Para além do Projeto de Lei sobre o Comércio de Emissões, é necessário estruturar uma Governança para o Clima
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro* e Rodrigo Vieira das Neves de Arruda**
O Projeto de Lei (PL) 412, de 2022, que visa instituir o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal. O PL tem como objetivo regulamentar o mercado de carbono no Brasil, abrangendo mercados regulados, voluntários e transferências internacionais.
A implementação do SBCE, está prevista na Lei de Política Nacional de Mudanças Climáticas – cujo PL sancionado foi construído na relatoria do saudoso Deputado Mendes Thame, por equipe técnica sob coordenação de Antonio Fernando Pinheiro Pedro, na primeira década deste século.
O comércio de compensação de emissões é crucial para conferir funcionalidade econômica aos mecanismos de mitigação de riscos ambientais, permitindo a geração de oportunidades de negócios para o Brasil. O país tem potencial para contribuir significativamente na redução das emissões de gases de efeito estufa, não apenas pelo manejo sustentável de florestas mas, principalmente, pelas oportunidades no campo dos insumos energéticos, mobilidade urbana sustentável e agronegócio.
No entanto, é preciso regras de transição eficazes, visando garantir investimentos estrangeiros, assegurar nossa soberania e evitar episódios que ponham em risco a credibilidade do país, dos derivativos nacionais e causem insegurança jurídica.
É preciso, assim, uma necessária revisão no projeto de lei do mercado de carbono brasileiro.
O que deve ser feito
A versão mais recente do substitutivo ao projeto de lei 412/22, elaborada pela senadora Leila Barros, emerge como a principal proposta para a regulamentação do mercado de carbono no Brasil. Dado o caráter crucial desse tema na economia brasileira em transição para uma matriz energética mais sustentável, é imperativo focar na revisão de dois pontos cruciais: governança e registro central, com métodos de credenciamento e relação com ajustes correspondentes.
A lei deve servir como alicerce da política do Estado brasileiro no controle das emissões de gases de efeito estufa, devendo permanecer estável, independentemente de mudanças de governo periódicas.
Portanto, é crucial que o sistema brasileiro de comércio de emissões (SBCE) seja supervisionado por um ou mais ministérios, independentemente do modelo escolhido (agência, secretaria etc.).
No entanto, é evidente que a composição do SBCE precisa de aprimoramento, especialmente no que diz respeito à governança.
A governança implica em algo doloroso para governos populistas e ideólogos do Estado-Provedor: assumir o ambiente de regulação e seus mecanismos de compartilhamento e transparência técnico-jurídica.
A gestão de emissões de gases de efeito estufa, por outro lado, deve envolver os estados brasileiros em um nível deliberativo, garantindo a colaboração entre as jurisdições estaduais e a União. A integração da contabilidade de carbono a nível nacional é vital.
O Código Florestal brasileiro já prevê a integração de serviços ambientais nacionais e estaduais, proporcionando um alicerce sólido para essa abordagem. O Órgão Gestor do SBCE, portanto, além da necessária autonomia de regulação, com seu amplo escopo de responsabilidades, deve ser capaz de:
- Definir limites anuais de emissões de gases de efeito estufa, incluindo planos de monitoramento, relatórios e reconciliações periódicas dos emissores;
- Estabelecer procedimentos para medição, relatórios, verificação de emissões e procedimentos de reconciliação;
- Elaborar o plano nacional de alocação, sujeito a consulta pública e aprovação pelo Conselho Interministerial;
- Emissão das cotas brasileiras de emissão (CBE), que se tornarão ativos comerciais regulados, semelhantes às allowances no mercado de carbono europeu, e condução de leilões para essas cotas;
- Gerenciar o registro central do SBCE;
- Avaliar planos de monitoramento, relatórios e reconciliações periódicas;
- Desenvolver mecanismos para estabilizar os preços das CBE;
- Estabelecer requisitos e credenciar metodologias para a originação de certificados de redução ou remoção verificados (CRV), que podem ser comercializados para cumprir metas de mercado regulado no Brasil ou no exterior;
- Fiscalizar infrações e aplicar sanções, incluindo o julgamento de recursos.
Dada a ampla gama de competências concentradas no Órgão Gestor, é evidente que a proposta de governança requer aprimoramentos, separação de competências e um sistema de supervisão adequado.
No cenário atual, os custos da precificação de carbono, determinados por um Órgão Gestor, podem ter um impacto significativo em diversos setores da economia brasileira. Por óbvio que os mecanismos de mercado, seja no balcão, seja no lançamento de títulos em custódia de bolsa, serão determinantes.
