Graças à inconsequência tucana, defensores públicos, empoderados por mera portaria, tornaram-se “inquisidores públicos” – autorizados a requisitar perícia da mesma forma que policiais, promotores e juízes
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Em São Paulo, o segundo escalão legisla…
Uma simples portaria do diretor-técnico do IML, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo em 28 de novembro último, expressa o transtorno de personalidade que contamina governo e gestores na Justiça e Segurança Pública paulista.
Decididamente, na República dos Bananas Assassinos (*1), o funcionalismo navega à deriva e os que se arrogam em sua sanha corporativista gritam e…recebem o que querem. O governo segue pela gravidade, sem qualquer unidade ou comando.
Nesse caos, qualquer circular de esquina tem o condão de criar desvios de função e confundir os papéis sem qualquer preocupação com limitações legais.
É o caso do IML (Instituto Médico Legal), que por portaria de seu diretor, autorizou a Defensoria Pública Estadual solicitar exames periciais diretamente – como se a Defensoria estivesse autorizada legalmente a agir como órgão policial, judiciário ou persecutório.
A prerrogativa, até a edição da portaria, era exclusiva de Polícia Civil, Polícia Militar (em inquéritos policiais militares), Ministério Público Estadual e Justiça.
Os defensores, como qualquer outro segmento civil, dependiam de autorização judicial. Precisavam encaminhar pedidos de exames periciais ao magistrado competente que, por sua vez, analisaria a legalidade do pedido e deferiria a solicitação.
Essa pertinência não é mera liberalidade – tem uma função de controle importantíssima, pois os orgãos de investigação, persecução e julgamento atuam sob estrito controle legal enquanto a advocacia privada – extensão da cidadania, e a advocacia pública (procuradores do estado, autárquicos e defensoria), por possuírem prerrogativa postulatória, inventiva e orgânica, demandam filtro jurisdicional.
No entanto, Teoria de Estado não é o forte do governo do estado…
“Qual é grande novidade? A Defensoria só fazia pedidos postulando ao juízo. Agora, não. A portaria estabeleceu a possibilidade de ela solicitar diretamente ao IC [Instituto de Criminalística] ou ao IML o laudo. A grande mudança é essa aí”, afirmou esfuziante o secretário estadual da Segurança, Mágino Alves Barbosa Filho, que parece desconhecer o que seja “defensoria”… e sob o qual está subordinado o Instituto que baixou a portaria.
Dentre os documentos que poderão ser diretamente requisitados ao IML, doravante, estão incluídos exames de corpo delito, toxicológicos e laudos antropológicos.
A menção ao IC, feita pelo Secretário, contudo, extravazou o âmbito do IML. Demonstrou que a Secretaria está liberando os serviços da Polícia Científica para a defensoria.
Uma autorização que muda a natureza do autorizado
O governo informa, no entanto que a mudança não deve atingir a condução dos inquéritos pela Polícia Civil. Uma enorme obviedade pois, a condução de prova material obtida em fase inquisitorial está adstrita ao inquérito policial. Nem promotores nem defensores podem produzir provas em procedimentos inquisitoriais de natureza civil, por estar esta prova adstrita ao momento do chamado “contraditório”, possível na fase judicial.
Porém, a defensoria não preside ou promove “inquéritos”, sejam eles civis ou penais… No entanto, a portaria não impõe restrições aos pedidos.
A cúpula da Defensoria Pública, “empoderada” pela norma administrativa, disse considerar a mudança “um avanço importante”, que deverá beneficiar especialmente os atendimentos feitos em casos de mulheres vítimas de violência doméstica. Laudos solicitados poderão subsidiar pedidos junto às Varas de Violência Doméstica de medidas protetivas – “que podem ser feitos sem a necessidade de um boletim de registro policial” (*2).
Já no âmbito dos processos judiciais, diz a Defensoria, os laudos produzidos a pedido dela serão levados à apreciação da Justiça, garantindo a produção de provas “a todas as partes dos processos”. “É importante destacar que o atendimento prestado pela Defensoria Pública destina-se a pessoas que não possuem condições financeiras para contratar advogados –e muito menos peritos privados”, diz nota da Defensoria.
Impressionante, no “conjunto da obra”, o descuido absoluto para com a legalidade. Afinal, poderia uma simples portaria setorial e um órgão, autorizar outro organismo, não jurisdicionado pela mesma secretaria ou autorizado legalmente, a requisitar diretamente peças processualmente submetidas a controle judiciário?
A confusão é imperdoável. O presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos, Antonio Maffezoli, disse considerar “super importante” a medida por reconhecer a defensoria “como instituição oficial na defesa dos direitos de pessoas carentes”. Com efeito, poderia uma portaria do IML conferir competência legal ou instituir a defensoria como “instituição oficial na defesa dos direitos das pessoas carentes”?
Até mesmo a mídia ficou confusa. Em todos os sites de notícias e jornais, não há uma linha sequer sobre o número e natureza do marco legal autorizativo que beneficia a defensoria. Este subscritor não encontrou referência nas publicações oficiais, parando a busca na Portaria do IML – gerador do conflito.
Em verdade, o imbróglio normativo ganha ares hamletianos. Ser ou não ser… eis a questão.
Freud e Shakespeare explicam
O governo Alckmin, na sua sanha de agradar uns e outros, para desagradar todo mundo, cedeu à tentação totalizante de uma defensoria arrogante desde o nascedouro.
