Por Marcos Buckeridge*
Se há algo que o Brasil domina em nível mundial é a produção de energias renováveis. Somos campeões porque desenvolvemos políticas públicas de sucesso na produção de energia hidroelétrica e do etanol, cujos frutos vêm sendo colhidos desde meados do século 20. Na área hidroelétrica, o início foi na década de 1920. O Brasil soube aproveitar seus cursos d’água, atingindo um total de 148 usinas hidroelétricas ativas em vários Estados e com perspectiva de atingir 160 nos próximos anos. No caso do etanol de cana, a história também começa nos anos de 1920 no Brasil e, em 1931, o governo brasileiro adotou a política (através de lei) de acréscimo de 5% de álcool à gasolina. Após uma tentativa frustrada nas décadas de 1980 e 1990 de produzir automóveis movidos exclusivamente a álcool – que não eram viáveis, pois na entressafra não havia etanol suficiente para todos – foi somente em 2003 que surgiram os chamados carros flex, que trouxeram a estabilidade no fornecimento de combustíveis ao País.
Essa capacidade demonstrada de produzir energias renováveis em nosso país deriva tanto de uma vocação como de episódios de necessidade de resposta a adversidades econômicas. Nos últimos 122 anos fomos teimosos e insistimos na produção de açúcar a partir de uma planta trazida pelos portugueses e que se deu muito bem por aqui. A produção de cana no Brasil aumentou drasticamente no século 20 e, ao entrarmos na era do etanol – a partir da década de 1980 –, a produção do biocombustível viu um aumento exponencial, principalmente na década de 2000.
A história do etanol no Brasil pode ser dividida em duas fases. A primeira vai de 1859 a 2000, inicialmente com o apoio do governo imperial e em seguida com a fundação do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA, em 1931). A partir daí, várias iniciativas relacionadas à melhoria da produção de cana foram estabelecidas, passando pela criação da Copersucar (1969), o estabelecimento do plano Proálcool e culminando com a fundação da União da Indústria da Cana de Açúcar (Unica, em 1997). Nesta primeira fase, o comando do processo foi inicialmente do governo, e foi gradativamente sendo dividido com os agricultores. Nesse período, ocorreu algo extraordinário que foi a consolidação das usinas produtoras de etanol através da fermentação do açúcar e a destilação do etanol. Não foi nada trivial conseguir fazer com que as leveduras se tornassem capazes de fermentar o caldo de açúcar da cana e produzir etanol. Foi necessário desenvolver cepas e adaptá-las à produção de etanol em um sistema aberto (sem esterilização) sem que houvesse contaminação com outros microrganismos. A atuação incrível dos melhoristas de plantas, que trabalharam duro para obter variedades de cana cada vez mais produtivas, e dos desenvolvedores de cepas de leveduras, bem como dos engenheiros brasileiros capazes de desenhar as usinas, levou o Brasil a atingir um patamar superior a qualquer outro país no mundo na produção de etanol. Ao mesmo tempo, a indústria automobilística promoveu adaptações (que já haviam sido pesquisadas nos Estados Unidos) e tudo isso em conjunto levou a uma confluência de tecnologias que possibilitaram não somente a existência do carro flex logo na entrada do século 21, mas também a logística e distribuição do etanol para todo o País. Esta foi uma façanha equivalente a qualquer grande revolução científica e tecnológica no mundo.
Se na primeira fase houve um impulso importante, dado pelas duas crises do petróleo nas décadas de 1970 e 1980, o mundo entrava nos anos 2000 com um problema ainda maior, que era a ameaça das mudanças climáticas globais e uma perspectiva de finitude do petróleo. Em 2005, quando já rodávamos com carros flex por aqui, o então presidente americano George W. Bush anunciava que o mundo estava “viciado” em petróleo e que o Brasil era o exemplo a seguir. Era preciso desenvolver o então chamado etanol celulósico, uma forma de produzir mais etanol usando o bagaço de cana e não somente o açúcar comum. Entrávamos então na segunda fase do etanol no Brasil, na qual a comunidade científica se agitou e se organizou com apoio dos governos, no sentido de tentar aumentar a produção. Vimos que, apesar da enorme evolução durante o século 20, sabíamos muito pouco sobre a fisiologia da cana e sobre a composição do bagaço. Não tínhamos ideia clara do que fazer para aumentar a produção (a não ser, claro, o melhoramento genético, que é demorado no caso da cana) ou como extrair os açúcares do bagaço (das paredes celulares das células da cana). Estávamos em plena era dos genomas e o genoma da cana se mostrava como uma barreira monumental para os biólogos moleculares, já que há entre oito e 12 cópias do genoma em cada célula da cana e sequenciá-lo, ainda hoje, é uma tarefa árdua.
