Voltando ao passado, Dória pretende “taxizar” o serviço “uberizado de transporte particular
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
João Doria (PSDB), aquele que não era político e se pretendia um gestor moderno, parece ter voltado aos tempos da política e da liteira romana. O prefeito quer que os carros de aplicativos de transporte individual, como Uber e Cabify, se assemelhem aos velhos taxis, tenham identidade visual para circular pelas ruas de São Paulo e motoristas submetidos a autorizações e jurisdição fiscalista da prefeitura, tal qual o tradicional sistema de transporte por taxímetro…
Ludismo paulistano
Sem dúvida é um retrocesso que visa atingir ainda mais o bolso do cidadão contribuinte. Como todo burocrata sem visão, o “prefeito-gestor” parece não entender a razão econômica do aplicativo. Em um país atingido pela depressão econômica, mal gerenciado e com custo de vida elevado, é natural que o cidadão busque refúgio em alternativas lícitas oferecidas pelo mercado e recuse soluções burocratizadas e caras, oferecidas por um Estado que mal consegue controlar o território.
No entanto, o Brasil é um país atordoado por conflitos paradoxais. Possui uma Administração Pública desprovida de senso comum e inflacionada por gestores pouco inteligentes, cujo comportamento esbarra no anarcoprimitivismo – um “neoludismo” contra tudo que revele inteligência e fuja ao controle fiscalista da burocracia brasileira.
O ludismo (ou luddismo), foi um movimento contra a mecanização do trabalho proporcionado pelo advento da Revolução Industrial. Adaptado aos dias de hoje, o termo ludita (do inglês luddite) identifica todo aquele retrógrado que se opõe à modernização das estruturas e enxerga o demônio em qualquer nova tecnologia.
A ação retrógrada da prefeitura se enquadra nesta triste realidade. Revela, também, desconhecimento das razões do sucesso do transporte organizado pelos aplicativos.
O sistema “uberizado” de transporte privado
O Uber é uma empresa multinacional americana de transporte privado urbano baseado em tecnologia disruptiva em rede. Através de um aplicativo E-hailing, o UBER oferece um serviço que aparenta ser semelhante ao táxi tradicional, porém está integrado a uma relação contratual privatizada. Ele estabelece um serviço de motorista particula “on demand” e, também, parte do princípio da solidariedade entre particulares conhecido popularmente como “carona remunerada”.
Para ser um motorista da Uber, bastaria ao interessado cadastrar-se seguindo uma lista de exigências de segurança já dispostas pelos marcos legais de controle de trânsito – tais como habilitação profissional que permita transporte de carga e passageiros, e carro novo, regular e em condições de segurança, além de bons antecedentes – tudo aquilo que seria exigido se fosse contratado como motorista particular ou de empresa. A manutenção do prestador no serviço no sistema irá depender justamente da opinião emitida pelos usuários privados, que o classificarão a cada viagem – um sistema muito mais eficiente que qualquer outro mantido pela paquidérmica fiscalização pública.
Outro aspecto importante do sistema é que os motoristas Uber, a princípio, não cobram diretamente pela condução. Eles recebem uma remuneração por meio do operador do sistema, que observa na formação de seus preços a relação de oferta de motoristas conforme a demanda dos usuários e duração e distância da corrida – previamente calculados e apresentados ao usuário antes de contratar pelo aplicativo. Esse detalhe importante permite uma alocação mais inteligente e econômica do transporte, bem como maior segurança a ambas as partes envolvidas. Essa alocação inteligente forma a base dos lucros do UBER.
Trata-se, portanto, não de um “serviço público de transporte”, mas sim de um contrato lícito entre particulares para alocação de um motorista por demanda, efetuado por meio de um aplicativo.
Se o UBER deriva da junção entre o contrato particular de motorista e a carona remunerada, o táxi ter origem completamente diferente.
A natureza pública do táxi
O táxi, propriamente dito, apareceu historicamente quando foram aplicadas taxas à utilização do transporte individualizado disponibilizado publicamente, através de taxímetros.
Em verdade, o serviço de transporte numa grande cidade a qualquer pessoa que o solicite é quase tão antigo como a civilização. O primeiro serviço desse gênero apareceu com a invenção do riquexó (ou riquixá) — carro de duas rodas puxado por um só homem, na ásia. Embora em pouca abundância, também existia nas principais cidades ocidentais da Antiguidade, mas era exclusivo das elites, que disponibilizavam escravos para puxar esses carros.
