Por Lais Modelli/Mongabay
- Desde 2004, quando começaram os registros de trabalhadores em condições análogas à escravidão, 1.640 indígenas foram resgatados nessa situação; só na pandemia já são mais de 100 indígenas encontrados em formas de trabalho escravo.
- No lugar da colheita da cana-de-açúcar, que aliciava a maioria dos escravos indígenas na década passada, agora é a colheita da maçã no RS e SC que desponta como atividade onde povos nativos são submetidos a condições degradantes de trabalho.
- Mato Grosso do Sul é o estado com o maior número de resgates, mas cresce também a escravidão indígena na região Norte, em particular no território Yanomami, onde indígenas são aliciados para trabalho no garimpo ilegal.
Pelo menos 1.640 indígenas foram resgatados de trabalhos análogos à escravidão no Brasil desde 2004, uma média de cerca de 90 resgates anualmente em dezoito anos. Os dados são de um levantamento da Mongabay com base nos registros da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), cruzados com informações de auditores fiscais do Trabalho ouvidos pela reportagem.
Desde o início da pandemia, já são 115 trabalhadores indígenas resgatados da escravidão moderna em todo o país, segundo dados da Detrae, órgão subordinado ao Ministério da Economia.
Os dados mostram que o trabalho escravo de indígenas está intimamente ligado com o setor agropecuário: dos 303 indígenas resgatados no Brasil de 2010 a maio deste ano, 94,8% se enquadram na categoria da Detrae de “trabalhadores agropecuários, florestais e da pesca”.
Em 2022, 77% dos indígenas resgatados trabalhavam no setor agropecuário. Os outros 18% eram trabalhadores volantes (ajudantes gerais na agricultura, como cerqueiro, descascador, capinador, etc) e 5% eram profissionais do sexo.
Quanto à localidade, o estado que mais registra trabalho escravo de indígenas é o Mato Grosso do Sul. Alguns fatores ajudam a explicar o fato, mas, segundo a antropóloga Lúcia Helena Rangel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o processo histórico de expropriação dos territórios indígenas para dar lugar ao agronegócio é o principal deles.
“No Mato Grosso do Sul, o agronegócio empurrou historicamente comunidades indígenas para territórios muito pequenos. A situação piorou com o passar dos anos, em que a população indígena cresceu, mas as suas terras não”, diz Rangel.
Um relatório do Instituto Socioambiental (ISA) de delimitação e identificação dos Guarani-Kaiowá mostra que o território tradicional dessa etnia estendia-se por uma área de 40 mil km2. Atualmente, suas terras não passam de 22 pequenas aldeias situadas em uma faixa de terra de cerca de 150 quilômetros ao longo da fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai.
“Sem terra, o indígena não tem onde plantar e o que comer, tendo que procurar uma atividade remunerada. O trabalho sazonal nas colheitas acaba sendo a única oportunidade”, afirma Rangel.
O problema não é exclusivo dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, contudo. “Comunidades indígenas em várias regiões do país, principalmente no Sul e Centro-Oeste, estão vivendo em condições muito precárias, em beira de estrada, por não terem suas terras demarcadas”, diz a antropóloga.
A reportagem procurou a Fundação Nacional do Índio (Funai) para comentar os dados, mas não obteve retorno do órgão.
Dados subestimados
A série histórica dos dados da base da Detrae começa a partir de 2003, quando passou a ser pago o benefício de três parcelas do seguro-desemprego a todo trabalhador resgatado. O primeiro registro oficial de trabalhador indígena em condição de trabalho escravo é feito em 2004. Contudo, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, responsável pelos resgates, atua desde 1995.
“Já na segunda operação da Móvel, em 1995, se encontrou indígenas nessas condições”, conta o chefe da Detrae, Mauricio Krepsky.
Relatos de auditores fiscais do trabalho reunidos no livro Resgates – Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil, lançado em 2011, revela a presença de indígenas desde o início das fiscalizações.
“Em uma operação no Mato Grosso, ao chegar na fazenda objeto da fiscalização, encontramos várias famílias indígenas trabalhando na catação de sementes de braquiária, uma atividade manual na qual se trabalhava de cócoras o dia todo”, diz o relato do auditor fiscal do trabalho Mário Lorenzoni, presente no livro.
No mesmo relato, Lorenzoni descreve como trabalhadores indígenas menores de idade também foram encontrados em condições desumanas na época.