Teimosa, a comunidade científica se organizou, teve apoio do governo e hoje podemos dizer que avançamos significativamente na segunda fase da produção de etanol de cana no Brasil. Paralelamente, e de forma independente e desconectada com o que ocorria nos laboratórios de pesquisa, empresas também iniciaram suas próprias buscas para o chamado etanol de segunda geração. Nesta segunda fase, passamos a chamar o etanol do século 20, produzido a partir da sacarose (açúcar comum) que se acumula em grande quantidade no colmo (“caule”) da cana, de etanol 1G (de primeira geração), enquanto o etanol a partir das paredes celulares do bagaço e da palha da cana foi chamado de 2G (de segunda geração). O desenvolvimento alcançado nos 15 anos após 2005 foi notável. Em apenas 17 anos, a ciência produzida por centenas de cientistas da cana e do etanol nos levou a poder completar o nosso tanque de etanol com até 1% de etanol 2G. Ainda é pouco, mas tende a crescer no Brasil.
Uma parte significativa da missão de fazer descobertas fundamentais foi completada e, nesse momento, é importante baixar os custos para que as empresas produtoras de biocombustíveis sejam capazes de fabricar o etanol 2G de forma economicamente viável. Poderíamos ter ido mais rápido, caso a conexão entre cientistas, governo e empresas tivesse sido mais intensa, mas por várias razões isso não ocorreu de forma adequada.
Em 2022 estamos entrando na terceira fase, que vai além do etanol. Trabalhamos ativamente para melhorar a produtividade da cana e a hidrólise (degradação dos polímeros de açúcares das paredes celulares da cana). Temos cientistas trabalhando intensamente na chamada “reforma do etanol”, que é um processo de retirada dos átomos de hidrogênio do etanol com eficiência e usar esse hidrogênio para a produção de eletricidade. Com isso, o Brasil novamente dá um salto e avança à frente do mundo nas energias renováveis. Abrimos, nesta nova fase, o caminho para o desenvolvimento de veículos elétricos que acoplam os benefícios dos biocombustíveis sustentáveis, como etanol, e a eletrificação do transporte. Isso vislumbra benefícios como a diminuição significativa da poluição sonora e de outros tipos de emissões que os veículos com motores a combustão produzem.
Na USP, daremos a largada com a primeira estação de reforma de etanol que irá alimentar ônibus elétricos movidos a hidrogênio. Dessa vez, no entanto, estamos iniciando o processo de forma conectada à indústria e isto tem potencial de abreviar o tempo de chegada da tecnologia ao mercado, caso sua viabilidade seja comprovada nos laboratórios e demonstrada na indústria.
A história do etanol biocombustível no Brasil traz inúmeras lições. A mais importante me parece ser o atraso do processo de inovação causado pela desconexão entre governo, ciência e indústria. Portanto, quanto mais fomentarmos essas conexões, mais rapidamente chegaremos à implantação de novas tecnologias, concluindo com sucesso o processo de inovação. Num artigo recente, proponho uma estratégia de inovação em políticas públicas. Proponho que uma das formas de evitar atrasos seja cuidar das conexões entre os atores do sistema. Não creio que chegamos a falhar em quaisquer das duas fases do etanol de cana, já que a nossa teimosia nos manteve em curso. Agora que já sabemos a receita para a terceira fase, esperamos que o Brasil, com o hidrogênio de etanol, continue a se manter no pódio das energias renováveis.
*Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP
Fonte: Jornal USP
Publicação Ambiente Legal, 03/07/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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