Nas ruas da Roma Antiga, circulavam liteiras transportadas por dois ou quatro escravos que levavam quem quer que os solicitasse mediante remuneração previamente estipulada pelo amo desses escravos. As liteiras atendiam a uma regra urbanística romana: apesar de já existirem veículos com rodas, os “táxis” romanos não os utilizavam no interior das cidades, pois as movimentadas vias de comunicação da metrópole eram destinadas aos pedestres. A natureza desse serviço já era regulada pelo governo, tanto que Júlio Cesar, ao observar o congestionamento ocasionado pelas liteiras nas vias estreitas de pedestres, determinou que se fizesse um “rodízio” entre os prestadores do serviço durante a semana (ou seja, nem rodízio é inovação…).
O aparelho taxímetro, no entanto, surgiu em 1897 na cidade alemã de Stuttgart, quando Freidrich Greiner abriu uma empresa cujos carros estavam equipados com um sistema inovador de cobrança calculada pela distância efetivamente percorrida e tempo dispendido. O sistema, então, espalhou-se pelo mundo até que em 1907, em Paris, todos os carros de aluguel passaram a ter um taxímetro, por lei. Antes da Primeira Guerra Mundial já todas as grandes cidades europeias e americanas tinham serviço de táxis legais e pintados com esquemas de cores diferentes. Desde então as alterações foram poucas, circunscritas aos aparelhos instalados nos carros, tais como um rádio, ou ar condicionado.
O serviço de táxi, portanto, sempre foi disponibilizado publicamente, conforme estrutura legal instituída pela administração da cidade.
O taxista tradicionalmente deve atender a quem o solicite nas vias públicas ou o chame para local predeterminado. Não há voluntariedade entre particulares – pressuposto do serviço disponibilizado via aplicativo.
O lobby do atraso
Porém, como nos tempos do “yellow cab”, a prefeitura paulista adota o neoludismo e cede ao lobby dos taxistas. Dória articula uma jurássica “regulamentação da atividade” cujo pretexto é tocante: obrigar os veículos a terem placa do Estado de São Paulo, usarem um “selo de segurança”, devendo os motoristas a fazer curso específico e direção defensiva e georreferenciamento. O objetivo real, no entanto, é cobrar das empresas e motoristas um pagamento retroativo de créditos por quilômetro rodado bem como obrigar os carros de aplicativo a ter “uma identidade visual”.
Ou seja, com a regra pretendida pela prefeitura, tanto faz o veículo ser UBER, como ser uma liteira romana. Da “uberização” do transporte particular, tornaremos todos à “taxização” da logística de passageiros.
O charme do UBER é justamente a discrição e a relação privada entre passageiro e motorista. Mas os burocratas paulistanos não entenderam a diferença. Interpretam o motorista do UBER como um serviçal preso a uma engrenagem de concessão… e o passageiro que o contrata como um hipossuficiente qualquer.
Como novos “Cesars”, os administradores municipais pretendem controlar os contratos de condução particular de motoristas como os romanos controlavam as liteiras. Para buscar uma solução mais tupiniquim, seria algo como pretender que a corôa vistoriasse as liteiras que transportavam dignatários, sinhôs e sinhás pelas ruas e estradas dos séculos XVIII e XIX… habilitante e emplacando, naturalmente, os escravos.
A falta de compreensão do setor de taxistas para com o serviço gerenciado pelo aplicativo advém, por outro lado, da percepção da obsolescência do sistema em que a atividade do taxi está inserido. De fato, a maior dinâmica no acesso ao serviço uberizado é mais adequada ao mercado e às demandas urbanas atuais, que o complexo e burocrático esquema dos taxis permissionários. Porém, essa adequação entre atividades é orgânica e irá, em um futuro próximo, estabilizar, permitindo a convivência harmônica entre taxistas e motoristas particulares gerenciados pelo aplicativo.
A inovação da mesmice
As propostas de Dória para a “taxização” do UBER… foram apresentadas pelo secretário municipal de Mobilidade e Transportes, Sérgio Avelleda, antigo dirigente do metrô… que participou de uma audiência pública na Câmara Municipal, no primeiro semestre deste ano, para discutir a regulamentação dos aplicativos de transporte…com o lobby dos taxistas.
A categoria dos taxistas, ao que tudo indica, ainda está submetida a uma liderança que não saiu do século XIX, e no entanto pretende se eternizar como o “Reich dos mil anos”… destruindo qualquer inovação do século XXI.
Para mostrar músculos, os taxistas interditaram duas vias do Viaduto Jacareí, na frente da Câmara Municipal. Cerca de 1,2 mil pessoas compareceram no local – as galerias do plenário ficaram lotadas, mas a maior parte do público acompanhou a audiência por um telão instalado no térreo. A pressão da vanguarda do atraso “sensibilizou” os corajosos dirigentes paulistanos…
A balbúrdia remeteu aos tempos do prefeito Haddad.
