Por Lineu Belico dos Reis
As recentes crises energéticas, tanto locais quanto globais, vieram mais uma vez ressaltar a necessidade de um planejamento energético de longo prazo que sirva de base para o estabelecimento de políticas energéticas voltadas aos melhores interesses da sociedade. Esse planejamento deve estar assentado num processo integrado e transparente, capaz de incorporar as diversas dimensões dos problemas, incluindo os ambientais, sociais e políticos e que permita a introdução progressiva de conceitos relacionados à construção de um modelo sustentável de desenvolvimento.
A complexidade do assunto certamente não cabe em algumas poucas linhas, mas a troca de idéias e experiências é fundamental ao longo do caminho de realinhamento de rumos necessário. Suscitar reflexões sobre alguns aspectos importantes da questão é o que se pretende aqui. Como se trata de uma questão multidisciplinar, parece ser mais adequado partir do geral para o específico, do cenário atual da sustentabilidade para o planejamento energético.
O conceito de sustentabilidade está associado ao Desenvolvimento Sustentável, cuja definição mais conhecida está contida na frase: “uma sociedade sustentável satisfaz as necessidades do presente sem sacrificar a capacidade de futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”.
Um rápido olhar ao mundo que nos cerca indica que a construção dessa sociedade sustentável requer a mudança de convenções atuais e a reversão de hábitos e, até mesmo, tendências. Reflexão mais aprofundada ressalta, ainda, a importância da eqüidade, das ações multidisciplinares, da transparência e da decisão participativa.
Por outro lado, não se pode desprezar a incrível capacidade dos diversos setores da organização humana em capturar idéias para adequá-las aos mais diversos propósitos. Por isso, é importante ter sempre em mente o conceito correto de sustentabilidade, uma vez que o termo tem sido fragilizado e, até mesmo, desmoralizado graças a distorções resultantes de uma visão fragmentada.
Agindo assim, pode-se reconhecer que o desenvolvimento sustentável envolve muito mais do que soluções específicas e passageiras como querem fazer crer – envolve gerações e impõe responsabilidades entre gerações. Nesse contexto, a educação calcada no desenvolvimento do espírito crítico tem um papel primordial.
Além disso, a sustentabilidade é uma condição dinâmica, que requer cuidados para ser mantida ao longo do tempo e está associada a uma visão integrada, global e de longo prazo, configurando um processo que deve ser continuamente monitorado e reavaliado para manter-se vivo. Por exemplo, a conquista da auto-suficiência de petróleo só pode ser mantida se for associada a estratégias de longo prazo adequadas.
Mas será mesmo possível transformar essas idéias, plenas de promessas e desafios, em ações práticas?
Não é tão complicado, já que há algum tempo se dispõe de técnicas e procedimentos auxiliares à tomada de decisão que permitem uma abordagem integrada, multidisciplinar e participativa. Que utilizam técnicas de cenários para embasar estratégias de longo prazo e contemplam um processo de reavaliação para correção de rumos e ajustes das táticas aderentes aos objetivos estratégicos, tais como os processos de Gestão e Planejamento Integrados de Recursos.
Neste cenário também são importantes: a harmonização de ações locais com globais; o estabelecimento de políticas flexíveis associadas às estratégias de longo prazo; a transparência; o processo participativo e o papel da sociedade civil organizada. A efetiva adoção das estratégias de desenvolvimento como políticas de Estado, e não de Governo, é também fundamental para garantir a continuidade, ressaltando a importância do papel de órgãos reguladores independentes.
Em razão de sua grande importância na vida humana e na organização social que alicerça o que se denomina desenvolvimento, a energia está automaticamente inserida nesse cenário. Sua avaliação, portanto, deve considerar pelo menos:
A questão da eqüidade, que no âmbito da energia se reflete na busca do acesso universal aos serviços energéticos. É vergonhoso, mas quase um terço da população mundial não tem acesso à energia elétrica, cujos serviços são hoje requisitos básicos de cidadania. O acesso universal, por seu lado, remete à outra questão básica, que é a eliminação das grandes disparidades mundiais que se refletem num cenário em que alguns países apresentam um insustentável consumo de energia per capita 16 vezes maior que a média mundial e alguns países não diferem muito das antigas civilizações.