Quanto às metodologias de originação de créditos no mercado voluntário, é necessário prestar atenção à aprovação e ao credenciamento.
A proposta atual estabelece que a metodologia REDD+ será regulamentada nacionalmente pela Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+), com foco em pagamentos por resultados reconhecidos pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Portanto, se desejarmos credenciar metodologias REDD+ baseadas em certificações privadas, amplamente aceitas no mercado voluntário, como a VERRA – ou mesmo metodologias de mercados jurisdicionais subnacionais para a conversão em CRVs, será necessária uma nova regulamentação.
O registro central desempenhará um papel fundamental na conferência de integridade aos CRVs originados de metodologias credenciadas, contribuindo para a solidez de todo o SBCE. No entanto, não pode ser capturado pelos interesses geopolíticos eurocentristas, servir de meio para a fragilização dos projetos de infraestrutura e da indústria agropastoril nacional ou obstruir o acesso da própria União à riqueza do subsolo – que constitucionalmente lhe pertence.
Importante, por fim, que a Comissão de Valores Mobiliários revise seus entendimentos a respeito dos certificados de redução de emissões e demais allowances que impliquem derivativos, prevendo riscos já constatados.
Riscos a serem enfrentados
Por ocasião das negociações para o Acordo de Paris, um estudo de 2015 concluiu que 75% dos créditos emitidos provavelmente não representariam reduções significativas. Afirmava também que, se os países tivessem eliminado a poluição, em vez de fazer compensações, as emissões globais de CO2 naquele período teriam sido 600 milhões de toneladas mais baixas. ¹
Em sua grande maioria, os trabalhos encontrados na literatura sobre modelos de análise dos impactos globais do crédito de carbono, estabelecem um trade off entre crescimento econômico e sustentabilidade. Conforme (ALBEROLA, CHEVALLIER, 2008 e ABADIE, 2008), foram identificados reflexos negativos na produção e competitividade da indústria (BLEISCHWITZ e FUHRMANN, 2007; REINAUD, 2007; DEMAILTERSON e QUIRION, 2007 , PETERSON , 2006 e NEUHOFF et al., 2006), bem como mudanças negativas no mercado de trabalho (ANGER, 2008), com diferentes aspectos ligados à esfera regional de cada autor. Porém, todos os estudos convergem para redução do PIB, gerando um conflito entre os meios de produção e consumo com o mercado de crédito de carbono. ²
O BNDES já alertou para os seguintes aspectos de risco:
- PIB diminui com as políticas de carbono, reduzindo a renda per capita e, como consequência afetando a qualidade de vida impactando a vida em sociedade;
- Políticas de carbono aumentam os custos das fontes de energia fóssil, o que reduz o consumo;
- O consumo de energia é impactado pelos preços maiores da energia induzindo a eficiência energética;
- Políticas de carbono serão aplicadas a vários países ao mesmo tempo, ocasionando uma diminuição da atividade econômica global.³
Posto isso, fica claro que não há almoço gratis no campo das decisões econômicas… Muito menos na área do mercado de investimentos baseado na compensação de emissões decorrentes de reduções mandatórias e metas restritivas nacionalmente estabelecidas.
O mecanismo REEDD+ foi outro instrumento de implementação analisado em artigo bastante crítico, tempos atrás, mencionando o comportamento do Governo Equatoriano – um importante benchmarking para alertar a navegação dos investidores e governantes. De fato, o mecanismo não raro se aplica sobre áreas com potencial de exploração econômica na superfície e, em especial, no subsolo. No caso equatoriano, e em toda a borda da floresta amazônica, os reservatórios de petróleo tornam-se alvo da restrição de uso – obstruindo decisões soberanas… 4
Com relação às possibilidades de salvaguardas nacionais, face à especulação geopolítica envolvendo o sinuoso acordo “termostato” de Paris, essas questões já foram objeto de análise nossa, efetuada para o Ministério do Meio Ambiente, a pedido do Ministro Ricardo Salles, no Governo Bolsonaro. 5
Já na época, afirmamos que era preciso restabelecer a autoridade nacional para mudar a postura brasileira face à implementação da Convenção do Clima. Em verdade, a condução ideológica contida nos termos do acordo, termina transferindo para os países em desenvolvimento os encargos que deveriam, nos termos da própria Convenção Quadro de Mudanças do Clima, serem arcados de forma comum “porém diferenciada” – partindo da constatação de que a carga de emissões históricas e atuais provém dos países europeus, dos EUA e dos países asiáticos.