Assim, por ser notoriamente um líder que cede a quem grita… por omissão, por ausência de atitude, por falta de iniciativa legislativa ou mesmo por não querer se envolver em um necessário decreto, Alckmin permitiu que um seu subordinado de segundo escalão, amparado por um secretário de estado estranho à pasta da Justiça, de uma penada, transformasse um organismo advocatício em órgão persecutor…
O risco de desestabilização institucional é grande, e contribui para o esforço ideológico de quem aposta no caos. Notoriamente aparelhada por esquerdistas delirantes, a defensoria, infelizmente, tornou-se desde o nascedouro um instrumento de obstrução à “repressão policial”, à “justiça insensível à causa dos sem teto e sem terra” e “à omissão do Estado em atender às demandas da sociedade”… obviamente para muito além das injustiças.
Esses arroubos esquerdizoides sempre foram relevados em face da importante atividade do organismo, efetivamente útil ao atendimento da população carente, de minorias e de direitos difusos e individuais homogêneos.
No entanto, agora, graças à inconsequência tucana, os “defensores”, empoderados, tornaram-se “inquisidores”. Poderão “inquirir” e requisitar perícia, e por óbvio transformarão seus reclamos em peças persecutórias. Ou seja, o Estado, que já conta com três órgãos jusburocráticos de “controle” para cada um de execução material…agora terá um quarto a controlá-lo.
Revela o imbróglio um transtorno de personalidade institucional tipicamente freudiano. Transcende a política para remeter o governo Alckmin ao divã do psicanalista.
Por outro lado, o descompasso de armas propiciou uma goleada de 4×1, da burocracia contra o cidadão – e tudo em nome da “cidadania”.
Onde está a OAB?
O mais engraçado é a relação dessa categoria dos defensores públicos com a OAB.
Reféns da ignorância do seu papel na estrutura do Estado, vítimas do dilema hamletiano de defender a causa da cidadania perante o Estado ou defender suas razões ideológicas pelo Estado contra ele mesmo, os defensores públicos especializaram-se em questionar os convenios com a Ordem dos Advogados, que, ao que tudo indica, consideram uma instituição “menor”…
A confusão é compreensível visto a arrogância institucionalizada. Desde quando passaram a constituir organismo funcional, os defensores públicos entenderam que a advocacia “nas causas de interesse público” seria monopólio da Defensoria.
Há quem, na defensoria, alegue sequer ser preciso ser inscrito na OAB para se habilitar a ser defensor público.
Agora, com a norma administrativa obtida no segundo escalão, os defensores avançam para além da organicidade da postulação. Produzirão perícias sem filtro jurisdicional, o que possibilitará organizar investigações de caráter persecutório, “contra” alvos específicos. Suas ações, portanto, poderão demandar, com certeza, defensores de verdade, para patrocinar a causa de seus “investigados”.
Ou seja, doravante… graças a portarias e declarações de autoridades do governo Alckmin, a defensoria deixa de ser atividade advocatícia.
Claro que esse show de equívocos passa ao largo da Ordem dos Advogados do Brasil. não por não ser algo que deva importar à entidade guardiã do Estado de Direito e do Direito de Defesa no Brasil… mas por encontrar-se deteriorada administrativamente, acéfala politicamente e vazia intelectualmente (como de resto as demais instituições da República).
O que hoje está na direção da entidade dos advogados brasileiros, a despeito de méritos pessoais, não reúne condições para entender o alcance pernicioso da medida governamental. Tanto isso é verdade que a direção do organismo advocatício, em São Paulo, entendeu de, oportunisticamente, encaminhar um ofício ao IML requerendo também para os advogados as mesmas benesses procedimentais concedidas à defensoria pública.
A OAB pagou o mico de ver seu pedido “indeferido” por um diretor de segundo escalão do governo e fez por merecer a famosa frase do Compadre Whashington: “Sabe de nada, inocente!”
Fosse a advocacia brasileira, hoje, liderada por gente que preza as calças, gravatas, saias e taileurs veste… e imediatamente trataria de adotar as medidas cabíveis para fazer cessar o descontrole judiciário sobre as atividades da defensoria ou, então, cassar o registro na OAB dos “defensores” paulistas – visto obviamente terem estes se transformado em persecutores… ainda que impropriamente, por mera portaria autorizativa…
“Encosto”
E não se venha dizer que a autorização concedida não desnatura o órgão.
Patente que a possibilidade de buscar a produção de provas por via administrativa, sem autorização judicial, confere enorme desproporção à atividade da defensoria face à advocacia e a equipara aos órgãos de investigação e persecução – e tudo por ato normativo de caráter regulatório, sem autorização legislativa ou de regramento adstrito ao organismo beneficiado. Um desvio de função inadmissível no Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, a Segurança Pública paulista, ou o que resta dela no estado, bem como o Ministério Público, ganharam de graça um “encosto” nocivo às suas atividades cotidianas.
A defensoria pública fará uso das mesmas estruturas dos órgãos de investigação e persecução para alimentar eventuais pretensões ideocráticas, contra-investigativas ou voltadas à defesa de direitos homogêneos, sem qualquer filtro judiciário..
Conclusão
O governo do estado, que já não conseguia reprimir baile funk sem ter um defensor no cangote do policial, agora não terminará uma execução de ato sequer, sem um arremedo de investigação ou contraperícia obtida na mesma fonte, isso somado às demais rusgas e conflitos já existentes.
Parabéns ao Governo Paulista. Criou (mais) um monstro.
Notas:
(*1) Pedro, Antonio Fernando Pinheiro: “A República dos Bananas Assassinos”, in The EAgle View – Blog, in http://www.theeagleview.com.br/2014/01/a-republica-dos-bananas-assassinos.html, visto em 18/12/2017.
(*2) Delegados – Portal Nacional, https://www.delegados.com.br/noticia/defensor-publico-agora-tem-poder-de-policia-e-pode-pedir-pericia
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Artigo originalmente publicado em The Eagle View