São Paulo, 12 de outubro de 2019, 302 anos do achado da imagem de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil!
Por Edison Farah*
Praticamente 25 anos faz que, ante uma matéria publicada na Folha de São Paulo, “É isto um homem?” (vide original ao final desse artigo), escrevi o texto abaixo, “Eu Brasileiro perplexo!”
De lá para cá o horror não só permaneceu, como se centuplicou, e se acentua diuturnamente na nossa Paulicéia, de forma incontrolada, por ausência total do poder público, gerenciado que está por indivíduos ou incompetentes, ou de fato canalhas, que servem outros propósitos, como a destruição do convívio civilizado no Brasil.
Estive a tarde toda ontem circulando a pé pelo Centro, da Praça da Sé ao Parque d. Pedro, ao Mercadão, à Av. São João, Largo São Bento, Pátio do Colégio, Rua Boa Vista, Av. Rio Branco, Anhangabaú, Teatro Municipal….Horror!!!
Cidade em guerra, imunda, odor de fezes e urina em todo o centro. Praça da Sé é algo surreal. Vou filmar tudo. Nem Berlim após o final da guerra tinha tal decadência humana. HORROR. HORROR. HORROR!!!
Tudo mesclado ao comércio pirata totalmente livre, com uma economia em frangalhos, quando temos um PIB subterrâneo da ordem de 40 % ou mais do PIB oficial, nessa economia informal.
Horror que se fez deste país!
Vou regularmente ao Centro, acompanho o processo assustador de degradação que se aprofunda desde os tempos do “Andrade”, de modo mais acentuado.
Legiões de cracudos, encardidos, descalços, delirando ou dormindo pelas calçadas, rodeados de crianças, próprios filhos, ou perdidas e abandonadas, com pais de aluguel, quase sempre em grupos, restos de comida de marmitex por todos os lados, aquelas cobertas cinzas e grosseiras, que a Prefeitura distribui todas as noites aos zumbis, “walking dead”, jogados pelo chão, fezes, cheiro de urina pavoroso, sacos de lixo rasgados, chorume escorrendo, lunáticos que se creem os novos profetas pregando aos gritos, sempre dando tapas na Bíblia para que o som dramatize o nonsense do que berram, camelôs com seus caixotes cada vez mais precários (ou apenas um lençol jogado naquele chão imundo) vendendo mercadoria roubada, pirateada, que mantém uma cadeia alimentar extensa – do GCM e do fiscal da PMSP, passando pelos grandes atacadistas, chegando aos ocupantes das cadeiras reservadas aos que legislam, julgam, decidem os rumos da economia. Vendedores de celulares roubados oferecem suas mercadorias com liberdade total entre os transeuntes, e os policiais, presentes em duplas ou trios. Em pedaços de plásticos, jogados sobre o piso urinado e cuspido, camelôs picam frutas (com suas mãos perfeitamente “higienizadas”), colocam porções em saquinhos plásticos que, rapidamente, estufam e são alegremente comprados pelas pessoas.
Sob as marquises de belíssimos prédios antigos descansam da noite agitada centenas e centenas, diria milhares, de nóias em barracas improvisadas, com seus pertences contidos em vários sacos, ocupando a extensão de quadras em sequência (como na Riachuelo, Boa Vista, Largo São Bento, para citar apenas essas).
Vi, ontem, frente à Igreja de Santo Antônio, em reformas, na Praça do Patriarca – Meudeus! – um homem jovem deitado na calçada, as pernas, por deformação de nascença, cresceram dos quadris para os ombros – Meudeus! -, uma latinha para esmolas ao seu lado. Sozinho, indefeso, estirado no chão, certamente levado por algum outro deserdado da sorte (que, talvez, o explore, – Meudeus! -), exposto ao sol. Como come? Como mata a sede? Como urina? Como defeca? O que pensa? O que sente? Humilhação suprema!