“Uma trabalhadora de 15 anos tinha uma filha de 3 meses, chamada Bianca; o pai tinha 17 anos. A mãe não tinha leite, a fazenda era localizada em área isolada e os pais tinham que andar 30 km para comprar leite, então eles cozinhavam feijão e coavam o caldo em uma meia para dar à bebê. A criança estava desidratada e vomitando muito; levamos a bebê e mais outros seis trabalhadores doentes ao hospital da cidade mais próxima”, continua o relato do auditor fiscal.
Além disso, os dados oficiais de registro de indígenas em operações de trabalho escravo da Detrae apontam apenas 627 indígenas resgatados desde 2004, mas, segundo Krepsky, eles dizem respeito somente aos trabalhadores que receberam o seguro-desemprego no momento do resgate.
O chefe da Detrae também explica que o campo “etnia” é autodeclaratório e nem sempre o trabalhador indígena se apresenta assim ou é cadastrado pelo auditor-fiscal como tal.
Relatos de auditores-fiscais do trabalho também mostram que os dados são maiores que os oficiais. “Em uma das maiores fiscalizações com trabalhadores indígenas já ocorridas no país, mais de mil indígenas foram resgatados de uma única vez”, afirma o auditor fiscal Antonio Parron, referência em trabalho escravo indígena.
Parron se refere à operação ocorrida em uma fazenda de cana-de-açúcar da empresa Agrisul Agrícola Ltda, em Brasilândia, no Mato Grosso do Sul, em 2007, onde 1.011 indígenas foram resgatados de uma única vez. Imagens feitas pela fiscalização mostraram que os trabalhadores não tinham cama, lugar para guardar roupas e nem banheiro nos alojamentos, que estavam superlotados. Na falta de um vaso sanitário, era usada uma cadeira enferrujada com um buraco no assento.
Outro fator apontado pelos especialistas para a subnotificação dos dados em relação aos indígenas é a vulnerabilidade e a invisibilidade social desses trabalhadores.
“Encontramos muitos indígenas sem documento, só com uma certidão de nascimento administrativa feita pela Funai. Sem documentos pessoais e conta no banco, o trabalhador não consegue receber os benefícios a que tem direito e não tem acesso aos programas do governo”, diz Parron.
Rangel também aponta que, em alguns casos, os trabalhadores não dominam o português, sendo mais facilmente aliciados pela figura do “gato”, a pessoa que vai às aldeias contratar os indígenas em nome do dono da fazenda.
“Muitos não têm domínio do português, o que torna a exploração mais fácil”, aponta a antropóloga Rangel.
Cana, maçã e garimpo
O presidente da Associação dos Trabalhadores Indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul, José Carlos Pacheco, explica outra razão pela qual o estado registrou muitos casos de escravidão indígena: até recentemente, boa parte das lavouras de cana-de-açúcar sul-matogrossenses fazia uso da colheita manual, atividade que requer grande quantidade de mão de obra.
Pacheco argumenta, porém, que a mecanização da colheita da cana, processo intensificado no estado na década passada, não acabou com o trabalho escravo de indígenas, uma vez que estes acabaram migrando para outras funções.
“Muitos indígenas no Mato Grosso do Sul precisam sair de suas aldeias em busca de trabalho para conseguir sustentar a família. Eles vão trabalhar na lavoura, na catação de pedras, na colheita da mandioca, no corte do eucalipto e em serviços gerais nas fazendas de gado”, diz Pacheco.
“As denúncias de trabalho escravo com indígenas também são recorrentes em carvoarias no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul”, diz a antropóloga Rangel.
A mecanização da colheita da cana-de-açúcar no Mato Grosso do Sul também motivou os indígenas a buscarem trabalho em outros estados, em particular os da região Sul, onde há grande demanda de mão de obra para colheita da maçã.
“Eles [os indígenas] se submetem a essas condições porque nas regiões onde vivem não há políticas fundiárias, ou seja, as terras não foram demarcadas e suas condições de vida são de insegurança sanitária, alimentar e jurídica. Em geral, são pessoas que habitam em acampamentos de beira de estradas ou em terras degradadas”, diz uma nota do Cimi.
De acordo com a entidade indigenista, estima-se que mais de 13 mil indígenas trabalhem nos pomares de maçãs atualmente de forma exaustiva, com jornadas de mais 12 horas diárias em troca de um salário mínimo. A maioria pertence ao povo Kaingang, habitantes do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e aos povos Terena e Guarani-Kaiowá, de Mato Grosso do Sul.