Considerar os impactos ambientais na elaboração de estratégias energéticas e se orientar pela implantação de soluções energéticas sustentáveis, tais como: a diminuição do uso de combustíveis fósseis e um maior uso de tecnologias e combustíveis renováveis; o aumento da eficiência dos setores energético e produtivo e o desenvolvimento e favorecimento de alternativas ambientalmente benéficas. Buscar alinhamento com políticas energéticas para o Desenvolvimento Sustentável: aprimorar o funcionamento dos mercados energéticos; incentivar e mobilizar investimentos adicionais em energia sustentável; encorajar inovações tecnológicas; dar suporte a lideranças tecnológicas e capacitação de pessoal nos países em desenvolvimento; encorajar maior cooperação no plano mundial.
Uma visão integrada da energia como um componente adicional da infra-estrutura para o desenvolvimento, em conjunto com os transportes, as telecomunicações e os setores de águas e saneamento básico, buscando a melhor utilização das sinergias existentes. Por exemplo, cada litro de água perdida por vazamento requer energia elétrica para bombeamento de água para reposição, num processo ineficiente em cadeia.
Uma visão integrada da própria energia como um todo. Em nosso País é bem conhecido o fato que os dois principais setores energéticos, o do petróleo e do gás natural e o da eletricidade, apresentam competência em seus planejamentos específicos, mas dificuldades, até mesmo de teor corporativo, quando se trata de um planejamento energético integrado. Isto explica, em parte, as dificuldades históricas impostas para o desenvolvimento de estudos prospectivos da Matriz Energética Brasileira, fundamentais para um planejamento energético efetivo e o estabelecimento das estratégias e políticas energéticas. Os ganhos resultantes desse enfoque integrado ficam evidentes quando se consideram as intersecções, cada vez mais significativas, de ambos setores. Do lado da oferta, por exemplo, podem ser citados os projetos de co-geração de energia elétrica e térmica e do lado do consumo, a evolução dos carros com sistemas híbridos de propulsão, nos quais o papel da eletricidade tende a crescer ao longo do tempo.
Maior divulgação dos estudos prospectivos da Matriz Energética é fundamental num processo transparente e participativo de planejamento energético. A Matriz Energética contempla cenários de oferta e consumo, reflete a evolução da eficiência energética, auxilia os cálculos de emissões atmosféricas e de indicadores energéticos, que podem ser usados para avaliar o encaminhamento para a sustentabilidade. Para suscitar reflexões adicionais, sugere-se aqui a leitura do Balanço Energético Nacional, que apresenta estatísticas de 15 anos anteriores à sua edição (www.mme.gov.br); do World Energy Outlook 2004, que apresenta estudos até 2030, incluindo o Brasil, e é editado pela IEA – International Energy Agency ( www.iea.org) e do International Energy Outlook, com estudos para 25 anos, também incluindo o Brasil, da EIA/DOE – Energy Information Agency do Department of Energy dos EUA (www.eia.doe.gov).
Refletir sobre todas essas questões e participar das soluções é parte de nossa responsabilidade na construção de uma vida melhor neste planeta.
Lineu Belico dos Reis é consultor no setor energético desde 1968 e professor Livre Docente da Escola Politécnica da USP. Tem diversos artigos publicados e apresentados em congressos nacionais e internacionais. É organizador e co-autor do livro “Energia Elétrica para o Desenvolvimento Sustentável” (Prêmio Jabuti no ano 2000), autor do livro “Geração de Energia Elétrica” (2003) e co-autor do livro “Energia, Recursos Naturais e a Prática do Desenvolvimento Sustentável” (2005).