Por todo o Centro estão localizados órgãos públicos que pagam salários generosos para barnabés indolentes. Internamente, como nos Tribunais do Judiciário, o luxo impera, e nas suas calçadas os miseráveis levam a vida.
E o ínclito secretário da cultura, socialista de carteirinha, promove circo quase todo fim de semana, eventos musicais pelo Centro, para a escumalha degradada, esfomeada, em estado moribundo. A cada menos de cem metros “artistas” apresentam suas “músicas”, dá para imaginar o naipe, certo? Caixas de som nas alturas, grunhidos, grunhidos e grunhidos. Cultura para a massa!!! Loucura total.
O que sempre me intriga, por assim dizer, é que pessoas compram e comem aquelas frutas sujas, azedando, caminham, comem “churrasco grego”, conversam, riem, perfeitamente adaptadas ao espetáculo da putrefação social, ninguém expressa qualquer surpresa ou desconforto, são como peixes na água refrescante do mar, tudo tão banal.
O que me dá a certeza então de não haver lugar para qualquer esperança.
Então, como concluí à época, em 1995, eu continuo nada mais tendo a dizer sobre nós, brasileiros….
Eu, brasileiro, PERPLEXO!
21 de abril de 1995
O que és, Brasil?
De Tiradentes a Tancredo
Edison Farah*
Há algum tempo tenho pensado em dizer alguma coisa sobre a indigência que se tomou marca registrada de todas as capitais brasileiras.
Você fica tentando racionalizar sobre as causas que levaram a este espetáculo de degradação que ganha em intensidade daqueles observados nas diversas guerras através da história deste planeta. O que se passa, só para exemplificar, em São Paulo, a maior cidade da América Latina, a mais progressista, a mais rica, a mais solidária, a futura capital do MERCOSUL, etc. etc. etc., não é comparável sequer à ignomínia das destruições da 2a. guerra. A guerra fraticida das tribos africanas, compreensível, pois para nós são “selvagens”, talvez não seja tão cruel como o que vemos em baixo dos viadutos desta Piratininga nestes tempos de “democracia”, de “direitos humanos”, de “liberdade total” que, dizem, temos neste país. Pertencemos, afinal, à “civilização ocidental”.
Fica me passando pela cabeça falar da indigência como produto de interesses. Dizer da indústria da caridade versus a caridade inútil. Denunciar a quem interessa a degradação. Quais os grupos envolvidos, desde os políticos obtusos a serviço das diversas ideologias, até as ONGs cuja mercadoria, para exploração da boa-fé do cidadão comum, é o povo da rua. Das entidades “beneficentes” que alocam para si, no congresso e no Executivo, as verbas da “área social”. Das cínicas campanhas de “solidariedade e de fraternidade” patrocinadas pelo “establishment” para canalizar, de forma inócua, a energia da massa de boa-fé. Da MÍDIA, a serviço dos canalhas e gangsteres que dominam este país. De como seria fácil, com um projeto de engenharia econômica e social minimamente sério, resolver, eliminar de pronto, toda esta degradação. Tergiversar sobre o “por que” não se encara para valer a questão. Sobre que povo somos. Sobre Amor e indiferença. Sobre o ridículo de sermos um povo como somos: inconsequente, cínico, e, quando de boa-fé, absolutamente estúpido.
E assim venho, há meses, tentando canalizar meus impulsos de repórter social frustrado, para produzir página literária, onde pudesse retratar brilhantemente, para satisfazer minha vaidade de arguto analista social, toda a miséria moral que nos possui, a nós, brasileiros…
Porém, … noite destas em rua central, zona do Glicério, ao lado de uma destas indústrias da caridade, proxenetas da fé, que ocupa ali todo um quarteirão, – destas igrejas messiânicas de achaque ao povo incauto – vejo um volume estendido, atravessado na calçada. Fixo os olhos: trata-se de um homem deitado na calçada. Penso: mais um indigente bêbado. Sim, que seja! Observo mais: ele se movimenta. Acendo os faróis sobre ele: este homem, estendido na calçada, bebe a água suja da sarjeta, como um cão. Este homem bebe, durante cinco minutos, a água imunda da sarjeta, em São Paulo, com a língua, exatamente como um cachorro perdido de rua!
