Índios e fazendeiros entram em conflito enquanto política indígena colapsa
Por Vitor Lillo
Sidrolândia, município de 43 mil habitantes, próximo à Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul e da fronteira com o Paraguai, é conhecida por suas terras férteis e também como importante polo agropecuário e têxtil daquele estado.
A mesma terra que dá dinheiro e vida foi a razão da morte do índio terena Oziel Gabriel, de 35 anos, morto após ser baleado no abdome durante confronto com policiais que cumpriam o mandado de reintegração de posse da Fazenda Buriti, com área de 17.200 hectares, atualmente em processo de demarcação.
Após sua morte, a fazenda, de propriedade do ex-deputado estadual Ricardo Bacha, foi invadida novamente. E outras invasões – e confrontos – se deram em várias partes do MS nas semanas seguintes. Em um deles, Josiel Gabriel Alves, 34, parente distante de Oziel, foi alvejado nas costas, mas escapou com vida.
O clima de tensão que motivou o envio de agentes da Força Nacional de Segurança à região rompeu as fronteiras do Rio Grande do Sul e chegou a Brasília, onde 150 índios da etnia munduruku, do Pará, ocuparem a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai). Exigem do Governo Federal a suspensão da construção de hidrelétricas na Amazônia, entre elas a famigerada Belo Monte.
Oziel é parte de uma trágica estatística: 560 índios foram assassinados no Brasil nos últimos 10 anos, uma média de 56 ao ano. O número é 168% maior em relação à década anterior, aponta levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Por outro lado, 113 milhões de hectares (13% do território) estão na mão de 800 mil indígenas (cerca de 0,47% da população) no Brasil. Muitas dessas terras “devolvidas” estavam nas mãos de produtores rurais que, por sua vez, também se consideram injustiçados.
“No que toca à questão indígena, eles [os índios] são vítimas da colonização brasileira empreendida pelo Estado e pela Igreja, com situações trágicas e desestruturação cultural e religiosa. Os empreendedores rurais não são os responsáveis por isso. São as novas vítimas”, declarou a senadora Kátia Abreu (PSD-TO) e presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no último sábado (08).
A CNA acusa a Funai, de não ter isenção necessária para mediar conflitos. “Visivelmente, atua como militante indigenista e radical, tendo como alvo o produtor rural”, sustenta a entidade em nota à imprensa. Uma demonstração clara de que a política indígena falha em seu papel principal de promover a coexistência em prol do desenvolvimento. Isto é, se essa política de fato existe.
(des)Política indígena
“Pra dizer a verdade ela nunca existiu, desde o marechal Rondon. Porque o que define uma política de governo são os orçamentos e a execução orçamentária. Cada vez que senta um cidadão na cadeira de presidente da Funai, muda tudo. Isso gera um nível de desconforto que não permite tirar essa política do papel”, afirma o advogado ambientalista Paulo de Bessa Antunes.
Na avaliação de Bessa, a falta de verba para a Funai é um entrave ao funcionamento do órgão. Outro problema, na opinião do advogado, é a confusão que burocratas do órgão fazem entre suas funções e convicções pessoais. “Em muitos casos há o envolvimento de funcionários que não conseguem separar o papel de servidor e o de ‘amigo dos índios’”.
Um exemplo dessa confusão é dado pelo antropólogo e professor aposentado Mauro Cherobim, autoridade em questões indígenas. ”Tempos atrás, no Litoral de São Paulo, fiz a proposta dos índios ficarem dentro de um parque estadual e se responsabilizarem pela proteção dele. A Funai rejeitou alegando que eram terras que pertenciam a eles por direito. Resultado: os índios não podem ficar no parque.”, relata.
Mas muito além da crise institucional, há também uma grande confusão jurídica que se arrasta há décadas, lembra o professor Cherobim, citando um conflito semelhante ao detonado este mês no Mato Grosso do Sul, que ocorreu há mais de 70 anos em São Paulo.