Não há espaço para ingenuidade. O mercado de carbono dissimula uma transferência de restrições sobre países mais pobres, em troca de derivativos e certificações que servirão aos países mais ricos. Isso não deve, no entanto, justificar posturas negativas ou rejeição ao CQMC – cujo escopo é bem maior que seus protocolos ocasionais. Em verdade, é um desafio e uma oportunidade – como adiante se verá.
No intuito de afirmar um mercado que compreendesse interesses nacionais, o Mercado de Créditos de Carbono foi objeto de um estudo patrocinado pelo Banco Mundial – FINEP e BM&F Bovespa, na década passada, sob coordenação do escritório Pinheiro Pedro Advogados e da ATA – Ativos Ambientais, apresentando modelagens e tipologias de custódia e titulação. 6
O estudo, muito completo e ainda atual, foi no entanto literalmente engavetado pela BOVESPA, que entrou em processo de cisão com a Bolsa de Mercadorias e Futuros, tornando-se “B3”. Dessa forma, o estudo terminou ignorado também pela CVM. Por óbvio que os mecanismos ali apresentados incomodaram um mercado de ações capturado pelos grandes oligopólios e fundos de investimento direcionados para o mercado imobiliário…
Conclusão
Assim, em que pese a boa iniciativa do Projeto de Lei, se não houver uma definição clara da governança do sistema, livre das amarras do discurso ideológico natureba e entreguista que se encontra à espreita na esquina… ou dos interesses de especulação, no outro lado da rua, poderemos cair num vazio – mormente quando os esforços de resiliência e adaptação, face aos ciclos climáticos e eventos extremos, reclamam mais atenção e investimentos que a troca de emissões baseadas em metas de redução impostas, tudo isso em um ambiente politicamente conflituoso e assimétrico.
O discurso, literalmente, na prática… é outro. E vai exigir mais que posturas militantes, subserviência “politicamente correta” ou lacrações de esquina.
Sobretudo, será necessário, como já dito em várias ocasiões, “mudar a postura brasileira face à implementação da Convenção do Clima” 7. Só assim, retomaremos a soberania que nos é devida no diálogo internacional, bem como a vanguarda no mercado, valorizando nossa economia. Assim, para além do Projeto de Lei sobre o Comércio de Emissões, é necessário estruturar uma Governança para o Clima
Notas:
1, 2, 3 – BURI, Marcos – “Projeto dos Créditos de Carbono do Sistema Metro Ferroviário”, tese de mestrado – Universidade de Taubaté
4 – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “A Crise no Mercado de Carbono”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2013/09/a-crise-no-mercado-de-carbono.html
5 – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Reposicionamento da Gestão do Clima no Governo Bolsonaro – Uma Proposta”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2019/06/reposicionamento-da-gestao-do-clima-no.html
6 – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “A Organização do Mercado de Créditos de Carbono no Brasil”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2015/05/a-organizacao-do-mercado-de-creditos-de.html
7 – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “O Clima Pela Base”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2023/03/o-clima-pela-base.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Exerceu o cargo pioneiro de Secretário Executivo de Mudanças Climáticas do Município de São Paulo, de junho de 2021 a julho de 2023. Sócio fundador do escritório Pinheiro Pedro Advogados. CEO da AICA – Agência de Inteligência Corporativa e Ambiental, é Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. Foi o 1o. presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP, presidente da Câmara Técnica de Legislação do CEBDS, presidente do Comitê de Meio Ambiente da AMCHAM, coordenador da equipe encarregada de elaborar o substitutivo do PL, no mandato do Relator – Dep. Mendes Thame, que resultou na Lei de Política Nacional de Mudanças Climáticas, consultor do governo brasileiro, do Banco Mundial, da ONU e vários outros organismos encarregados de aperfeiçoar o arcabouço legal e institucional do Estado no Brasil. Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
**Rodrigo Vieira das Neves de Arruda responde pela área de Regulatório e Energia do Escritório Pinheiro Pedro Advogados. Advogado formado pelo IBMEC – Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – RJ e Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP, é membro efetivo da Comissão de Direito da Energia da OAB/SP e professor dos Cursos de Especialização em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM). Foi assessor da Procuradoria Federal na ANP – Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Autor de várias obras publicadas, com destaque para o “Vade Mecum da Infraestrutur do Petróleo” e “Dicionário Jurídico do Petróleo” (ambos pela Ed. Riedeel – co-autor). Detentor do “Prêmio IBMEC de Excelência Acadêmica (2015).
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 02/11/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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