O Cimi não usa a palavra “escravidão” para definir os 13 mil trabalhadores da colheita da maçã, apenas fala em “jornadas exaustivas”. A definição de trabalho escravo segundo o Código Penal, contudo, estabelece que esta é uma das quatro modalidades que configuram trabalho análogo à escravidão. São elas:
- Trabalhos forçados;
- Jornadas exaustivas de trabalho;
- Condições degradantes de trabalho (ex: falta de banheiro e instalações sanitárias; falta de acesso a água potável ao longo da jornada de trabalho ou nos períodos de descanso, etc.);
- restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador (ex: reter documentos ou objetos pessoais; isolamento geográfico, etc.).
Enquanto isso, na Amazônia, um levantamento da Hutukara Associação Yanomami de abril deste ano mostra que o garimpo já alicia os Yanomami para áreas de garimpo ilegal, onde trabalham de maneira insalubre em troca de comida e roupa. Nessas garimpos, também há a exploração sexual de meninas indígenas.
“Estamos vendo cada vez mais os garimpos terem indígenas em trabalhos análogos à escravidão e praticarem a exploração sexual de meninas indígenas. O que está ocorrendo com os Yanomami é uma forma pior ainda de exploração do que nos trabalhos sazonais”, aponta Rangel.
“Em geral, a atividade garimpeira tem um desprezo muito grande pela população indígena. Teremos dimensão do aliciamento de indígenas pelo garimpo só daqui alguns anos”, completa a antropóloga.
“Tratados como bichos”
Antonio Parron explica que é comum os trabalhadores indígenas receberem condições piores que os demais colegas em uma mesma fazenda. Também é recorrente o empregador forçar o indígena a caçar para ter o que comer.
“É comum chegarmos em uma fazenda em que os trabalhadores não indígenas, os que mexem diretamente com o gado, são bem tratados, enquanto que os indígenas, geralmente nas funções de serviços gerais, são colocados para dormir em barracos de lona no meio do mato e caçam para comer”, descreve Parron.
Quando se questiona ao empregador o motivo da diferença de tratamento entre os trabalhadores indígenas e os não indígenas, a resposta costuma ser, segundo Parron, “eles gostam de viver assim”.
“Em 2021, fiscalizamos uma lavoura de soja e encontramos 24 indígenas alojados no meio do mato, em barraco de lona. Chovia no dia e a água entrava com tudo nos barracos, aquela terra vermelha sujando tudo, os colchões, as roupas no chão… São condições extremamente degradantes.
“Os trabalhadores indígenas resgatados são tratados como bichos nas fazendas. Como alguém pode gostar de viver assim?”, diz.
Após serem resgatados, Parron afirma que, devido às condições precárias de vida dessa população aldeada em locais diminutos, é comum resgatarem o mesmo indígena novamente em trabalhos análogos à escravidão.
“Este ano, resgatamos um indígena que já havíamos resgatado em 2017 fazendo praticamente o mesmo trabalho, mas em outra fazenda”, lembra o auditor fiscal.
Escravidão indígena é histórica
Registros históricos mostram que a invasão das terras indígenas por não indígenas foi oficializada pela Corte Portuguesa no Brasil colônia a partir de 1530, quando a posse de 20% de todos os territórios conhecidos foram distribuídos aos donatários das capitanias hereditárias. Os outros 80% destes territórios foram loteados e concedidos a terceiros sob o sistema de sesmarias.
Além da posse da terra, os donatários — portugueses membros da aristocracia e amigos do rei de Portugal — ganhavam o direito de escravizar os indígenas.
Posteriormente, durante as incursões bandeirantes pelo interior do Brasil entre 1628 e 1632, mais de 60 mil indígenas Guarani foram levados como escravos para a cidade de São Paulo.
A escravidão indígena começou a ser combatida somente a partir de 1758, por meio de um decreto de Marquês de Pombal, secretário de Estado do Reino de Portugal. O documento também proibia, contudo, o uso das línguas indígenas no Brasil.
De acordo com o censo de 2010, o último a levantar a população indígena — o próximo censo será publicado este ano —, existem cerca de 900 mil indígenas em todo o Brasil, o que representa menos de 0,5% da população total.
Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que, em 2020, o Brasil tinha 72.861 indígenas com carteira de trabalho assinada — 1.080 trabalhadores indígenas registrados a menos do que em 2019 e 7.554 a menos do que em 2018.
Fonte: Mongabay News Brasil
Publicação Ambiente Legal, 08/08/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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