“Na década de 1930 o Governo Federal tinha interesse em povoar o litoral e distribuiu terras devolutas ‘em cima do mapa’ por uma lei. Nessas áreas não haviam só índios como também populações tradicionais, os caiçaras. Em um momento começou a dar conflito [entre índios e caiçaras] e então expulsam os caiçaras”.
A Constituição de 1988, promulgada 50 anos depois desse fato, também não resolveu a questão por completo. “Lá se determina que os índios são autônomos e que sua tutela cabe à Funai, isso não está claro. Há vários grupos indígenas que não aceitam essa tutela, o que impossibilita a Funai de atuar. Por outro lado, ela também vive uma crise de identidade em que não sabe o seu papel, aí ficamos numa posição de total incerteza”, opina Paulo de Bessa.
Caminho tortuoso para um futuro incerto
No meio de todo esse imbróglio ficam os antropólogos. Eles são parte fundamental do processo de demarcação de terras, que tem início quando uma comunidade indígena reclama a posse de um território por ela ocupado. São estes especialistas que vão estudar os costumes e a relação dessa comunidade com a área em questão, um processo que é alvo frequente de críticas.
“Muitas vezes se parte de um pressuposto que sociedades indígenas não são constituídas por pessoas, mas por fósseis vivos. Existem, de fato, comunidades isoladas, mas há muitas que estão bem próximas da nossa realidade e estamos tratando como se fossem a imagem do ‘bom selvagem’ de Rousseau”, opina Bessa.
Mauro Cherobim afirma que a primeira dificuldade no trabalho de perícia é reconhecer a situação dos dois lados em litígio. “tem que se reconhecer que as pessoas que adquiriram as terras compraram com a anuência do Estado e que os indígenas também precisam sobreviver. A visão dos indígenas das terras não é aquela de espaço finito, no caso deles é de território; e a área do território não é uma área finita, vai até onde esses grupos reconhecem como terras deles”.
Mauro sustenta ainda que os antropólogos “vivem dentro da burocracia acadêmica e têm pouco contato com a realidade”. “Como acadêmicos, deveriam ser mais políticos e mais presentes, mas não representando determinados interesses”.
Perguntado sobre a imparcialidade do trabalho pericial, Cherobim afirmou ser difícil afirmar se são mais técnicos ou mais políticos e que isso depende de cada caso. “Os trabalhos são técnicos, claro que alguns deles são tendenciosos: ora a favor das tribos, ora dos fazendeiros, às vezes você vê os dois. Essas tendências políticas vão aparecendo durante o processo”.
Após a realização do estudo técnico, o caso chega à Funai que, por sua vez, dá a palavra final sobre a demarcação da reserva e define as indenizações a serem pagas aos proprietários. Paulo de Bessa discorda que a fundação deva assumir esse papel. “Aí que está o problema: o antropólogo ou o servidor ser a favor do índio não é o problema. O problema é ele estar no papel central de decisão”.
“Talvez uma posição intermediária mais interessante seja algo semelhante ao que já é feito nos Estados Unidos que seria a criação, dentro do Poder Executivo, de uma corte de reclamações de terra, um órgão independente no qual se teria a Funai, o Governo e representantes da sociedade com um mandato que decidiriam essas questões”, afirma Bessa.
Com o agravamento da crise indígena, Brasília resolveu agir. O Governo Federal pretende criar um colegiado subordinado ao Ministério da Justiça e contará com representantes dos ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e das Cidades, além da Embrapa, que deverá apresentar um estudo preliminar para um novo modelo de demarcação das terras indígenas, até o final do mês.
Sidrolândia, Brasília, Alto Solimões e Raposa Serra do Sol, que até hoje aguarda o acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF), estão na expectativa pelo desenrolar de uma triste história escrita há 513 anos com sangue, na qual o povo brasileiro é ao mesmo tempo vítima e algoz. Espera-se que as autoridades públicas e a sociedade não levem outros cinco séculos para dar-lhe um ponto final.