUC/SP e Unisal/SP), da Prof. Dra. Érika Bechara (PUC/Cogeae/SP) e da Prof. Dra. Regina Vera Villas Bôas (PUC/SP e Unisal/SP). O objetivo foi chamar atenção para os diversos ecossistemas existentes no vasto território do país, de forma a destacar também a presença dos biomas que não ocupam um lugar de destaque no cenário nacional ofuscados pela imponência da Amazônia.
Referências bibliográficas
FARIA, Oswaldo Lamartine de. Sertões do Seridó. Brasília: Senado Federal Centro Gráfico, 1980.
FERRI, Mário Guimarães. Vegetação brasileira. Coleção reconquista do Brasil, vol. 26. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980.
FREIRE, N. C. F.; MOURA, D. C.; SILVA, J. B. da; MOURA, A. S. S. de; MELO, J. I. M. de.; PACHECO, A. da P. Atlas das Caatingas: o único bioma exclusivamente brasileiro. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2018.
SILVA, J. I. A. O.; FARIAS, T.; CUNHA, B. P. da; FEITOZA, A. A. “Desumanização” do humano na extração do caulim em Junco do Seridó. Revista Internacional de Direito Ambiental, ano V, n. 15, 2016.
SILVA, J. I. A. O. Conflitos ambientais e conservação da natureza: contradições de um modelo. Campina Grande: EDUFCG, 2014.
SNIS. Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento. Ministério do Desenvolvimento Regional. 25º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2019. Brasília: SNS/MDR, 2020.
[1] Portal da Associação Caatinga. Bioma Caatinga. Disponível em: https://www.acaatinga.org.br/sobre-a-caatinga/?gclid=Cj0KCQjwvYSEBhDjARIsAJMn0lhof-WaL4sYyCvfw1GCDyieidMwLqBZ9KvWbizM2maMGVCbXBNb644aAvJIEALw_wcB. Acesso em 22 de abril de 2021.
[2] FREIRE, N. C. F.; MOURA, D. C.; SILVA, J. B. da; MOURA, A. S. S. de; MELO, J. I. M. de.; PACHECO, A. da P. Atlas das Caatingas: o único bioma exclusivamente brasileiro. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2018.
[3] Lei n° 9.985/2000.
[4] Decreto Federal de 20 de Agosto de 2003 instituiu o dia 28 de abril como o “Dia Nacional da Caatinga”.
*Carlos Sérgio Gurgel da Silva é advogado e professor da UERN, doutor em Direito pela Universidade de Lisboa e mestre em Direito Constitucional pela UFRN.
Inês Virgínia Soares é desembargadora federal no TRF da 3ª Região (SP), doutora em Direito pela PUC-SP, pós-doutora no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), especialista em Direito Sanitário pela UnB e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro’ (editora Forum).
Ivan Lira de Carvalho é juiz federal em Natal (RN), doutor em Direito, professor da UFRN na graduação e no mestrado em Direito.
José Irivaldo Alves Oliveira Silva é advogado e professor da UFCG. É doutor em Ciências Sociais pela UFCG, doutorando em Direito pela UFPB e pós-doutorando em Direito Ambiental pela UFSC.
Talden Farias é advogado, professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, doutor em Recursos Naturais pela UFCG, mestre em Ciências Jurídicas pela UERJ e autor de publicações na área de Direito Ambiental e Urbanístico.
Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 28/04/2021
Edição: Ana A. Alencar
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