Então percebi que eu nada mais tenho a dizer sobre nós, brasileiros …
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PS.: 1) Convido os discursivos senhores do ”pensamento brasileiro” a fazerem um ”tour” na madrugada.
2) O que desola é a consciência de quão desnecessária é esta degradação. Por mais pobre que fôssemos, o País, com um mínimo de honestidade de propósitos, a miséria seria administrada racionalmente. Pobreza não significa, absolutamente, degradação. Esta degradação é resultado do domínio do MAL sobre a “elite” brasileira. Que Deus tenha piedade desta “elite”, que começa a colher o que planta há séculos.
*Edison Farah é economista, tributarista, jornalista. É Vice-Presidente da API – Associação Paulista da Imprensa. Foi Diretor Presidente da ONG BAIRRO VIVO – Agência de Preservação Urbana que pugna pela qualidade de vida nas Cidades, da qual foi um dos fundadores em 1976. Foi Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo.
Presidiu por 3 mandatos, entre 1998 e 2004, o CONSEG CONSOLAÇÃO, que abrange os bairros da Consolação, Higienópolis e Pacaembu, na cidade de São Paulo, e Coordenador do Colégio dos CONSEGs do Centro de São Paulo, na mesma época.
Fundador dos Movimentos ‘Defenda São Paulo”, “Viva Pacaembu”, Conselheiro da Associação “Viva o Centro”.
Foi Coordenador de Educação e Informação do PROCON – Grupo Executivo de Proteção ao Consumidor da Secretaria de Planejamento do Estado de São Paulo. Foi Secretário Executivo da Comissão Nacional do Brasil do Comitê de Ação para Integração da América Latina, entidade subordinada à Presidência do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Folha de São Paulo OPINIÃO
São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 1994
É isto um homem?
“And when he falls, he falls like Lucifer, never to hope again.”
* Shakespeare, “Henrique 8.º”
Jesus Cristo de Nazaré. É assim que ele se apresenta, mas outros preferem chamá-lo de homem-rato ou mesmo de homem-barata. Resta saber o que permaneceu do substantivo “homem”.
Jesus Cristo de Nazaré vive nos esgotos de Belo Horizonte tendo como companhia ratos, baratas e toda espécie de bactérias que se desenvolvem nos excrementos de uma sociedade doente. Bebe da água pútrida que percorre as mefíticas galerias da capital mineira e se alimenta de lixo, desafiando os compêndios de higiene.
Jesus Cristo de Nazaré parece já ter-se habituado a sobreviver sob essas condições –só, calado. E os brasileiros parecem já ter-se habituado a conviver com esses indecentes níveis de miséria –quietos, impassíveis. Jesus Cristo de Nazaré não é o único homem-barata que sub-habita os subterrâneos de Belo Horizonte e sabe-se lá de quantas mais cidades deste país em que os viadutos já não comportam a legião de indigentes.
Parece não haver limites para o nível de degradação a que os homens, individualmente, podem ser submetidos. Apesar de empurrados para muito aquém da fronteira da humanidade, de privados de tudo o que há de mais básico e de suportarem as mais odiosas torturas criadas pela sanha nazista, houve quem sobreviveu a Auschwitz. Já a sociedade que admite que seus membros vivam em bueiros está profundamente enferma e corre o risco de romper-se, de sucumbir diante da indiferença e da desumanização.
O Brasil ainda não se converteu num imenso campo de concentração, mas chegará lá, se nada for feito. E modificar um pouco os vergonhosos índices de distribuição de renda para tentar diminuir a miséria é um imperativo mais do que urgente, se o país deseja permanecer como uma sociedade e não como uma cloaca.
* Tradução: “E quando ele cai, cai como Lúcifer, para nunca mais ter esperança”.