O Brasil sobreviverá ao coronavírus e aos idiotas, graças ao Sistema Único de Saúde e suas estruturas de gestão
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Minha infância e juventude foi marcada pela proximidade com uma jovem amiga de família , oriunda de Goiás, uma das primeiras administradoras públicas formadas pela FGV, dirigente do planejamento no Governo Mauro Borges e um dos quadros responsáveis pela estruturação do IDAGO, Foi perseguida na revolução de 1964, viajou para a Europa – onde fez uma pós na Inglaterra e, no retorno, integrou o grupo responsável pelo primeiro grande plano diretor de uma cidade no Brasil – Goiânia. Nesse período vinha muito a São Paulo e não raro se hospedava em casa. Ela fazia questão que eu, então com sete para oito anos, lesse o Estadão e o Jornal da Tarde com ela. Claro que de início foram as tirinhas de quadrinhos. Mas logo evoluíram para manchetes, olho da notícia e até artigos inteiros. Por isso, considero que fui alfabetizado pelo O Estado de São Paulo.
Nazareth foi, posteriormente, integrada com elogios nos quadros do Ministério do Planejamento, prestigiada pelos Superministros Reis Veloso, (1969/1979), e Delfim Neto (1979/1985), para marcar uma firme mudança de postura no planejamento brasileiro.
Maria de Nazareth Aguiar, com quem passei horas, em São Paulo e em Goiânia, dialogando e fumando cachimbo – foi grande referência ideológica na minha adolescência e juventude. Me lembro de como ela relatou trabalhos que fez para o planejamento estratégico em países da América do Sul, então marcados por grande instabilidade política. Esses relatos foram para mim uma iluminação.
Ela me fez ver o valor da matemática no planejamento e a importância da engenharia legal na construção de planos, políticas e programas, sempre apoiados organicamente em sistemas e estruturas institucionais – com entes articulados, com dotação orçamentária, organograma, fluxograma de decisões, princípios, objetivos e instrumentos de implementação.
Até pela traumática experiência de ter visto muito do que fizera ser destruído por pura mesquinhez político-ideológica, minha grande e saudosa amiga tratou de sempre firmar estruturas institucionais permanentes – que transcendessem os governantes de plantão e resistissem às intempéries ocasionais.
Essa minha referência a Nazareth tem tudo a ver com a exclamação no título deste artigo.
“É o SUS, estúpido”, deriva da frase “It’s the economy, stupid” (é a economia, idiota), que foi cunhada em 1992 por James Carville, estrategista da vitoriosa campanha presidencial de Bill Clinton contra o presidente republicano George H. W. Bush. A frase respondia à perplexidade de todos ante a mudança de quadro na política americana (Bush se julgava vitorioso após derrotar os iraquianos na Guerra do Golfo e foi engolido por uma avalanche de votos democratas).
A frase virou um “snowclone” – algo que passa a ser usado em vários contextos diferentes e, mesmo assim, é reconhecido de imediato. Serve para compreensão, portanto, do atual momento brasileiro – não somente no aspecto da economia, mas no da política também. E o SUS se encaixa perfeitamente nisso.
A lição que aprendi de Nazareth foi a mesma aplicada pelos governos empenhados em buscar o desenvolvimento econômico mundo afora na segunda metade do século passado,. O Brasil dos governos militares, tanto quanto no período de Juscelino e Jango, também prestigiaram o planejamento e pavimentaram o desenvolvimento econômico nacional por meio de sistemas de governança e instituições que saíram do texto legal para a gestão de recursos humanos e a engenharia e arquitetura de sedes, salas e edifícios funcionais.
Conto essa história para lembrar da importância dessa filosofia de planejamento no momento em que lutamos todos contra os terríveis e sinérgicos efeitos da pandemia de COVID ocasionada pelo coronavírus.
