Por Marcio de Almeida Bueno
“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi / De mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho / E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho / Nada do que não era antes quando não somos mutantes” – Caetano Veloso, em ‘Sampa’
Quem transita por entre os defensores dos animais – do que cuida de cachorro abandonado ao ‘vegano-mais-que-os-outros’ – já percebeu como, algumas vezes, a meta final de um ou outro fica fora de foco. Se o objetivo é melhorar, resolver, desembaraçar, conscientizar sobre a condição dos animais não-humanos neste planeta, há quem se perca em algum ponto do caminho – e azar dos animais. Vão para segundo plano, mesmo que o agente não reconheça. Questões pessoais, e não falo de enriquecimento ou picaretagem, dão o ritmo não a uma ação específica, mas à atuação dentro dessa causa.
Se tem frustrações, nós, joga-se de cabeça em uma luta que, em rápida análise, precisa é de gente com cabeça fria, fresca e bom-senso para agir. Se está com relacionamento firme, some, se leva o famoso pé-na-bunda, corre de volta ao ativismo, esperando encontrar cimento e tijolos para tapar o buraco de si. Os animais, já vítimas de um sistema cruel, seguem sendo os joguetes de mais uma determinação humana, com boas ou más intenções.
Vemos então uma interminável cascata de rompimentos entre pessoas, concorrência entre siglas, fofoca, desdém pelo alheio e tudo mais que enfraquece esta batalha que, de começo, já é desfavorável para quem está deste lado. Se tem problemas em casa, joga-se como um piloto kamikaze na causa animal, mas… quanto de discernimento há em uma pessoa assim? Falta-lhe o senso crítico, a dose diária de Semancol – devidamente substituída por tarja preta, cigarro ou qualquer chupeta que esteja à mão – e também a isenção para tratar de temas delicados, e perceber a melhor maneira de agir.
Não pretendo que todos os envolvidos na defesa animal sejam zen, ponderados, impassíveis e ‘ecce homo’ – mas que bom que fossem. Reconhecer os valores do outro, e não se incomodar com as diferenças, deveria ser o marco zero para o antiespecista.
O ativismo não pode ser uma sessão de drenagem linfática, que o cliente paga para, uma hora depois, sair de lá mais aliviado. Não é massagem, sessão de exorcismo, ‘clubinho’, compensação nem psicoterapia. O acúmulo doentio de cães e gatos, por exemplo, denota uma grande confusão interna na vida desse ‘protetor’, que acha que um animal confinado, apertado, estressado e, em última análise, totalmente à mercê de seu humano, está a salvo da perigosa liberdade das ruas. Não falo de animais doentes, atropelados, inválidos ou em situação tal que dependam, lamentavelmente, da mão humana. Torço para que seja uma mão abnegada, e não de quem está ali pelo aparafusamento de suas neuroses não-resolvidas. Quem viu o filme Louca Obsessão, com a enfermeira Kathy Bates ‘tratando e cuidando’ de seu paciente amado, entenderá bem o paralelo que pretendo fazer.
E a disputa entre pessoas resulta em um torneio sem vencedores, só de derrotados. Redes sociais, na Internet e fora dela, como sinuca de raivas, rancores, cinismo, falsidade, arrogância e/ou falsa ostentação de superioridade. Quem consegue se manter imune às sabotagenzinhas, ao diz-que-diz, ao veneninho destilado nas rodas de comadres, vai tocar seu caminho sozinho ou aprende a viver como alvo da inveja.
Mas o objetivo final sempre foram os animais, e muitos desses que perdem o fio da meada estão fazendo, do caminho, o objetivo. Vale o fazer em si, e não o efeito – pois isso implicaria em autocrítica e mesmo na reavalização de resultados de cada ação feita. E a conclusão pode retirá-los da zona de conforto, colocando-os na prancha de salto olímpico – ‘agora é necessário dar um salto para frente’. Para quem tem TOC ou se acomodou no enxuga-gelo, é uma idéia aterradora.
Ou para quem não tem maiores talentos, e optou por minimizar as qualidades do outro – seja fotografar, produzir um documentário, escrever, falar em público, lançar uma publicação, bolar materiais, fazer lobby, usar seu carisma ou poder de convencimento, encarar a vida política, etc. A inveja é uma meta.
Paul Watson fala sobre os diferentes tipos de ativistas em seu livro ‘Earthforce – Um guia de estratégia para o guerreiro da Terra’. Cada um ataca de um lado, mas, para muitos cabeças-duras, só vale aquilo onde seu umbigo encosta.
Não cabe ao socorrista, ao ativista, ao voluntário, ao interessado, ter a vaidade de escolher sua rota, ligar o piloto automático e colocar uma venda nos olhos, um tampão nos ouvidos e um anestésico no cérebro. É necessário checar qual o instrumento mais adequado àquele momento, como um cirurgião social, e reconhecer que no instante seguinte esse instrumento pode ser ineficaz, independente da força que se aplica. E não invejar, corroendo-se nas entranhas, aquele que percebe as sutilezas do mundo e adapta sua ferramenta para um melhor agir, minuto a minuto.
Enquanto os animais não-humanos estiverem em situação de desvantagem, presos, explorados, ludibriados, precisarão de ajuda efetiva, do panfleto ao proejto de lei, do potinho d’água ao texto conscientizador. Mas não têm tempo a perder com quem está patinando, esperneando, e deixando que os conflitos internos lhe escapem pela boca, como um Alien que se mostra nas entrelinhas.
Fonte: anda
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