De fato, o transporte individual por meio de aplicativos foi autorizado, via decreto, pela gestão Fernando Haddad (PT), em maio de 2016. Pontos específicos sobre qualidade e segurança do serviço, no entanto, ainda precisavam de regulamentação. Esse foi o pretexto encontrado pela atual administração para “avançar” em direção ao passado.
“Nós estamos criando especificações que não haviam sido criadas”, disse o secretário de Dória. “A ideia é permitir ao usuário reconhecer que aquele carro é de aplicativo e está devidamente credenciado, assim como o motorista”, afirmou Avelleda. Ou seja, disse tudo o que não é o UBER…
Lógico que o secretário especialista em transportes subterrâneos desconhece a frase de Bismark – “os povos inteligentes aprendem com a experiência alheia, os medíocres com a própria e os ineptos…não aprendem nunca.”
Em favor do atraso há, ainda, outro projeto de lei, a ser submetido à votação, do vereador Adilson Amadeu (PTB), representante dos despachantes (?) paulistas e apoiador da categoria dos taxistas, que obriga os veículos de aplicativos a adotar placa vermelha.
Avelleda informou que “os detalhes não estão definidos, nós apresentamos algumas diretrizes e ouvimos uma série de contribuições ( como a que inviabiliza o modelo de alguns motoristas de aplicativo que usam veículos de locadoras e têm placas de outros locais). Para Avelleda, a mudança é uma maneira de possibilitar que “os impostos fiquem aqui”.
“O que a gente quer é que o carro esteja licenciado em São Paulo e que haja algum tipo de autorização do proprietário para o uso dessa atividade”, confessou o dirigente paulistano.
Na audiência para os taxistas, o secretário disse que será obrigatório seguro para os passageiros do Uber e Cabfy. Os condutores também serão “cadastrados na Prefeitura”, vão precisar ter carteira de habitação com informação de que “exerce serviço remunerado” e apresentar certidão de antecedente criminal. Haverá, ainda, “inspeção obrigatória para os veículos”. Além disso, os condutores vão ter de passar por curso de “direção defensiva” e de noções de “georreferenciamento”,
Segundo o secretário. “Um motorista não pode ficar refém do GPS para andar na cidade”, afirmou Avelleda. Ao cumprir todos os requisitos, os carros receberão um “selo de segurança”. O detalhe do GPS chega mesmo a impressionar… tamanha a obsolescência contida no raciocínio…
Cobrança retroativa
Segundo o secretário, a Prefeitura também vai cobrar, de forma retroativa, os créditos para que os veículos de aplicativos circulem na cidade. O modelo de cobrança foi definido no decreto da gestão anterior, mas nunca chegou a ser posto em prática por causa de uma decisão judicial, revogada no fim do ano passado.
A Prefeitura aposta que o modelo também vai servir para “equilibrar” a concorrência entre os aplicativo e os táxis. “A gente acha que essa regulamentação pode vir a funcionar para criar uma racionalidade na disputa do espaço”, afirmou Avelleda. Questionado como seria a cobrança retroativa dos carros que circulam há um ano sem comprar crédito, uma vez que a gestão Doria diz não saber quantos são, Avelleda afirmou que as empresas vão informar qual foi a rodagem no período. “O cálculo não é feito por quantidade de carros, mas por quantidade de quilômetro percorrido”, disse. “(A informação vai ser) auditada por uma empresa de confiança e sujeita a auditoria da Prefeitura.”
Com efeito, o secretário e seus assessores não entenderam bulhufas das diferenças abissais entre direitos e deveres dos taxistas ante a administração que os licencia e a natureza livre, voluntária, indene de dedicação funcional-administrativa, que envolve a atividade do motorista filiado ao sistema de aplicativos.
Cinismo a toda prova
Em nota, o Uber afirmou que “vai seguir trabalhando com a Prefeitura de São Paulo para a criação de regulações modernas e positivas para a cidade e para as pessoas”.Já a Cabify disse que a discussão sobre a cobrança retroativa é “positiva”. É uma exigência trazida pelo Decreto desde o seu lançamento”, afirmou, em nota assinada pelo diretor-geral no Brasil, Daniel Velazco-Bedoya.
“A Cabify, primeira empresa regulamentada na cidade, já faz os pagamentos de forma regular desde o seu primeiro dia de operação.”
Enfim, com a “taxização” do uber, estaremos em breve “uberizando” as liteiras, para permanecer no atraso em que nosso Poder Público chafurda… atolado.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.