Foi com essa filosofia e com esse mesmo ímpeto de perenizar políticas públicas abrangentes, que o Sistema Nacional de Saúde foi instituído pelo governo federal, nos idos de 1975, buscando um sistema universalizado nos moldes do praticado na Inglaterra desde o fim da Segunda Grande Guerra, embora ainda muito vinculado ao sistema de previdência social. A iniciativa forma um divisor de águas no atendimento da população, com todos os percalços e desvios que se fizeram e ainda se fazem nesse campo da Administração Pública.
O conceito de universalização da saúde foi cristalizado na Constituição Federal de 1988, e ampliado sobremaneira pelo Sistema Único de Saúde, totalmente inspirado no festejadíssimo National Health Service do Reino Unido, tornando o Brasil o único país com mais de 200 milhões de habitantes a possuir um sistema de saúde pública universal em pleno funcionamento.
De fato, o SUS abrange de atendimentos primários até procedimentos complexos. Executa o atendimento de emergência, dispões de um Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU)., aplica vacinas e fornece remédios gratuitamente para pessoas com diversas doenças ( de diabetes e pressão alta a HIV e Alzheimer). O sistema ainda desenvolve o apoio a pesquisas na área de epidemiologia e fiscaliza a qualidade do abastecimento de alimentos para consumo.
Com o advento do SUS, a população brasileira passou a exercer o direito constitucionalmente estabelecido à saúde universal e gratuita, financiada com recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Para tanto, foram incluídos no sistema os centros e postos de saúde, os hospitais públicos e universitários, laboratórios, bancos de sangue, a agência e os serviços de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, vigilância ambiental, além de fundações e institutos de pesquisa acadêmica e científica, federais e dos estados, como a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Instituto Vital Brazil e Instituto Butantã.
Nossa mediocridade ( que parece ser inata), nos faz criticar sistematicamente o sistema que nos atende no primeiro momento e nos acolhe como último recurso. No entanto, é ao SUS que devemos a impressionante defesa da saúde do brasileiro no enfrentamento eficaz à pandemia do coronavírus.
É ao SUS que devemos a articulação das estruturas de atendimento suplementar, distribuição dos remédios, acolhimento dos doentes, ações de prevenção, aceleração das pesquisas – incluso da vacina contra a Covid-19 e até mesmo a organização de fornecimento da indefectível cloroquina incensada como elixir pelo idiossincrático presidente da república de plantão. O SUS também deverá ministrar a tão esperada vacina, cujos institutos integrantes do sistema se empenham em contribuir para o seu advento.
O SUS sobreviveu ao embate entre presidente, governadores e prefeitos, resistiu aos escândalos de corrupção, às bravatas bolsonaristas, ao negacionismo irresponsável, à pavonice de governadores, ao necronoticiário dos veículos de imprensa e à intensa troca de ministros. Permanece impávido, cumprindo com suas atribuições e surpreendendo positivamente a cada dia.
Assim, antes de babar ovo para o demagogo de plantão, o cidadão brasileiro deve elogiar e se orgulhar do Sistema Único de Saúde que o atende, protegendo-o, inclusive, dos idiotas que eventualmente se arvoram a administrá-lo. É o SUS o grande tesouro nacional e é a ele que devemos o pronto atendimento, a rápida e eficaz ação preventiva e o sucesso obtido até agora no controle da pandemia – proporcionalmente muito inferior aos quadros de contaminação e óbitos da Ásia, Europa e Estados Unidos (que não tem SUS… e por isso está apanhando violentamente da pandemia).
Assim, a próxima vez que alguém postado à esquerda ou à direita da biruta de aeroporto que se transformou a política tupiniquim, vier contar qualquer vantagem ou fazer crítica com relação à pandemia, não hesite em responder: “é o SUS, estúpido!”.
Talvez isso sirva de guia para orientar interlocutores catatônicos ante a resiliência da governança da Saúde, com relação à crise que se abateu na política em relação à pandemia.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. É Consultor Jurídico da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos – ABREN.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 22/07/2020
Edição: Ana A. Alencar