Por Ricardo Viveiros*
Franz Kafka, que nasceu judeu no antigo Império Austro-Húngaro, depois checoslováquia e hoje república Tcheca, foi um escritor de língua alemã (embora dominasse o idioma tcheco) autor de romances e contos que o tornaram reconhecido entre os mais influentes literatos do século 20.
Kafka é respeitado pelo estilo único de sua escrita, por seus temas e padrões que abordam alienações, brutalidade física e psicológica. Nas suas obras estão presentes conflitos entre pais e filhos. Os seus personagens têm missões aterrorizantes, como labirintos burocráticos e transformações místicas. Existe em vários idiomas o termo “kafkiano”, que remete a algo complicado, duro e surreal, consoante ao retratado em suas obras.
Como a vida é mágica, um ano antes de sua prematura morte aos 40 anos, o talentoso escritor viveu uma experiência singular e bem diferente de tudo o que criou e nos deixou em suas muitas cartas e livros. Passeando pelo verde do parque de Steglitz, no sudoeste de Berlim (Alemanha), encontrou uma menina chorando porque havia perdido sua boneca.
Kafka, sensibilizado, ofereceu ajuda para encontrar a boneca, combinou um encontro com a pequena no dia seguinte no mesmo lugar.
Não tendo encontrado o objeto perdido, ele escreveu uma carta como se fosse a boneca e, quando se encontraram, leu para a menina. A carta dizia: “Por favor, não chore por mim, parti numa viagem para ver o mundo”.
Durante três semanas, Kafka entregou à menina, de modo regular, outras cartas que narravam as peripécias da boneca em todos os cantos do mundo: Londres, Paris, Madagascar. Tudo para que a pequena esquecesse a grande tristeza da perda, que o havia sensibilizado.
Esta delicada história foi publicada em alguns jornais e inspirou um livro do espanhol Jordi Sierra i Fabra, “Kafka e a Boneca Viajante”, no qual o jornalista e escritor catalão imagina como teriam sido as conversas e o conteúdo das cartas do tcheco. Interessante comentar que Fabra escreve livros infantis de grande sucesso, já traduzidos para mais de uma dezena de idiomas, e tem uma história pessoal marcada por tristezas – gago sofreu bullyng na escola, foi vítima de acidentes e de perseguição política na ditadura franquista.
Voltando a Kafka, por fim o escritor presenteou a menina com uma outra boneca. Claro, diferente da original. Uma carta anexa explicava: “Minhas viagens me transformaram…”.
Anos depois, a garota encontrou uma carta enfiada numa abertura escondida da boneca substituta, que ela havia aprendido a gostar. O bilhete dizia: “Tudo que você ama, você eventualmente perderá, mas, no fim, o amor retornará em forma diferente”.
Sempre pensamos nas amadas pessoas que nos deixaram: avós, pais, tios, filhos, netos.
Entretanto, devemos pensar também nas que a vida nos deu depois das perdas, em especial, os novos amigos que conquistamos. Em geral, você guarda para sempre as amizades da infância e da juventude. Além de manter o conquistado no passado, é importante conseguir fazer novos amigos também na maturidade.
A pandemia da Covid-19 tem nos tomado parte dessa gente amada. Ninguém substitui ninguém. Mas, tenho certeza, o amor é uma espécie de renovação do sentimento em relação a quem perdemos. Um tipo de amor que renasce em nossos corações e mentes a cada nova amizade. Algo assim como o que motivou Kafka, aparentemente uma pessoa fria e amarga, a ser tão terno e doce com aquela menina que perdeu sua boneca.
Facundo Cabral, compositor e escritor argentino, de juventude muito sofrida e que morreu assassinado após um show na Guatemala, disse sobre as pessoas que se foram:
“Você não perdeu nada, quem morreu apenas se adiantou a nós, porque para lá iremos todos. Além disso, o melhor dele, o amor, segue em seu coração.”
Que bom gostar das pessoas e poder acreditar que elas também gostam de nós. Ajuda a enfrentar esses tempos tão cinzentos de mortes que causam eterna saudade. Entre perder e ganhar, estão as típicas emoções “kafkianas” dos arquétipos que transitam pelos obscuros labirintos políticos, mas há também as que nos permitem a esperançosa crença na felicidade.
*Ricardo Viveiros, jornalista, professor e escritor, é doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro da Academia Paulista de Educação (APE). Autor de vários livros, entre os quais O poeta e o passarinho (Ed. Biruta), Saudade (Ed. Girassol) e O menino que lia nuvens (Ed. Gaivota).
Artigo publicado originalmente em O Estadão
Fonte: o próprio autor
Publicação Ambiente Legal, 14/12/2020
Edição: Ana A. Alencar